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Um "inferno na terra" onde reina a impunidade perante a inação de todos

Nos últimos dias, morreram mais de 600 pessoas em Ghouta Oriental, um dos últimos bastiões de oposição ao regime de Bashar al-Assad na Síria. Nem a trégua humanitária tem impedido os confrontos entre forças de Damasco e os vários grupos rebeldes do país, isto enquanto pairam no ar novas acusações de utilização de armas químicas na Síria.

Um "inferno na terra" onde reina a impunidade perante a inação de todos
Notícias ao Minuto

08:04 - 03/03/18 por Pedro Bastos Reis

Mundo Síria

Neste mês de março que acaba de começar, a Guerra da Síria vai entrar no seu oitavo ano, sem que a brutalidade da violência dê sinais de abrandar ou de que uma solução para resolver o complexo conflito possa estar para breve. Já passaram sete anos e Bashar al-Assad continua agarrado ao poder, atacando os seus próprios civis em muitas circunstâncias. Sete anos depois, formaram-se e dissolveram-se dezenas de grupos de oposição, desde fações mais moderadas a grupos extremistas islâmicos, como o autoproclamado Estado Islâmico ou a Hayat Tahrir al Sham, antigo braço da Al-Qaeda na Síria. No meio dos confrontos, são os civis os mais afetados, muitas vezes esquecidos ou ignorados.

Tudo começou em 2011, quando um grupo de estudantes sírios foi preso por pintar graffitis contra o regime de Damasco. Inspirados pela onda de revoltas no Médio Oriente, as chamadas Primaveras Árabes que derrubaram governos na Tunísia ou no Egito, estes jovens decidiram pôr em causa a legitimidade de um regime tirânico, que restringia fortemente a liberdade do seu povo.

Foram presos e gerou-se, um pouco por todo o país, uma onda de protestos contra Assad. O governo sírio respondeu com repressão, grupos de oposição começaram a ser formados – nomeadamente o Exército Livre da Síria, composto por civis e desertores do exército -, dando início a uma guerra civil no país que está longe de chegar ao fim. Em sete anos, morreram mais de 500 mil pessoas e cerca de 12 milhões abandonaram o país para fugir da guerra.

Desde então, a Guerra da Síria nunca saiu, propriamente, da agenda mediática, apesar de esquecida e desvalorizada por vezes. Foi fortemente noticiada perante a brutalidade e carnificina perpetradas pelo Daesh (sigla em árabe para o autodesginado Estado Islâmico), assim como pela enorme vaga de refugiados que chegavam às portas da Europa. Os bombardeamentos constantes do regime contra a sua própria população, com recurso a armas químicas em algumas circunstâncias, também geraram enormes ondas de contestação. As imagens do ataque com gás sarin em Ghouta, em 2013, que causou mais de mil mortos, chocou o mundo mas a impunidade do regime manteve-se.

"O inferno na Terra"

Nas última semanas, é precisamente de Ghouta que chegam imagens da violência e dos destroços causados por bombardeamentos aéreos. Cerca de 400 mil pessoas estão presas nesta localidade, sob cerco do governo desde 2013 e onde há enorme falta de medicamentos e de alimentos, situada a cerca de 10 quilómetros de Damasco, capital do país. Segundo os dados do Observatório Sírio dos Direitos Humanos – uma organização não governamental, com sede em Londres, que monitoriza o conflito sírio -, morreram mais de 600 pessoas na semana que está a terminar. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, descreveu a situação como o “inferno na Terra”.

Notícias ao MinutoNa última semana, morreram mais de 600 pessoas em Ghouta Oriental© Reuters

Devido à catástrofe humanitária, aumentou a pressão sobre Assad e o Conselho de Segurança da ONU aprovou, por unanimidade, um cessar-fogo, apesar das reticências da Rússia, principal aliado do regime sírio, que insistiu para que os denominados “grupos terroristas” não fossem abrangidos pelo acordo. A precariedade da trégua humanitária, violada sistematicamente desde que entrou em vigor na passada terça-feira, adivinhava-se, tendo em conta que, depois de a votar, Moscovo falou unilateralmente para anunciar a criação de um corredor humanitário, onde ajuda médica pudesse entrar e os civis feridos pudessem sair, mas apenas durante cinco horas diárias. Poucos civis têm conseguido sair e escassa ajuda poderá ser dada, tendo em conta tais limitações.

“O povo de Ghouta Oriental não leva a sério as notícias dos corredores humanitários. Não acreditam porque perderam toda a confiança na credibilidade do regime, particularmente porque nem os bombardeamentos pararam nem os russos ou o regime expressaram qualquer tipo de preocupação em manter os civis longe da guerra”, afirmou o ativista Abdelmalik Aboud, natural de Douma, à Al Jazeera.

De acordo com os Capacetes Brancos, grupo de voluntários que presta auxílio aos civis nas zonas controladas pela oposição ao regime, desde que o cessar-fogo entrou em vigor morreram pelo menos 103 pessoas, incluindo 22 crianças. 

Esta violação do cessar-fogo, diz a professora de relações internacionais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) Ana Santos Pinto, especialista em geopolítica do Médio Oriente, acontece porque as forças em conflito – governo sírio e oposição - no terreno não reconhecem o cessar de hostilidades, uma vez que não estiveram sentados à mesa com o Conselho de Segurança, considerando, por isso, a trégua ilegítima.

“Os próprios elementos em conflito não fizeram parte do acordo, e por isso não se sentem vinculados a essa responsabilidade", explica a professora universitária em entrevista ao Notícias ao Minuto. “Os grupos que estão em conflito, que não fizeram parte deste acordo em sede do Conselho de Segurança, não reconhecem o cessar de hostilidades e, seja pela parte das forças governamentais, seja pela parte das forças rebeldes, violam esse cessar de hostilidades e impedem o acesso aos corredores humanitários”.

Quem são os "rebeldes"?

Depois de conquistar bastiões importantíssimos como Raqqa – antiga capital do Daesh – ou Aleppo, são cada vez menos as zonas que não estão sob controlo do regime de Bashar al-Assad.

Ghouta, historicamente um reduto de oposição ao regime, é uma dessas exceções. Nas palavras de Ana Santos Pinto, esta cidade nos arredores de Damasco “não tem uma importância estratégica do ponto de vista geográfico, mas sim do ponto de vista político”, uma vez que “sempre foi um ponto muito ativo no que diz respeito à oposição política ao regime de Bashar al-Assad”.

Notícias ao MinutoApesar do cessar-fogo, a trégua humanitária tem sido violada sistematicamente © Reuters

Esta oposição tende a ser rotulada, grande parte das vezes, simplesmente como "forças rebeldes". No entanto, nota a professora universitária, “rebeldes é um rótulo para grupos muitíssimo diferentes”, que podem ir desde a Al-Qaeda e do Daesh a “movimentos políticos que começaram a sua luta na oposição e que se foram transformando muito mais em movimentos de guerrilha”, que muitas vezes lutam entre si; sem esquecer, claro, grupos armados apoiados por países estrangeiros, nomeadamente o Hezbollah libanês, apoiado pelo Irão e que alinha ao lado de Assad; grupos sunitas financiados pelos países do Golfo e pela Turquia, alinhados contra o regime sírio; ou grupos treinados e armados pelos países ocidentais, igualmente adversários de Damasco.

“Por serem grupos tão diferentes, o regime de Bashar al-Assad e a própria Rússia catalogam todos os movimentos como terroristas. Portanto, isto leva a que digam que abrem uma exceção numa luta contra movimentos de matriz terrorista", acrescenta a especialista em geopolítica do Médio Oriente. Dito de outra forma, Moscovo e Damasco não fazem distinção entre grupos de oposição, apelidando-os a todos de terroristas e acusando-os de quebrarem a trégua humanitária. Do lado da oposição, as acusações da violação do cessar-fogo são feitas aos bombardeamentos perpetrados por Assad e apoiados por Vladimir Putin.

Segundo a estação televisiva Al-Jazeera, entre os grupos rebeldes a combaterem na Síria está o Exército Livre da Síria, composto por diversos grupos, a Hayat Tahrir al Sham, grupo jihadista que integra a Jabhat Fateh al-Sham, antiga Frente al-Nusra, que rompeu com a Al-Qaeda, e agora se aliou aos islamistas da Jaish al-Islam.

Robert Fisk, veterano jornalista do The Independent que cobre conflitos no Médio Oriente desde o início dos anos de 1980, alerta precisamente para essa complexidade nos grupos armados da oposição, apontando, no entanto, para o facto de estarem a morrer centenas de civis nesta guerra, um cenário que, diz, “não irá mudar nos próximos tempos”.

“Enquanto as imagens de Ghouta Oriental não mostram os islamitas armados que combatem no enclave, não há qualquer razão para duvidar do sofrimento dos civis. E muitos destes civis, deve ser lembrado, serão, inevitavelmente, familiares de muitos soldados sírios que estão a planear devastar Ghouta”, escreve Fisk.

Uma das grandes questões é perceber qual a dimensão da presença da Hayat Tahrir al Sham em Ghouta Oriental. Para Ana Santos Pinto, “prevê-se que sim”, que o grupo tenha presença na localidade, “porque há uma grande mobilidade destes movimentos e, portanto, eles tentam expandir-se no território de acordo com aquilo que sejam as próprias características e intensidade do conflito".

"Ghouta irá cair". Depois, virá Idlib 

Muitos analistas apontam para o facto de a queda de Ghouta Oriental estar para breve. Apesar da trégua humanitária, que poderá ter os dias contados, dificilmente irão parar os conflitos e, com o aumento da intensidade nos bombardeamentos, é cada vez mais expectável que Ghouta caia, tal como aconteceu com Aleppo.

"Ghouta irá cair. Essa é a mensagem. E quando cair, Idlib será certamente o próximo alvo”, sentencia Robert Fisk. Ana Santos Pinto é da mesma opinião. “O que imagino que vá acontecer, após o controlo de Ghouta por parte do regime, é que se siga Idlib, porque é outra área de elementos rebeldes”, sublinha a professora da FCSH.

Notícias ao MinutoRegime de Assad voltou a ser acusado de usar armas químicas contra a própria população© Reuters

Enquanto tal não acontece, o fantasma das armas químicas continua a pairar sobre Bashar al-Assad. No passado fim de semana, surgiram novas acusações de que o regime tem utilizado este tipo de armamento, considerado ilegal de acordo com o direito internacional. Uma investigação foi aberta por parte da Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPCW) e o Reino Unido, pela voz do seu chefe da diplomacia, admitiu a possibilidade de intervir diretamente no conflito caso se comprove a utilização deste tipo de armas.

Uma possibilidade que, diz Ana Santos Pinto, dificilmente irá acontecer, tendo em conta que, com a instabilidade política vivida no Reino Unido, uma intervenção militar nunca seria aprovada no parlamento britânico. Para lá disso, convém recordar, em 2013 o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, traçou como linha vermelha a utilização de armas químicas, e nem o facto de Assad ter usado gás sarin contra a sua população levou os norte-americanos a entrarem diretamente no conflito, o que proporcionou que, dois anos depois, Moscovo entrasse na guerra ao lado do regime, dando-lhe um apoio decisivo. A única exceção norte-americana deu-se em abril de 2017, depois de novo ataque com armas químicas, desta feita em Khan Cheikhoun, causando a morte de 87 pessoas, quando os Estados Unidos bombardearam, em retaliação, uma base síria.

“Tendo em conta o atual contexto, o envolvimento de fatores externos, e a inação da comunidade internacional, imagino que a avaliação que Bashar al-Assad faz é que não haverá consequências maiores", analisa a professora universitária. Por esse motivo, diz, “a criação de um processo internacional de intervenção na Síria não me parece realizável, pelo menos num curto prazo”, a que acresce a ofensiva da Turquia nas regiões curdas da Síria, nomeadamente em Afrine, bem como o envolvimento de países como Irão e Israel no conflito sírio. Tendo em conta a quantidade de atores internacionais presentes na Síria, qualquer passo em falso poderá ser fatal. 

Perante esta complexidade de fatores, alerta Ana Santos Pinto, “temos um cenário de risco de escalada do conflito que é, naturalmente, muito preocupante".

Enquanto a ameaça paira no ar, centenas de civis continuam a morrer e o silêncio e a inação generalizada da comunidade internacional são gritantes.

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