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O livro de Álvaro Filho que nasceu no Recife e quase morreu em Lisboa

A perda de memória e o paralelo com o Brasil. Essa podia ser uma das apresentações do romance ‘Meu velho guerrilheiro’, lançado em outubro em Portugal, pela editora Gato Bravo. Um livro político mas "no sentido mais nobre da palavra", conforme indica o autor.

O livro de Álvaro Filho que nasceu no Recife e quase morreu em Lisboa
Notícias ao Minuto

11:05 - 12/11/18 por Anabela de Sousa Dantas

Cultura Livros

Os primeiros dois lançamentos do escritor brasileiro Álvaro Filho em Portugal são o conto ‘Otelo’ e o romance ‘Meu velho guerrilheiro’. O primeiro é uma revisitação clássica ancorada nas atuais questões da migração, pelo olhar de um jornalista veterano, e o segundo é uma história de realidade e de ficção com a situação política brasileira como pano de fundo.

‘O meu velho guerrilheiro’, eleito a melhor ficção de 2017 pela Academia Pernambucana de Letras, é uma história especialmente pessoal, pois é autobiográfica. Assente nas memórias do seu pai, um professor de economia reformado, o romance vai intercalando realidade e ficção, utilizando o passado para enquadrar o presente.

Para encontrar o momento que inspirou o livro, Álvaro recua a 2014. “Antes da reeleição de Dilma, num almoço de família, o meu pai começou a dizer que ia haver um golpe. Naquela época, há quatro anos, nós achávamos que a democracia no Brasil não permitia uma coisa dessas, parecia uma coisa do passado. Até ficámos preocupados. ‘Será que o meu pai está com algum problema?’. Aquilo veio e desapareceu como está no livro, como um surto”, indica o escritor, em conversa com o Notícias ao Minuto.

“O mais curioso é que o mais lúcido era o meu pai”, confessa agora, explicando que foi esse momento que motivou ‘Meu velho guerrilheiro’, editado pela Gato Bravo. Um livro que poderia não ter acontecido, pois o seu primeiro rascunho acabou queimado num incêndio na sua casa em Alfama. Pensava-se perdido, se calhar porque "não era para ser", até se terem recuperado os textos de entre os poucos ficheiros que se recuperaram do disco do seu computador pessoal.

Faço um paralelo com o que acontece com o Brasil, de certa forma“O ‘Meu velho guerrilheiro’ é sobre memória, e como a memória pode desvanecer-se mas alguns sentimentos permanecem. É isso que acontece, de certa forma, com a personagem que no livro representa o pai do narrador. Uma história de uma pessoa que vai perdendo a memória mas mantém alguns princípios que resistem a essa degradação”, esclarece Álvaro Filho.

“Faço um paralelo com o que acontece com o Brasil, de certa forma”, sublinha. “Estamos agora a flertar com um período que nós já sabemos como funciona mas parece que, de alguma forma, essa memória se apagou”.

A resistência, porém, permanece. E assim como acontece com a memória que se desvanece, há momentos, pessoas e períodos que teimam em recordar. “Existe em alguns setores uma certa resistência a isso, ao fim dessa memória, e assim como acontece no livro, há um certo duelo entre esses dois lados”.

No livro, utilizando as referências de Olinda, um município no Recife, onde Álvaro Filho nasceu há 45 anos, pode ler-se que existem pessoas que são navios, numa constante liberdade exploradora do horizonte, e pessoas que são recifes, que param os navios. “É mais cómodo ser recife, de certa forma, não é?”, lança o escritor.

Sou privilegiado por estar em Portugal, mas tenho muito menos privilégios aqui como imigrante do que teria no Brasil como homem, heterossexual, branco e de classe média“Os meus colegas que ainda estão no Brasil dizem que para mim é fácil falar, estou distante do processo, com uma certa segurança. Mas eu, na minha bolha, como se diz nas redes sociais, vejo muita gente ainda a tentar ser navio, ainda a tentar trabalhar essa liberdade. Não vi ninguém a calar-se. Mas estamos só no início do processo”, indica o escritor, que mora em Portugal desde 2016.

Sobre o Facebook, onde o autor expressa ativamente as suas posições políticas, lembra: “As pessoas criticam-me no Facebook. ‘Você faz isso porque você um privilegiado porque está aí em Portugal’. Sou privilegiado por estar em Portugal, mas tenho muito menos privilégios aqui como imigrante do que teria no Brasil como homem, heterossexual, branco e de classe média. O governo está a ser feito para esse perfil. Se eu quisesse privilégios ia para lá”.

Ainda assim, quando escreve sobre o Brasil para algum jornal português, é acusado de ser de extrema-esquerda ou comunista. “É a coisa mais estranha, porque nunca tivemos comunismo no Brasil, aqui em Portugal tem. Até costumo dizer, a brincar, que gostava que houvesse uma ameaça comunista no Brasil. Se houvesse mesmo um contingente de pessoas que quisesse o comunismo no Brasil era ótimo. Mas só temos o pânico. Tem o ónus do processo, não tem o bónus”.

Notícias ao MinutoÁlvaro Filho é escritor e jornalista, colaborando pontualmente com jornais como o Diário de Notícias© Divulgação - Líbia Florentino

Recusando ser “um marxista ou comunista clássico”, Álvaro Filho sublinha que acredita, sim, na ideia de que os mais fortes devem zelar pelos mais frágeis, a começar pelo Estado. “O livro pode ser lido como um livro político, mas no sentido mais nobre que a política pode ter. Não tem um plano de governo, não é um livro do PT. É em defesa de quem não se pode proteger. A criança que se afoga, filha de militar, tem de se salvar. Não se deixa a criança morrer só porque é filha de quem o constrange”.

“O meu pai, sempre o meu pai”. A repetição e a intermitência da memória é o ritmo pulsante de todo o livro, que ambiciona levantar o véu ao futuro com os avisos do passado, como fez o pai do narrador. E o futuro? “Até fico com medo de perguntar ao meu pai o que ele pensa”, brinca Álvaro Filho.

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