Foi graças aos vídeos nos quais explica a história por trás das palavras, bem como outras peculiaridades da língua portuguesa, que Marco Neves se tornou conhecido nas redes sociais. Todos os dias, seja no Instagram ou no TikTok, o professor e tradutor deixa os seguidores surpreendidos ao desvendar os segredos de expressões que são tão familiares aos falantes do idioma de Camões.
Em conversa com o Notícias ao Minuto abordou a influência que a língua inglesa tem - cada vez mais - nos jovens, do aumento do consumo de conteúdos do Brasil por parte dos mais novos e da ideia errada de alguns que ainda pensam que se fala melhor português em determinadas partes do país, neste caso Lisboa e Coimbra.
Quando é que surgiu esta paixão pelas palavras?
Quando era criança/adolescente, o meu sonho era ser historiador, mas sempre gostei muito das línguas. Acabei por ir para Línguas e Literatura, mas a paixão pela História nunca desapareceu e, por isso, o que eu gosto mesmo é a história da língua e das palavras.
Os seus alunos dão-lhe ideias de vídeos que pode gravar para o Instagram?
Às vezes dão… Dou aulas sobretudo na área da tradução, que junta a linguística, a história e também a parte mais prática. Dou aulas a alunos que estão a estudar para ser tradutores, mas também professores de português ou inglês. Falamos de alguns assuntos que vão para os vídeos, mas acaba por não haver uma ligação direta.
Dá aulas há quanto tempo?
Desde 2011, vai fazer 14 anos.
Não tenho nada contra o inglês, acho muito bem que as pessoas o saibam, mas estarmos a chegar a um ponto em que os mais jovens só leem em inglês é preocupanteE percebe diferenças na forma como os alunos chegam à universidade?
Eu sei que a maior parte dos meus colegas diria que chegam menos preparados, mas isso é uma tendência tão forte… É claro que os alunos mudam e têm outros interesses. Uma coisa que me surpreende é que não há tanto à vontade com as novas tecnologias como as pessoas pensam que os mais novos têm. Vejo muitas pessoas com 18/19 anos com dificuldades em trabalhar com o computador, não com o telemóvel.
Quanto à língua - e isto é a minha impressão - os alunos estão a ler cada vez mais em inglês. Os meus colegas ingleses dizem que os alunos escrevem melhor do que escreviam e os portugueses dizem que estão a escrever pior.
Há este ponto curioso que me preocupa um pouco. Não tenho nada contra o inglês, acho muito bem que as pessoas o saibam, mas estarmos a chegar a um ponto em que os mais jovens só leem em inglês é preocupante.
Isso acontece porquê?
Há uma comunidade mais internacional de interesses. As pessoas querem de imediato ter acesso àquele livro e o livro sai primeiro em inglês. Há alguns países que estão a tentar contrariar isto ao lançar as traduções ao mesmo tempo ou até antes do original. As coisas estão mais acessíveis em inglês - e mais baratas, isso também é um fator.
Podemos reclamar muito e estar para aqui aos gritos a dizer que as pessoas deveriam ler mais em português, mas a única solução é publicar coisas em português que as pessoas queiram ler, que as traduções saiam depressa.
Sempre tivemos uma língua de prestígio em Portugal. No século XVI, quando Camões escrevia, era o castelhano, ele imitava e usava palavras castelhanasNesse sentido percebe-se também que as expressões em inglês têm sido cada vez mais populares.
Não são os tradutores que têm culpa disto, porque até se preocupam em procurar a palavra, é mesmo a sociedade em geral, que ao estar a comunicar muito em inglês acaba por usar estas palavras.
Virando para a parte da histórica: sempre tivemos uma língua de prestígio em Portugal. No século XVI, quando Camões escrevia, era o castelhano, ele imitava e usava palavras castelhanas (digo castelhano, porque na altura ninguém dizia espanhol). Depois foi o francês, a partir do século XVIII era a língua que todos imitávamos.
Todos aprendemos inglês na escola, o que é bom, mas temos esta tendência natural para gostarmos muito de uma língua em particular. Não tenho nada contra os estrangeirismos à partida, porque sempre aconteceram, o que digo é que estamos com uma dieta muito pobre, só vamos buscar ao inglês.
Temos de ter cuidado em usar palavras portuguesas sabendo que em alguns casos é inevitável que as palavras inglesas entrem. É estarmos atentos e não permitir que aconteça o que já aconteceu em outras sociedades em que vamos usando tantas palavras de uma língua em que de repente já estamos a usar a língua. Posso estar a exagerar, mas acontece.
Aqui ao lado em Espanha - é uma situação muito diferente - [mas] aquelas outras línguas que não o espanhol, por exemplo o galego, era uma língua de quase 90% da população há poucos anos, agora já é menos de metade. As pessoas foram usando cada vez mais o espanhol e viram a sua própria língua quase desaparecer. Temos de ter cuidado para daqui a alguns anos não termos os miúdos só a falar inglês entre eles.
Em Portugal temos esta mentalidade que acaba por ser certeira no contexto europeu em que falamos uma língua pequena, pouco falada na Europa. Isto leva-nos a ter alguma insegurança e a achar que temos de falar outras línguasParece-me que sempre existiu um complexo de inferioridade em relação à língua portuguesa, por não ser considerada uma língua tão 'cool'.
Temos uma certa mentalidade em que dizemos da boca para fora 'o português é falado por 200 e tal milhões de pessoas', mas sabemos que é falado principalmente na América do Sul, no Brasil e em África.
Em Portugal temos esta mentalidade que acaba por ser certeira no contexto europeu em que falamos uma língua pequena, pouco falada na Europa. Isto leva-nos a ter alguma insegurança e a achar que temos de falar outras línguas.
As pessoas ficam muito surpreendidas quando eu digo que há milhares de pessoas a aprender a falar português pela Europa fora, e não é só por causa do Brasil, muitos querem aprender português europeu. Aliás, quando vou à Galiza ou até aqui a Badajoz falar com alguns alunos, eles queixam-se que os portugueses não os deixam falar português, porque estão tão habituados a que os espanhóis não queiram falar português que passamos logo para o espanhol ou para o 'portunhol'.
Às vezes temos também de assumir que a nossa língua, apesar de não ser a mais falada do mundo, também não é uma língua tão pouco falada e há mais pessoas interessadas nela. Temos de ter um pouco mais de orgulho (embora seja uma palavra perigosa).
Perante a influência do Brasil e do inglês (que tem uma influência muito superior), a irritação vai só para o português do BrasilFalando do Brasil, como é que vê esta tendência de as crianças falarem com recurso a expressões brasileiras, gerúndios, etc.
Temos um complexo de superioridade dentro da língua e depois temos um complexo de inferioridade em relação a outras línguas. Perante a influência do Brasil e do inglês (que tem uma influência muito superior), a irritação vai só para o português do Brasil.
Os brasileiros fazem muitos materiais para a internet, se os portugueses acham que os miúdos estão a ver demasiadas coisas em português do Brasil, só há uma solução: é fazer as mesmas coisas em português de Portugal. Portanto, criem materiais e talvez os miúdos vão atrás.
Vamos ter algumas expressões que vão entrar, não me parece que vamos ter um sotaque diferente, não muda assim, não é por causa de vídeos que os miúdos vão estar a falar com um sotaque diferenteComo é que prevê o futuro em relação à influência do português do Brasil sobre o português europeu?
Vamos ter algumas expressões que vão entrar, não me parece que vamos ter um sotaque diferente, não muda assim, não é por causa de vídeos que os miúdos vão estar a falar com um sotaque diferente, podem ter alguma influência, mas a pronúncia das palavras faz-se através do grupo de amigos e da família. É por isso que os filhos de brasileiros por cá em geral, não digo todos, ganham o sotaque português.
Não é uma preocupação no que toca à fonética. Em relação às expressões poderá acontecer, mas também viro isto um pouco ao contrário. Estamos a viver a primeira época nos últimos 100 anos em que apesar de tudo alguns brasileiros no Brasil ouvem os portugueses - são poucos, é muito desproporcional - mas por causa da internet começa a haver um youtuber aqui, outro acolá, que começa a ser ouvido no Brasil. Não tenho uma visão muito catastrofista disto.
Mas há pessoas que têm essa visão catastrofista. Lembro-me agora de um dos vídeos em que o Marco explicou o significado de "Guiana brasileira", piada tão repetida nos últimos tempos.
[Ri-se]. Sim, mas aí foi para mostrar que nós também conseguimos ter humor. Às vezes digo aos brasileiros que discutimos muito sobre a língua, mas isso prova que ainda estamos a falar a mesma língua. Estamos mais próximos do que pensamos. Ainda conseguimos comunicar bem.
Aliás, comunicamos tão bem que os miúdos veem vídeos brasileiros, eles não fazem isso porque alguém lhes impõe. Temos este tal complexo de inferioridade de que se alguma coisa vier em inglês é melhor e os miúdos não têm isto. Então se têm um vídeo em inglês e em português do Brasil, é claro que vão escolher o segundo. É só esse o fenómeno que está por trás do sucesso dos brasileiros entre os miúdos portugueses.
Não se fala melhor nem em Coimbra, nem em Lisboa. Na verdade todas pronúncias do país são tradicionais e as do Norte até são mais antigas que as do SulEssa diferença sente-se dentro do próprio país, porque sempre houve um complexo de superioridade no que diz respeito ao sotaque de Lisboa em relação ao do Norte e outras regiões do país.
Nesse sentido dos sotaques regionais acho que estamos um bocadinho melhores, começamo-nos a respeitar mais, mas ainda há esta tendência de que qualquer pessoa que venha para a rádio ou televisão em Lisboa vai quase naturalmente assumir um sotaque de cá. Há esta ideia de que para falar em público temos de falar com um sotaque em particular. Isso ainda são os restos deste complexo de superioridade interna de que nós achamos que há uma forma muito melhor de falar e que é parecida com a de Lisboa e de Coimbra, põe-se sempre Coimbra ao barulho, embora isso seja discutível por vários motivos, porque não é bem toda a população de Coimbra.
As pessoas falam de Coimbra porque era para onde os filhos dos lisboetas iam estudar, então incluíram Coimbra no pacote do onde se fala melhor. Mas não se fala melhor nem em Coimbra, nem em Lisboa, são simplesmente os centros de poder onde estava a comunicação social e, por isso, a forma de falar destas zonas acabou por ter muita influência e chegou-se a esta conclusão errada de que é a forma correta, quando na verdade todas pronúncias do país são tradicionais e as do norte até são mais antigas que as do sul.
Houve inúmeros casos de pessoas na comunicação social que tinham aulas para perder a pronúncia.
Que se chamavam aulas de dicção, provavelmente, mas uma pessoa pode ter qualquer sotaque e ter uma dicção clara. E ao contrário do que as pessoas pensam isto não acontece em todos os países. Até em Inglaterra, a BBC hoje tem todos os sotaques e mais alguns.
Se Camões aterrasse hoje em Lisboa e começasse a falar, pelos dados que nós temos, é bem provável que identificássemos a pronúncia como sendo mais das Beiras. As pessoas iriam dizer 'esta pessoa não é de Lisboa' e ele era lisboetaEntão nem vale a pena perguntar em que região do país se fala melhor português.
Exatamente. A pessoa individualmente pode não falar bem, agora se estamos a falar de uma pronúncia de uma região, as pessoas estão simplesmente a falar como aprenderam.
Tenho a certeza de que se Camões aterrasse hoje em Lisboa e começasse a falar, pelos dados que nós temos, é bem provável que identificássemos a pronúncia como sendo mais das Beiras. As pessoas iriam dizer 'esta pessoa não é de Lisboa' e ele era lisboeta.
Sendo a língua um organismo vivo, como diz, há palavras que ainda sendo mal ditas acabam por ficar assim com o tempo.
Os falantes decidem para o bem e para o mal. Se há uma coisa que as pessoas não gostam de dizer, não digam. Tudo o que nós temos no português, as formas verbais, os pronomes, são alterações graduais ao longo do tempo desde o latim e antes. Essas alterações, quando começaram a aparecer, eram vistas como erros. São pequenos erros que se vão acumulando, e sei que isto irrita muitas pessoas, mas é assim que as línguas são criadas.
Haveria alguma regra que o Marco mudaria na língua portuguesa?
Só para facilitar o ensino aos estrangeiros há uma questão: temos os dois particípios - o pago e o pagado, aceite e aceitado. Num mundo alternativo, se fosse eu a decidir, talvez limpasse um pouco essa regra.
O Novo Acordo Ortográfico tinha a função de limpar e de pôr tudo igual, mas foi mexer na ortografia numa altura em que já quase todas as pessoas sabiam escrever e que, por isso, levou a resistências, é natural. Mexeu na ortografia, mas não resolveu o problemaPor exemplo, em relação ao Novo Acordo Ortográfico, considera que as alterações fizeram sentido?
Isto pode ser uma opinião contraditória, mas a ortografia é muito diferente das regras da língua, essa sim é planeada. Independentemente dos acordos que foram criados ao longo do tempo, [a ortografia] tem por base um documento que foi encomendado na Primeira República, que tinha começado no ano anterior, e que queria limpar a ortografia portuguesa, porque era caótica, não havia regras fixas.
O Novo Acordo Ortográfico tinha a função de limpar e de pôr tudo igual, mas foi mexer na ortografia numa altura em que já quase todas as pessoas sabiam escrever e que, por isso, levou a resistências, é natural. Mexeu na ortografia, mas não resolveu o problema.
Primeiro, entre o português de Portugal e o do Brasil as diferenças são outras - o vocabulário, a pronúncia, a ortografia era um pormenor, e tendo ido mexer acabou por manter muitas diferenças.
Criou ainda uma situação mais complicada, porque como Angola e Moçambique não aceitaram o Novo Acordo, acabamos por ficar com três ortografias: neste momento temos a ortografia do acordo no Brasil, temos a ortografia do acordo em Portugal - que não são iguais - e a de Angola, que ficou com a ortografia antiga.
Por isso é que não gosto muito do acordo, porque não foi muito útil, não foi tão necessário quanto isso e acabou por criar uma situação ainda mais complicada.
O trabalho de tradutor neste momento está a tornar-se num trabalho de revisão, mas curiosamente não é um trabalho mais fácil, normalmente dá mais trabalho
Enquanto professor como é que vê o uso da inteligência artificial na escrita e na tradução? Considera que a sua profissão, a de tradutor, possa estar ameaçada?
A tradução automática começou a ser estudada nos anos 50 do século XX, era aquilo que se pensava que se conseguia fazer com rapidez, mas depois percebeu-se que a tradução é muito mais difícil e que as línguas são complicadas.
A verdade é que depois, nos últimos 20 anos, através de métodos mais avançados, a tradução automática conseguiu chegar a um ponto onde faz um trabalho mais razoável.
A tradução hoje, em muitos casos de tradução técnica, é uma tarefa de pós edição, ou seja, temos uma primeira fase de tradução automática e depois correção pelo tradutor… a tradução literária é outro nicho.
Com a inteligência artificial estamos a ver que para inglês a qualidade da tradução automática já é suficiente para substituir os tradutores humanos nalguns casos de textos menos importantes ou menos complexos, mas para português é muito raro.
Claro que se tiver uma notícia em norueguês vou pôr no Google Translate ou no DeepL, mas se for para publicar num jornal português é preciso alterar. O trabalho de tradutor neste momento está a tornar-se num trabalho de revisão, mas curiosamente não é um trabalho mais fácil, normalmente dá mais trabalho.
Todas as mudanças tecnológicas têm as suas consequências, mas o que não aconteceu até agora foi o desaparecimento dos tradutores. Há uma piada entre os tradutores que é: estamos sempre a cinco anos de desaparecer, mas eles nunca desapareceram, estão sempre a ser necessários.
E quanto à língua portuguesa?
A inteligência artificial tem algumas consequências, às vezes um pouco estranhas. Por exemplo, sabemos que o ChatGPT leva a usar certo tipo de frase ou de expressões e há pessoas que fogem dessas expressões.
Há um mito que diz que a IA usa muitos travessões e há pessoas que dizem que não os querem para não parecer que estão a usar IA.
E na universidade?
Se as tarefas que estamos a dar aos alunos podem ser feitas sem qualquer qualidade no ChatGPT, o problema é das tarefas [risos]. Temos de integrar as próprias ferramentas e explicar o que se pode fazer ou não, fazer exercícios que vão para lá daquilo que a IA consegue fazer e uma das tendências que estamos a ver nas universidades é o regresso das provas orais, tudo feito ao vivo e com menos escrita.
E o ChatGPT pode ajudar os portugueses a escreverem melhor?
Acho que pode ajudar os portugueses naqueles casos particulares como quando, por exemplo, temos de escrever uma carta para as Finanças, para a Segurança Social ou para fazer um requerimento qualquer… Atenção, não estou a aconselhar as pessoas a substituírem os advogados pelo ChatGPT, mas acho que ajuda os portugueses a comunicarem e a traduzir o que a administração pública diz.
O Marco sente resistência das pessoas nos seus vídeos? Afinal, toda a gente sabe falar português…
Temos esta ideia um bocadinho falsa de que sabemos muito sobre a língua, mas não. Isto leva a que haja discussões um pouco estranhas.
Vou dar um exemplo. Aprendemos na escola que as vogais são cinco, mas estamos a falar das letras, mas as vogais do português, faladas, são 14. Quando eu digo que no português europeu (que o do Brasil tem menos) existem 14 vogais, as pessoas reagem muito mal, porque acham que estou a dizer algo contra o que a professora primária disse. Mas a vogal tem dois sentidos: um é a letra e o outro é o som vocálico. A primeira vez que eu falei isto num vídeo as reações foram muito negativas, fiquei surpreendido.
O que para o Marco é falar bem português?
É fazer com o português aquilo que nós queremos. Se eu quero escrever uma carta às Finanças para resolver um problema, escrever bem aquela carta. Se eu quero escrever um conto e fazer com que a pessoa se emocione, tenho de escrever bem português. Claro, no meio disto tudo há regras de etiqueta e ortografia e embora as pessoas se concentrem muito nelas são uma espécie de verniz.
O bom português é conseguir comunicarmos e expressarmos o que queremos com os recursos que temos. É ter o vocabulário suficiente para explicar as coisas, conhecer as coisas que temos à frente. É se nós queremos fazer uma coisa com a língua portuguesa, termos uma série de recursos - vocabulário, entoação, gesto - que podemos usar.
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