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"Ventura pode deixar de ser líder, mas não eliminamos o Ventura Country"

O jornalista Miguel Carvalho é o convidado desta quarta-feira do Vozes ao Minuto. 'Por Dentro do Chega. A face oculta da extrema-direita em Portugal' traça o retrato do partido que se propôs a representar os "portugueses de bem", apesar de esconder um submundo toldado por guerras civis, contradições e casos de polícia.

"Ventura pode deixar de ser líder, mas não eliminamos o Ventura Country"

© Mariana Correia Pinto

Daniela Filipe
01/10/2025 08:30 ‧ há 5 dias por Daniela Filipe

Desde a sua fundação, em 2019, que os casos do submundo do Chega teimam em vir à tona. Uma nova radiografia do partido que se assumiu como representante dos "portugueses de bem" mas, paradoxalmente, "trouxe polarização à vida democrática, cavalgou preconceitos e contribuiu para extremar a sociedade" foi, agora, traçada pela mão do jornalista Miguel Carvalho, que colocou a descoberto as entranhas do coletivo encabeçado por André Ventura.

 

'Por Dentro do Chega. A face oculta da extrema-direita em Portugal' é o culminar de seis anos de investigação sobre um partido que acumulou, na sua hierarquia, "uma legião de oportunistas e de gente fanatizada". É que, tal como ressalvou Miguel Carvalho ao Notícias ao Minuto, "hostilizar aquele eleitorado, com os mais diversos preconceitos, não nos vai trazer nada de bom", já que muitos vivem "quotidianos muito difíceis" e encontram as "narrativas simples" que procuram junto de André Ventura e dos seus vassalos.

Ainda que, acima de tudo, o Chega seja "um projeto de poder pessoal […] que vai descartando as pessoas consoante elas se tornam inúteis ou ameaçam, de alguma maneira, a estabilidade que André Ventura quer", este ecossistema reflete, de igual modo, "um país que está angustiado, que vive situações dramáticas, que olha para a classe política com desdém absoluto". É por isso que, nesta altura do campeonato, já não basta "resolver o problema Ventura". Apesar de todas as artimanhas, gravações ilegais para descredibilizar rivais e até planos para liderar o partido na clandestinidade, o Chega veio para ficar, porque "fala [pelos eleitores], berra por eles, diz o que eles não podem dizer às elites" – mesmo integrando e sendo financiado pelas elites.

A ideia de que o partido podia ser investigado e ilegalizado a qualquer momento, ou por supostos financiamentos externos, ou por ter no seu seio várias pessoas que eram oriundas de movimentos neonazis e mais violentos, criou um clima de absoluta paranoia que o Chega vai explorando até aos dias de hoje

O livro arranca com um episódio ilustrativo da paranoia que rodeia o Chega e os seus membros, nomeadamente a eventual fuga de André Ventura e de Luís Graça para Marrocos, face à possibilidade de o partido vir a ser ilegalizado. Considera que esta vitimização, aliada a teorias de que estão a ser perseguidos pelo 'sistema', acaba sempre por jogar a favor do Chega, ainda que o partido tenha no seu âmago todos os vícios que promete combater?

Sim, funciona sempre a favor do Chega. Por isso é que a exploração disso até aos limites é feita quotidianamente. Com o livro, provavelmente as pessoas que ainda lá estão ou que já saíram despertaram para alguns sinais que tiveram e, agora, têm um motivo para associar ao que aconteceu. Na altura, aquilo ficou num grupo muito restrito, mas inseria-se nessa prática quotidiana da paranoia e da vitimização. Deu-se num primeiro momento de guerra civil interna, em que há algumas distritais que se reúnem meio secretamente – digo meio secretamente porque foi, de facto, uma coisa relativamente secreta mas, como acontece sempre no Chega, passado uns dias já toda a gente sabia.

Um grupo de dirigentes reuniu-se numa casa, em Setúbal, elaborou um documento com imensas perguntas – creio que até ultrapassava a centena – enviadas à direção, em que se questionava o financiamento, o que é que o partido fazia ao dinheiro, porque andavam sempre em jantares e em viagens. Aliás, as pessoas que se reuniram ameaçaram enviar aquilo para o Ministério Público (MP). A ideia de que o partido podia ser investigado e ilegalizado a qualquer momento, ou por supostos financiamentos externos, ou por ter no seu seio várias pessoas que eram oriundas de movimentos neonazis e mais violentos, criou um clima de absoluta paranoia que o Chega vai explorando até aos dias de hoje. O próprio Ventura várias vezes aludiu a situações ou episódios em que achava que o objetivo dos poderes, sejam eles quais forem, era miná-lo, porque ele luta contra o sistema. A ideia de que o partido está permanentemente sob vigilância do regime, à espera de um pretexto para o eliminar, também ajudou a unir internamente, com o tempo.

Mas não é só do regime. Estava agora a lembrar-me dos episódios em que Ventura se sentiu mal, durante a campanha eleitoral. A dado momento, lançou: "Queria o quê, que os ciganos me matassem, num corredor?"

Sim. Internamente, mesmo com todas as mudanças que o Chega já teve de dirigentes e de equipas, essa é uma narrativa que existe sempre – a ideia de aproveitar qualquer pretexto que ponha em causa ou que, supostamente, esteja a pôr em causa o futuro do partido e do seu líder. Aliás, havia ordens expressas no sentido de se dar gás a isso. Isso é um objetivo muito claro, dando às pessoas menos informadas e mais permeáveis às narrativas das redes sociais a ideia de que o Chega é o grande combatente contra os vícios do regime, quando eles estão todos lá dentro e elevados ao cubo.

É a receita de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, e viu-se agora também na questão dos hambúrgueres… Onde é que isto nos deixa enquanto jornalistas?

É uma resposta para uma tarde. Achámos, de uma forma geral, que isto nunca nos aconteceria. O próprio António Guterres tinha dito, uns anos antes da eleição de André Ventura, que o populismo nunca venceria em Portugal, porque tínhamos uma tradição imune a isso. Cá estamos. A própria fragilidade da generalidade dos órgãos de informação em termos de recursos humanos, técnicos e financeiros – para mim o pior período do jornalismo em democracia, e já passámos por muitos – não permite ter jornalistas disponíveis, como era normal na fase pré-Internet, a acompanhar quotidianamente um determinado partido, criando fontes, com tempo, confiança. É verdade que não tínhamos um partido como este. Tivemos o Partido Renovador Democrático (PRD). No início, em 1985, também veio com um discurso muito moralista, a falar de cima da burra, como se costuma dizer, em relação ao regime, mas o PRD era profundamente democrático nas suas práticas, e até na sua postura na Assembleia da República. Portanto, achámos que não nos aconteceria, estamos frágeis para acompanhar, estávamos já na altura bastante permeáveis a tudo o que gerasse fogo nas redes sociais e fosse disruptivo. Não parámos para pensar e foi lenha que juntámos. 

Quando comecei a acompanhar o Chega, já tinha feito uma reportagem, que também está no livro, por alturas do fracasso do Basta, com jovens de alguns movimentos de extrema-direita, nacionalistas, identitários, a quem Ventura não dizia grande coisa. Eram jovens, dentro daquela área ideológica, bem estruturados, com ideias muito firmes em relação a determinados temas, e isso despertou-me para o Chega. Quando Ventura é eleito, aí sim, dedico-me [ao Chega], mas eu era um privilegiado. Estava numa revista [a Visão] que, apesar de já estar na sua fase descendente, dava-me três meses para andar entretido com aquilo, sem pensar em mais nada. Fazia algumas coisas pelo meio, mais urgentes, mas, quando acabava esse trabalho para a edição X, voltava ao Chega. Quando me perguntaram se queria ficar com isso, eu disse, 'ok, mas preciso de três meses; quero almoçar com eles, quero jantar com eles, quero conhecer isto'. Comecei a ir a tudo o que era eventos. Depois, veio a pandemia. Mantive os contactos telefónicos, mas já com alguma dificuldade, porque alguns não queriam falar ao telefone; estavam paranoicos que o Governo podia ouvir, coisas assim. Retomei quanto a pandemia abrandou pela primeira vez e isso foi absolutamente essencial para chegar a este livro. Na altura, sobretudo a partir da eleição de Ventura, já o Chega começava a contaminar os jantares de família e de amigos, e toda a gente falava disso. Levei muito nas orelhas, não só de colegas, mas de pessoas que acompanham a realidade política, que diziam, 'estás tolo, daqui a uns meses a malta vai perceber que isto não faz sentido nenhum e acaba já ao virar da esquina'. Viu-se. 

Notícias ao Minuto Capa do livro 'Por Dentro do Chega. A face oculta da extrema-direita em Portugal', de Miguel Carvalho© Penguin Random House  

Acho que, por muito boa vontade que possa haver de alguma gente em combater isto, já é tarde. Do ponto de vista da passagem da mensagem e daquela coisa circense pantomineira de criar polémica, ele treinou no melhor ginásio deste país, que foi o sensacionalismo televisivo – estávamos nós a dormir. Quando irrompe na política nacional, continuamos a dormir primeiro e, quando alertamos, já é tarde. Ele criou o ruído de que precisava para promover o Chega. Aliás, Ventura diz isso e eu conto no livro alguns episódios de gente que lhe pergunta, 'mas queres mesmo publicar isto?', e ele diz que não acredita em nada daquilo, mas que é preciso para criar ruído. Quando o ruído está criado, nós já estamos a ir atrás. É o que costumo dizer: o Chega vai de Ferrari e nós vamos de trotinete. Temos muito pouca gente a acompanhar o Chega com regularidade. Sou eu, é o Alexandre R. Malhado, a Bárbara Reis de vez em quando também aprofunda, o Hélio Carvalho… Mas muito pouca gente pode fazer isto com regularidade. A Visão, de facto, deu-me muito tempo. Também percebeu que valia a pena, porque dali a nada tinha uma capa com coisas que mais ninguém tinha. O que a Visão me deu permitiu-me conhecer pessoas que, normalmente, não conheceria, sem o relógio a controlar e sem ter um texto para entregar no dia seguinte. Isso é uma das coisas que valia a pena corrigir, mas sabemos como é que as coisas estão. 

O que se assiste hoje é absolutamente pornográfico, não tenho outra palavra. Parece que, em todas as estações de televisão, Ventura tem casa, cama e roupa lavada para ir para o estúdio seguinte horas ou no dia depois. Nesta guerra absolutamente fratricida por audiências, que vai correr muito mal um dia, em que continuamente estamos a perder credibilidade no que fazemos, parece que há uma frase que ecoa nos bastidores dos canais de televisão: em desespero, chama o Ventura. O nosso papel mediador foi à vida já há bastante tempo. O Chega só não prescinde da televisão, mas parece-me em tudo uma atitude absolutamente masoquista. Ventura vai ao estúdio, insulta o pivô, insulta o comentador, faz bullying ao jornalista, critica a própria estação que lhe dá, mais uma vez, a oportunidade de falar de coisas que, na generalidade, não têm valor notícia e, mesmo assim, continuamos a convidá-lo. Isto é esquizofrénico em certo sentido. Não precisam de nós. Aliás, quem cobre o Chega de forma mais quotidiana sabe que, na maioria dos casos, aquele gabinete de comunicação não responde às perguntas. Precisaram de nós, mas aí estávamos a dormir.

Apesar de todas as justificações e dos alegados "erros", ficou comprovado que o Chega recolheu assinaturas falsas. Isso não foi um mau presságio logo de início? Como é que podemos considerar que um partido que recorre a assinaturas falsas para se legalizar é sério?

Sim, acho que houve aqui algumas falhas do próprio sistema judicial. Mas atenção: o primeiro sinal de que o Chega é um projeto que levanta sérias suspeitas é a coligação ao Parlamento Europeu. O Chega não está legalizado, não tem o seu processo concluído no Tribunal Constitucional (TC), vai à boleia daquela candidatura e, quando aquilo se espalha ao comprido, quem paga as contas é o Partido Popular Monárquico (PPM) porque, formalmente, o Chega não existe. Relato algumas coisas no livro sobre as trapalhadas financeiras que aquela coligação teve, com responsabilidades do próprio André Ventura.

Quando se constitui o partido, há uma coisa que a mim me espanta: primeiro, o facto de o MP arquivar aquilo, dizendo que o Chega, de facto, usou N assinaturas falsas. Quem consultar o processo vai encontrar lá vários testemunhos – creio que dezenas – de pessoas que o MP contactou, no sentido de saber se era a sua assinatura consciente que estava lá naqueles pedidos, e várias dizem que não sabem como é que a sua assinatura foi ali parar. É definido um suspeito para essas artimanhas, que é Nuno Afonso, que é ilibado. Todas as pessoas ouvidas que têm alguma participação nisto apontam André Ventura como o responsável pela recolha de assinaturas. Não é ele quem as vai recolher, mas é ele quem dinamiza essa recolha, pagando do seu próprio bolso. Iam para os bairros sociais e até assinaturas pediram a ciganos, o que não deixa de ser irónico. É do bolso dele, creio que à volta de 40 mil euros, que são pagas grande parte das assinaturas. Isto é vertido para o processo, aquilo ainda dura algum tempo. Ele nunca foi ouvido. Há um documento que relata a conversa entre a procuradora e Nuno Afonso, em que Nuno Afonso se defende com aquilo que sabe. Tudo aponta para André Ventura. Quando isto acontece, ele promete, como sempre faz, que aquilo vai ser investigado internamente até à última, e ainda hoje estamos à espera.

Parece que tem uma redoma protetora à volta dele ou que consegue que as pessoas à sua volta metam as mãos na massa, enquanto ele observa e lidera a uma distância segura.

Sim. A Tânia Tomaz, a secretária do Chega na campanha presidencial, recebe uma chamada no momento de oficializar a conta no banco, e ele pede-lhe os dados dela para colocá-la como mandatária financeira. Estamos a falar de um partido que é um projeto de poder pessoal, antes de tudo, que vai descartando as pessoas consoante elas se tornam inúteis ou ameaçam, de alguma maneira, a estabilidade que André Ventura quer para o partido. Pessoas que lhe possam fazer sombra, pessoas que questionem em demasia, pessoas que tenham pensamento próprio foram sendo frequentemente afastadas até ele ter o partido à sua imagem. Não é por acaso que o TC, em sucessivos acórdãos, aponta coisas muito graves do ponto de vista da democraticidade interna desde 2020. O Chega continua com os seus órgãos ilegais, houve muitas pessoas que foram expulsas e outras que saíram pelo seu próprio pé por considerarem que o partido é hoje menos livre do que era no início. De facto, toda a gente dizia tudo e mais alguma coisa, mas a verdade é que nesse sentido é [menos livre], porque é muito difícil arranjar pensamento próprio. Gabriel Mithá Ribeiro bem tentou e aconteceu o que aconteceu. 

O que há à volta dele – e não confundo aquele aparelho com o seu eleitorado – é uma legião de fanáticos, de gente que, em alguns casos, não tinha onde cair morta, nem politicamente, nem familiarmente, nem profissionalmente, durante muitos anos e, agora, tem um emprego. É gente que vê ali uma ambição, o sonho de concretização de uma missão política que não tinha nos aparelhos políticos por onde andou no seu distrito. Portanto, são pessoas que dirão ámen até ao dia em que lhes toque a elas. Como diz Fernanda Marques Lopes, se isto um dia acabar, ele vai acabar com Luc Mombito sozinho, porque é aquele que será fiel até ao fim.

Sobre Gabriel Mithá Ribeiro, acha, então, que foi afastado e que não suspendeu o mandato de deputado por "razões pessoais", como foi dito?

É por demais evidente. Vamos centrar: aquela entrevista é de 2021. Alerto, no início, que há coisas que podem estar datadas, mas que o global, porque reflete o pensamento dele sobre o partido – e não só – mantenho intacto, já que é importante que o principal ideólogo do partido tenha um espaço extenso no livro, para explicar o que pensa e o que o levou ali. Obviamente que, quando o livro sai nesta altura e André Ventura e outros leem aquilo que [Mithá Ribeiro] diz do partido, e do qual várias pessoas se queixavam à época em surdina… Neste tipo de coisas, aquela direção é absolutamente implacável. A relação com Mithá Ribeiro foi sempre conflituosa. O partido não liga muito às questões ideológicas. Como ele próprio diz, várias vezes entregou várias coisas e Ventura não as leu. Ele nunca se reviu naquela forma "taberneira" de fazer política. Dentro daquele universo – podemos gostar ou não – é um homem que tem ideias sobre a Direita onde milita.

No próprio dia em que o entrevistei, estava numa convenção autárquica do Chega, no Norte. Quando ele subiu ao palco para falar, metade da sala saiu ou bocejou. Portanto, o partido nunca esteve muito disponível. A ideia era entregar qualquer coisa ao Mithá Ribeiro para ele se entreter, para dar uma imagem de seriedade ideológica e de substrato ideológico que o partido podia, depois, aproveitar. Na verdade, ele nunca conseguiu fazer grande coisa. Basta falar com algumas das pessoas que trabalharam no gabinete de estudos para perceber isso; aquilo foi até onde André Ventura considerou útil. Desde a última polémica, ele já era mais tolerado do que respeitado. Agora, tiveram o pretexto. Não sei se iniciaram já uma caça às bruxas, mas vão continuar com azar, porque continuo a falar com muita gente do Chega do topo até à base mais base que existe.

Então, qual é, afinal, a ideologia do Chega?

Não tem. Ou seja, é a espuma dos dias, é para onde sopra o vento. Várias pessoas descrevem como é que os projetos de lei eram apresentados – quando eram apresentados, porque alguns eram só anunciados para fazer furor na comunicação social. Ouvia-se a rádio de manhã, via-se o que é que estava "a bombar" e toca a fazer um projeto de lei. Comparar o Chega com outros partidos da sua família política, os Patriotas pela Europa, do ponto de vista do substrato ideológico, é um erro tremendo; é comparar água com vinho. O Chega não fez esse trabalho. Mithá Ribeiro tentou, Diogo Pacheco de Amorim aqui e ali também, mas não está, a meu ver, ao mesmo nível. Jaime Nogueira Pinto poderá ter dado umas dicas em determinada altura, mas também não é visível naquilo que o Chega pretende. Portanto, é uma coisa que, como diz Gabriel Mithá Ribeiro, funciona pela intuição e pelo instinto de André Ventura.

Em 2021, Ventura defendeu que, caso ganhasse Câmaras nas eleições autárquicas, ia ter mão pesada para as comunidades ciganas, mas nem sequer discutiu isto na direção; foi uma coisa que tirou da sua própria cabeça e foi para a frente. Estarmos a comparar este partido com um Vox que, goste-se ou não, além de ter no seu seio resquícios da tradição franquista, das várias direitas de Espanha, faz trabalho ideológico, é completamente estúpido, além de todas as contradições do próprio Ventura em relação ao papel do Chega no plano internacional. A Alternativa para a Alemanha (AfD) já não faz parte deste grupo, mas ele dizia, em 2020, numa entrevista ao Público, que a AfD era uma coisa horrível e impensável. No ano passado, esteve no congresso a dizer que a AfD é o futuro da Alemanha. Isto é tudo menos ideologia.

É como se André Ventura tivesse 10 ou 12 temas e o eleitor do Chega, de uma forma geral, – há gente que está lá sabendo muito bem o que quer e o que está a financiar –, vai buscar três ou quatro. Depois, é tudo muito contraditório. Há gente que detesta que ele diga o que diz dos ciganos, mas concorda com o que ele diz sobre os imigrantes, e vice-versa

Há aquela aproximação com Salazar com 'Deus, Pátria, Família e Trabalho' mas, tirando isso…

É mais simbólico do que outra coisa. Um dos seus apoios, em parte até financeiro, vem de gente saudosista desse período, de uma certa elite financeira que foi derrotada no 25 de Abril e que tentou fazer a contrarrevolução, de quem Diogo Pacheco de Amorim é bastante próximo. É uma tática constante do Chega, por isso é que pode ser tudo e o seu contrário, pode ir buscar Esquerda e Direita. Esse é também um problema para quem quer fazer uma cobertura regular, do ponto de vista informativo, deste partido. Um dos erros que cometemos foi pretender analisar o Chega com os padrões que habitualmente usávamos para os outros partidos.

Pois, porque não é a extrema-direita tradicional.

Não há tradição de nada. Quando comparo o Chega a um restaurante, é nesse sentido. A última vez que olhei para o meu telemóvel, tinha cento e tal contactos do Chega, entre os que estão e os que saíram, com quem falo com alguma regularidade, para saber o que pensam sobre isto e aquilo. O Chega é um partido que rompe com tudo o que tínhamos para trás. Se fores militante ou eleitora de um dos partidos que já conhecemos há muitos anos, a 70 ou 80% concordas com o que dizem. Podes não gostar, achas que o governo X foi melhor do que o governo Y e que o líder melhor foi este e não aquele. Até podes não gostar de determinadas políticas mas, no geral, estás de acordo com as ideias. O Chega não é assim. É como se André Ventura tivesse 10 ou 12 temas e o eleitor do Chega, de uma forma geral, – há gente que está lá sabendo muito bem o que quer e o que está a financiar –, vai buscar três ou quatro. Depois, é tudo muito contraditório. Há gente que detesta que ele diga o que diz dos ciganos, mas concorda com o que ele diz sobre os imigrantes, e vice-versa.

Encontrei militantes, no caso até dirigentes da época no Chega, a ter um discurso sobre a subalternidade das mulheres na nossa sociedade, a perseguição às mulheres, etc., que parecia o discurso do Bloco de Esquerda (BE). Para eles, não há problema nenhum. Aliás, quando alertei a pessoa que me estava a dizer isso a resposta foi, 'mas isso é um problema vosso, não é meu'. Isto é altamente disruptivo. A questão já não é ideológica, é de outra coisa que as redes sociais proporcionaram, é de engagement, é de estímulos. São coisas que não têm nada a ver com ideologia, por isso é que eles podem ir buscar gente a todos os partidos – e vão.

Assim, como é que se combate um partido que consegue agregar tudo e o seu contrário, recorrendo, inclusive, a notícias e a informações falsas, que acabam por colocar as pessoas umas contra as outras?

Esse é o objetivo. É receberes o Rendimento Social de Inserção (RSI) e achares que o do lado, que está na mesma situação, não deve receber. Uma das coisas que vi e que foi uma inspiração para explorar essa ideia foi o filme do Ken Loach, 'The Old Oak'. Quando chega um grupo de refugiados sírios a uma comunidade britânica bastante empobrecida, que tinha sido um baluarte mineiro, com tudo o que isso significa de laços comunitários, de entreajuda, de dignificação da própria profissão junto da comunidade, [esse grupo surge] como uma grande ameaça. A principal figura do filme, que gere o último pub daquela terra, diz que o grande problema é que esmurras a pessoa que te está próxima ou que, segundo o teu entendimento, ameaça diretamente o teu pão. Nunca vais esmurrar a pessoa que te pôs nessa situação, porque essa está lá em cima. Tanto está no céu, como no CEO. Essa pessoa não está à mão para ser esmurrada; esse capitalismo selvagem e essas elites financeiras e económicas que também nos trouxeram aqui não vão levar o soco, porque tens ali alguém ao lado que vem ameaçar o pouco que já tens. Não vem, mas achas que vem.

Ventura explorou isso muito bem e fê-lo com muita inteligência. Houve uma altura, no início do Chega, em que ele foi a zonas do Interior onde não ia um político há muito tempo. Não foi levar nenhuma solução, como se calhar não leva hoje, as promessas são as que sabemos, sempre aos berros e com grande gritaria, mas as pessoas sentiram-se acolhidas. Ele foi o saco de boxe dessa gente, como ainda é.

Ao mesmo tempo, foi o psicólogo.

Sim, isto é psicologia social. As pessoas foram tão tramadas na vida, tramadas por governos que faltaram à palavra – não todos, mas a verdade é que as minhas conversas com militantes, eleitores e ex-dirigentes do Chega no Interior do país e em zonas suburbanas nunca começaram pelos ciganos, nem pela imigração. Começaram pelos problemas concretos da sua terra; a estrada que foi prometida e não foi feita, aquele hospital que era para ser construído e não foi, a escola que era perto e, agora, está a 30 quilómetros ou não está, o posto de correios que fechou. O Estado abandonou grande parte deste território, não é de hoje. Assim, fica o terreno livre para o ressentimento, para a raiva, para pessoas que não têm a literacia mediática e política para perceberem em que mundo é que estão.

Ouço muito falar de literacia mediática para os jovens, mas há adultos a precisar disso. A Joana Gonçalves de Sá, provavelmente uma das melhores cientistas deste país, que tem estudado com afinco a forma como as pessoas reagem à desinformação, já disse várias vezes que muitas das partilhas de fake news são feitas por pessoas que têm alguma instrução. São pessoas que até leem um livro, de vez em quando, que acompanham os telejornais, que até vão ao teatro ou ao cinema, de longe a longe. Como têm algum consumo informativo e cultural, acham-se superiores às outras e capazes de distinguir muito bem a informação que circula nas redes – é mentira, só procuram aquela que vai ao encontro das suas convicções, e isso é outro problema.

É o chamado confirmation bias.

Exatamente. Tens gente cujo quotidiano é de grande fragilidade. Falei com muitos deles que estão no Chega. São quotidianos muito difíceis e as pessoas querem narrativas simples. Segui o percurso de dezenas de militantes ou eleitores do Chega que andam há décadas a candidatar-se a concursos públicos, nas mais diversas áreas. Candidatam-se para jardineiros em Câmaras, para escolas, para institutos públicos; às vezes, estão em seis ou sete concursos ao mesmo tempo. Começaram este calvário em 2005 ou 2010, vamos supor, e continuam. Se cruzares informações, percebes que a vida deles é completamente diferente daquilo que eles sonharam. Esta gente que se candidata a estes concursos, que falha porque não tem currículo suficiente, que falta a provas de aptidão cultural ou física, no caso da GNR e da PJ, tem vidas tão difíceis que, muitas vezes, não tem tempo para olhar para dentro de si e perceber que não consegue porque não tem as bases. De um momento para o outro, aparece alguém que diz: 'Não, a culpa não é tua, a culpa é do sistema. És uma mulher ou um homem do caraças, tens tentado, tens-te esforçado, não consegues não por causa do teu currículo, mas porque isto está tudo minado pelo sistema, é tudo cunhas.' Em quem é que vais acreditar? Isto dá uma resposta simples a estas pessoas. Por isso é que, durante a pandemia, se acreditou em muitas parvoíces, e por isso é que se continua a acreditar em muito do que o Chega diz, por muito que o Chega minta todos os dias.

As pessoas estão num grande momento de fragilidade. Ou não têm formação, ou não conseguem, pelo seu quotidiano, ter tempo para coisas complexas. A Joana dava muito este exemplo e eu também o encontrei: como é que podes pedir a uma mulher que se levanta, em Almada, às quatro da manhã, para ir limpar cinco escritórios, em Lisboa, fazendo grandes viagens entre eles, se calhar nem vê os filhos, que chegue às onze da noite a casa e vá assistir a um debate com ideia complexas? Quando muito fará scroll e estará ali 10 minutos ou meia hora a ver coisas completamente fora de tudo. Solução para isto não tenho, mas há uma coisa que sei, com base naquilo que me disseram: se começarmos a resolver problemas às pessoas, que estão identificados há muito tempo, terra a terra, se calhar o Chega não tem muito por onde ir buscar. As pessoas sentem a falta da palavra dada, sentem que foram abandonadas e vingam-se de alguma maneira. Começar por resolver alguns destes problemas e não arranjar desculpas em cima de desculpas, mentiras em cima de mentiras, não deixará grande futuro ao Chega.

Notei que a grande maioria dos ex-militantes e dirigentes confessou, nas conversas que manteve consigo, temer que André Ventura venha a exercer um cargo governamental. Que sinais é que isso nos dá para a democracia? Será que o país terá de chegar a esse ponto para que o partido seja esvaziado?

Há gente que acha que o melhor que pode acontecer, com alguma ironia à mistura, é Ventura chegar a primeiro-ministro rapidamente, porque em seis meses vai ver-se a total incapacidade de gerir o país. Aliás, há gente no Chega que receia o facto de o partido poder ganhar Câmaras – e eu acho que vai ganhar umas poucas. Ganhando Câmaras, pela primeira vez teremos exemplos do Chega num executivo de alguma coisa, o que será uma montra para o governo Chega. Não vai ser bonito, tendo em conta os sucessivos casos que vamos sabendo, num partido com tão poucos anos, que atraiu uma legião de oportunistas e de gente fanatizada – lá em cima.

Vamos imaginar que o Chega ganha seis Câmaras, algumas com visibilidade. Sei que há alguma preocupação no sentido de, pela primeira vez, o Chega poder ficar na montra a gerir executivos, porque não tem gente com capacidade, tarimba e integridade suficiente para o fazer. Portanto, se chegar ao governo, o que em 2020 parecia distópico, vamos ter de apanhar os cacos sabe-se lá durante quanto tempo para, pelo menos, recuperarmos a posição em que estamos hoje. Serão mais não sei quanto anos perdidos. Isto pode fazer com que as pessoas se desiludam para sempre em relação a partidos como o Chega, mas não sei se não terá consequências na mesma para a democracia. O Chega pode esvaziar-se, o próprio André Ventura pode deixar de ser líder, mas não eliminamos o 'Ventura Country', como nos Estados Unidos não se conseguiu eliminar o 'Trump Country'. Ou resolvemos o problema do 'Ventura Country', que estará cá mesmo depois de ele ir embora, ou então é melhor metermos a viola no saco, porque vai ser muito mais complicado do que o que aparenta ser hoje.

Ao mesmo tempo, Ventura avançou como candidato às Presidenciais de 2026, equacionou ser cabeça de lista a Lisboa nas eleições autárquicas, admitiu afastar-se da corrida a Belém depois do resultado das eleições legislativas, e anunciou, oficialmente, ser candidato a Presidente da República, apesar de não ser o seu "desejo". Portanto, quer poder a todo o custo? Esta constante procura de ser candidato a tudo não desgasta a sua imagem?

Já ouvi essa conversa do desgastar nas eleições presidenciais anteriores. Ele é a única imagem que não se desgasta, aparentemente. Aparece em todo o país, ao lado dos candidatos, e acho que não haveria a votação que há no Chega se não tivesse presença efetiva no território nacional. Ventura já quis ser tudo e mais alguma coisa: escritor, presidente do Benfica… Antes era o Eusébio que lhe falava ao ouvido, agora é Deus. Tem sempre uma missão que alguém lhe pede, vinda do Além. Obviamente que, quando digo que isto é um projeto de poder pessoal, também tem a ver com isso. A única pessoa que ele permitiu sombra, como sabemos, é Rita Matias, pelas razões que também sabemos – foi buscar uma parte do eleitorado em que os dois funcionam muito bem. Sobretudo em termos de redes sociais, conseguiram encontrar uma narrativa e um folclore que vai ao encontro do universo juvenil e estudantil, que adere com grande facilidade àquilo porque, mais uma vez, não precisa de pensar muito.

Hoje, Ventura tem um domínio sobre o partido que o TC já alertou não ser o mesmo em 2020 ou 2021, ainda que muitas das dissidências ou das críticas viessem de pessoas também bastante destituídas. Não podemos olhar para a dissidência no Chega como uma virtude generalizada, porque houve gente que achou que o Chega virou à Esquerda ou que a direção fazia rituais satânicos com crianças em Sintra. Outros saíram e foram parar ao Alternativa Democrática Nacional (ADN), que não sei se dista muito de alguns setores do Chega. Agora, Ventura tem um partido absolutamente controlado como nunca teve e toda a gente vê nele o seu próprio futuro.

Quando falava há pouco de pessoas que não eram nada antes do Chega, que tinham a sua vida pessoal, profissional e política de pantanas, que não lhes permitia almejar uma situação como esta... Obviamente que jogam todas as fichas numa figura como Ventura. Se ele hoje diz, 'não quero ser Presidente', muito bem. Se amanhã diz, 'quero ser Presidente', muito bem na mesma. Tenho sérias dúvidas de que tenha havido a tal divisão internamente; acho que houve vozes críticas, mas não tantas como ele diz, porque toda a gente sabe que ele é o abono desta família. As pessoas aceitarão acriticamente tudo o que Ventura decidir fazer para manter o partido ou a causa com este peso na política portuguesa. Houve um tempo em que lhe diziam algumas coisas internamente mas, agora, não têm essa coragem, nem há ninguém com esse estatuto e integridade.

Quem me diz a mim que a estratégia definida nesse almoço não foi André Ventura insultar o almirante e o almirante poder alegar, em público, 'credo, que vem aí a extrema-direita'. Têm os dois a ganhar com isto, porque Ventura não quer ser Presidente da República. A pior coisa que pode acontecer a André Ventura é ser Presidente da República, não é esse o projeto. Acontecer não é mau, mas não é esse o projeto. O sistema presidencialista que ele quer não se faz a partir de Belém, faz-se a partir da chefia do Governo

A propósito do TC, o próprio André Ventura assumiu, em junho deste ano, estar-se "nas tintas" para a credibilidade dessas instituições, tendo dito que apenas lhe "interessa a credibilidade de uma entidade: o povo português". Portanto, enquanto o povo mostrar estar a seu lado, André Ventura não olhará a meios e passará por cima de tudo e de todos para atingir os seus fins – sejam eles quais forem?

Sim, mas há aí uma questão muito importante e que vem dos últimos meses. Acho que ultrapassa mais uma fronteira, que ele não tinha ultrapassado. Pela primeira vez, temos André Ventura a borrifar-se para a separação de poderes. Isto podia ser feito de uma maneira mais rebuscada, até há pouco tempo, mas agora é feito de uma forma muito declarada. Isso que citaste é um ponto, aquilo que ele disse há poucos dias [é outro]: "Se for primeiro-ministro, mando prender Isaltino Morais." Portanto, Ventura já está naquela fase em que a separação de poderes, mesmo em relação ao Parlamento, não lhe faz qualquer sentido.

Estas teses de que pode ser Presidente da República e, ao mesmo tempo, chefiar o Governo, por interposta pessoa, não foi Rita Matias que pôs a correr, foi Diogo Pacheco de Amorim, uns dias antes, no Observador. Esta ideia de que o que conta é o partido, o que conta é o povo, que é muito mussoliniana, é muito evidente de há seis meses para cá e é uma mudança de chip no próprio Chega. Pela primeira vez, de uma forma muito declarada e ostensiva, a questão da democracia, para citar Manuela Ferreira Leite, é uma coisa que pode ser suspensa com alguma facilidade e durante algum tempo. Até a forma completamente arruaceira como se comporta em estúdio, quando é convidado para ir às televisões, denota alguém que está sem freio e a achar que este lastro eleitoral que tem vai dar-lhe para muita coisa.

Portanto, ele está convencido de que vai ganhar?

Não. Há uma coisa que aconteceu para a qual acho que não foram dadas todas as explicações e valia a pena investigar: o célebre almoço em Torres Vedras, na Quinta da Carlota, do empresário Mário Ferreira, que é dono de órgãos de informação. Já de si há aqui uma coisa muito interessante, que é termos um empresário dono de órgãos importantes de informação a promover um almoço entre um candidato assumido e um potencial candidato que, supostamente, se hostilizam. Tanto o almirante Henrique Gouveia e Melo, como André Ventura falaram muito pouco sobre esse almoço. Confirmaram-no quase ao fim de 15 dias, com muito poucos detalhes, e dando a entender que simplesmente conversaram e que concluíram que era impossível qualquer tipo de entendimento. Já levo alguns anos disto e admitia a hipótese de se olhar para o lado B da história: um empresário que tem o seu cavalo nesta corrida, que apoia declaradamente, achar que tem de garantir um segundo cavalo porque, ganhando um ou outro, está tudo dentro daquilo que considera necessário para a Presidência da República.

Antes desse almoço, André Ventura foi às televisões admitir a hipótese de apoiar o almirante e falou dele com algum respeito. Acontece o almoço e, a seguir, dá uma nova entrevista em que metaforicamente quase que atira o almirante para debaixo de um camião; foi absolutamente insultuoso. André Ventura, que é o líder que melhor fixa o seu eleitorado, tem amplas possibilidades, com a Esquerda dividida, de chegar a uma segunda volta.

Quem me diz a mim que a estratégia definida nesse almoço não foi André Ventura insultar o almirante e o almirante poder alegar, em público, 'credo, que vem aí a extrema-direita'. Têm os dois a ganhar com isto, porque Ventura não quer ser Presidente da República. A pior coisa que pode acontecer a André Ventura é ser Presidente da República, não é esse o projeto. Acontecer não é mau, mas não é esse o projeto. O sistema presidencialista que ele quer não se faz a partir de Belém, faz-se a partir da chefia do Governo. Lá está, se calhar suspendendo a democracia por um tempo. Na mesma ocasião, aparece uma sondagem que algumas pessoas mais entendidas do que eu consideraram que tem falhas graves do ponto de vista técnico. Não estou a dizer que é pelo facto de a Aximage também fazer sondagens para o Folha Nacional que ela está contaminada, porque sabemos que, no meio dos estudos de opinião, várias empresas fazem sondagens para os partidos. Mas, ter surgido a seguir a esse almoço, também poderia levantar algumas questões. Se calhar estamos a olhar ao lado e devíamos olhar para aquilo que pode ser, efetivamente, uma versão B.

Hostilizar aquele eleitorado, com os mais diversos preconceitos, não nos vai trazer nada de bom. Outra das coisas que ouvi, sobretudo em zonas de Interior, foi que os 'abutres' só aparecem quando há incêndios ou histórias de faca e alguidar. Temos zonas do país que são desertos de notícias; as pessoas não têm mais nada a que recorrer a não ser às redes sociais. Não temos presença efetiva, os jornais fecharam delegações, já quase não têm correspondentes. As pessoas sentem que a comunicação social também deixou de olhar para todo o território como olhava antes

Tocámos na questão das redes sociais, sendo que a primeira equipa, que 'conquistou' o voto evangélico, era encabeçada por Lucinda Ribeiro. Depois, Rita Matias chamou os jovens, que se mostram cada vez mais permeáveis aos fenómenos da extrema-direita e do neonazismo. Mas, afinal, que papel é que o PSD e as lideranças de Pedro Passos Coelho e de Rui Rio tiveram na normalização do Chega?

Pedro Passos Coelho, nas poucas declarações que vai fazendo, mostra que não está nada arrependido e dá a entender que há alguma sintonia com algumas coisas que o Chega defende e com a própria pessoa de André Ventura. Portanto, se alguns pensavam que ele ficou um bocado atrapalhado em 2017, as suas sucessivas declarações públicas não dão nada a entender isso. Quanto a Rui Rio, acho que ele nunca o vai admitir publicamente, mas há algumas pistas na entrevista que lhe faço de que está arrependido da forma como geriu aquilo. À época, não conhecia o Chega em toda a sua profundidade; achava que era um partido de um homem só e que bastava saber lidar com André Ventura, tentar domesticá-lo, para que o Chega ficasse dentro do reduto democrático dos partidos tradicionais. Viu-se. O caso dos Açores normalizou o Chega perante os eleitores.

Hoje, temos o Chega a ser uma espécie de braço político de movimento extremistas, neonazis, etc., em algumas matérias, nomeadamente a questão da imigração, e a AD tornou-se uma espécie de braço político do Chega. Parece uma pescadinha de rabo na boca. Os dois partidos, PSD e CDS, adotaram, em relação a alguns temas, uma versão suave do Chega, achando que com isso vão domesticar ou esvaziar o Chega. Não vai acontecer, porque as pessoas vão sempre preferir o original à fotocópia.

E que tipo de resistências encontrou? Houve fontes com medo de falar, tentativas de pressão ou intimidação?

Para o que calculava, acabei por falar com muita gente, e em ON. Houve um ou outro dirigente de zonas de Interior que, na fase da sua saída do partido, fez um luto que não implicava falar comigo. Queria fechar o seu percurso no Chega, encerrar aquela porta e nunca mais abordar esse assunto. Não foram muitos, verdadeiramente. Houve recusas formais, como Rita Matias, que disse que não falava com um jornalista como eu, e Pedro Frazão, que chegou a estar com uma entrevista combinada comigo mas, depois, recusou. De resto, 90% do livro é o Chega a falar do Chega. Há pessoas que falaram pela primeira vez que nunca achei possível.

Tem também que ver com a relação que estabeleci com muita gente que passou por lá e que ainda hoje lá está. As pessoas podem acreditar em tudo o que eu seja enquanto cidadão e nas convicções que eventualmente possa ter, mas ninguém ou quase ninguém pode dizer que não fiz um esforço no sentido de as ouvir. Tenho conversas de cinco ou seis horas em que o tema Chega ocupa 30%, porque quis efetivamente conhecer essas pessoas. Ainda hoje há gente do Chega que me manda postais de Natal, porque respeita o jornalista para lá daquilo que ele possa ser enquanto pessoa. Fiz um esforço, e eles também fizeram, no sentido de, no meio disto tudo, encontrarmos um espaço de diálogo e de troca de impressões, que acho que é absolutamente essencial nos dias que correm.

Hostilizar aquele eleitorado, com os mais diversos preconceitos, não nos vai trazer nada de bom. Outra das coisas que ouvi, sobretudo em zonas de Interior, foi que os 'abutres' só aparecem quando há incêndios ou histórias de faca e alguidar. Temos zonas do país que são desertos de notícias; as pessoas não têm mais nada a que recorrer a não ser à redes sociais. Não temos presença efetiva, os jornais fecharam delegações, já quase não têm correspondentes. As pessoas sentem que a comunicação social também deixou de olhar para todo o território como olhava antes. Ou recuperamos isso e ouvimos o que as pessoas têm a dizer sobre as suas próprias vidas antes de irmos lá insuflar ou incendiar o clima, por causa do cigano ou do imigrante, ou estaremos também a contribuir para que o Chega chegue exatamente onde quer. Se em 2020 era difícil, porque as pessoas achavam que não podiam dizer que eram do Chega, já que isso podia trazer-lhes problemas, hoje essa questão já não existe; as pessoas falam abertamente e até o dizem com orgulho. [Acontece o mesmo com] os grandes apoiantes do MAGA, que têm consciência de que Trump mente e que usa falsidades para chegar onde quer, mas fala por eles, berra por eles, diz o que eles não podem dizer às elites.

Fazendo ele parte da elite.

Fazendo ele parte da elite e tendo ele a elite a financiá-lo; é exatamente como André Ventura. Senti isso no terreno ao longo destes cinco anos. Se essas pessoas que votam regularmente no Chega e, às vezes, até tiram ao seu pouco orçamento familiar para pagar a quota, soubessem o que é feito dentro do partido em nome delas, acho que vinham por aí abaixo e não ia ser um espetáculo bonito. Mas muitas não estão informadas. Há muito Portugal de sofá no Chega, ou Portugal de café. Vais por esses cafés fora e tens os canais de televisão sensacionalistas ligados. Há um Portugal de sofá que não tem currículo cívico, muitos até não votavam até aparecer o Chega, não vão a uma manifestação, não se juntam a uma associação para defender os seus interesses ou para promover uma atividade; é um Portugal de sofá que só conhece André Ventura da televisão. Esse é simpático para as convicções que as pessoas têm, sejam elas quais forem. Acham que, em três ou quatro coisas, ele é a única pessoa que as defende. Portanto, no domingo X, sairão à rua para votar nele. Só que isto também pode ser combatido com um outro olhar jornalístico, com presença efetiva do jornalismo sério e íntegro nas regiões, e com políticos que saibam honrar a palavra dada, o que, muitas vezes, não tem acontecido. Tudo junto pode fazer alguma coisa, mas sempre a uma velocidade diferente daquela que o Chega tem.

Como citou no livro, João Taborda da Gama considerou que "Rita Matias está num pequeníssimo lote de mulheres com reais possibilidades de ser primeira-ministra na próxima década", à boleia dos futuros eleitores que estão agora a cumprir o ensino básico e secundário. Porque é que, até agora, esta jovem foi a única que conseguiu fazer sombra ao líder? Há uma cartada interesseira por detrás, ou estará André Ventura de facto a pensar a longo prazo?

Acho que ele nunca projetou esse futuro, sinceramente. Ela foi líder da Juventude Chega e começou a ter uma grande influência sobre os filhos de certas famílias de alguma elite política e financeira que também andam à volta do Chega. Mas, depois, percebeu também que tinha algum lastro junto de jovens normais, por essas escolas fora. Os dois concluíram que as dinâmicas que ambos criavam nas redes sociais funcionavam quase como um foguetão junto dessa gente. Obviamente que Ventura, percebendo isso, permitiu-lhe um gás e um estatuto que não cedeu a mais ninguém. 

Ainda assim, estamos a falar de uma mulher que é um poço de contradições, que vive numa bolha de desinformação que propaga sem olhar para o amanhã, e o seu público-alvo não tem bases de literacia mediática para distinguir isso. Parece que há quase uma aposta da própria família na ascensão da Rita Matias que, no início do Chega, pensava coisas muito diferentes sobre o partido do que pensa agora. Aliás, num primeiro impacto, quando o pai acaba com o Partido Cidadania e Democracia-Cristã (PPV/CDC) e adere ao Chega, ela não gosta muito. Acha que André Ventura é uma cópia do pior que há no Trump e no Bolsonaro – e, se calhar, tinha razão nessa altura. A dado momento, Rita Matias percebeu, oportunisticamente, que o caminho era por aqui. 

Ela é, de facto, um fenómeno incomparável junto da juventude; tem boa aparência física, fala uma linguagem que eles entendem. O Chega é, ironia das ironias, disruptivo como alguma Esquerda foi no passado – até há malta que diz que parece punk. Quando estás a formar a tua mentalidade, a estruturar-te como jovem adulto, tudo isto faz muito sentido. Ela fala inclusive com muitas crianças que ainda não estão em idade de votar e que podem ser, de facto, o futuro do Chega. Portanto, tem a passadeira estendida. Depois, já começa a ter muitas ligações externas no Brasil, na Hungria, em Espanha. Do ponto de vista ideológico, o irmão, José Maria Matias, é mais bem preparado, é uma pessoa mais interessante e estruturada, mas a irmã tem um poder afetivo e de influência junto destas camadas que só lhe pode garantir futuro no Chega.

Acho que João Taborda da Gama, no sentido de querer alertar para o perigo que aí vem, dramatizou um pouco. Temos de ter cuidado com os cenários que projetamos, mas acho que é altamente inviável que Rita Matias chegue a substituir André Ventura a médio ou longo prazo. Não é um cenário que se coloque e acho que há muito André Ventura [por vir]. Agora, é uma pessoa que ele não pode dispensar. A pior coisa que podia acontecer ao Chega neste momento era haver um conflito com Rita Matias ou ela achar que o caminho não é por aqui.

Se acontecer isso, o partido acaba?

Não, porque temos o tal problema anterior. O Chega é reflexo de um país que está angustiado, que está revoltado, que vive situações dramáticas, que olha para a classe política com desdém absoluto, que se habituou a que ela não cumprisse o mínimo. Portanto, ou resolvemos isso, ou teremos outros Chega e outros André Ventura. Acho excessivo tanto da nossa parte, como de comentadores, e até do próprio combate político pelas forças adversárias do Chega, centrar a discussão toda em André Ventura. Raramente se olha para o fenómeno como ele tem de ser olhado. É um fenómeno muito mais complexo do que André Ventura e a sua direção, feito por pessoas que, como digo no livro, não vieram de Marte, já estão cá e têm, antes de tudo, de ser ouvidas e tratadas com o mínimo de respeito, porque não é pelo facto de terem ido para ali num determinado momento das suas vidas que ficarão eternamente.

Há pessoas que estariam sempre no Chega, sabemos isso. Daqueles 23% das Legislativas, se calhar 10% estariam sempre ali: as Direitas que sempre andaram nas franjas e viram ali o seu sonho húmido de poder, uma Direita mais ideológica que nunca teve um partido onde se reconhecesse minimamente, saudosistas do antigo regime, elites financeiras e económicas, latifundiários, pequenos e médios comerciantes que foram antigos combatentes… Toda essa gente estaria sempre ali. Falo é do resto, de pessoas que, nas zonas onde vivem, sejam elas suburbanas ou do Interior, vão para o Chega por razões que, às vezes, não sabem explicar, porque definem como alvo determinadas comunidades e determinados segmentos, porque aquele discurso explica o que estão a viver e não têm profundidade, nem literacia suficiente para ir mais além. Os adversários do Chega muitas vezes não fizeram um trabalho de compreensão destas razões como deveriam ter feito. Portanto, ou olhamos para esse eleitorado com outra atenção, com outro respeito, com capacidade de compreender, ou estaremos a entregar de vez esse eleitorado – e até a engrossá-lo – ao Chega. Não é resolvendo o problema Ventura.

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