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O ventríloquo do nosso Joe

Um artigo de opinião assinado por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados.

O ventríloquo do nosso Joe
Notícias ao Minuto

11:58 - 06/07/21 por Notícias ao Minuto

País Artigo de opinião

"Ao mesmo tempo que em Lisboa decorria a operação para a detenção do empresário e colecionador Joe Berardo, em Madrid decorria a detenção de José Luis Rodríguez Moreno, conhecido ventríloquo (seu boneco Rockefeller) e produtor de televisão, ambos de idade aproximada: 74 anos o espanhol e 76 o madeirense. Sobre ambos pesa a suspeição de crimes de burla e branqueamento de capitais. 

Une-os um mesmo engenho: a apropriação de elevadas somas de dinheiro, através da utilização de estratégias de defraudação de bancos. José surripiou uns modestos 50 milhões de euros, ao passo que o nosso Joe (heterónimo de José, mas sem boneco), mais arteiro, fez mão baixa a nada menos de mil milhões. Os dois enriqueceram, pessoalmente, à custa de créditos obtidos através de empresas que, posteriormente, nunca saldavam os compromissos de crédito que assumiam. Em Espanha, o procurador de Madrid ordenou a detenção, para interrogatório e aplicação de medidas cautelares, a 47 suspeitos, entre diretores de bancos, advogados e até um notário, e conseguiu reconstituir o rasto do dinheiro, não só o que foi enviado para os escaninhos da Suíça, do Panamá e das Ilhas Maldivas, como o utilizado em lavandarias de compra e venda de imóveis.

Os sistemas penais espanhol e português assentam no princípio da legalidade e da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da condenação. Assim, confortados com o direito de serem considerados inocentes, o José e o Joe optaram pela estratégia de não prestar declarações no interrogatório judicial. E posto que, nos dois países, as medidas de coação que é costume aplicar aos suspeitos são similares, aquele dueto luso-espanhol beneficiou naturalmente de uma caução que se traduz na imposição de uma garantia patrimonial, a fim de prevenir o cumprimento dos deveres processuais (sob pena de quebra da caução). Quanto aos montantes da dita caução (que poderá ser objeto de posterior reforço ou modificação), os mesmos serão determinados atendendo a critérios tais como os fins de natureza cautelar a que se destina; a gravidade do crime imputado; o dano causado pelo crime; e a condição socioeconómica dos arguidos.

Mas, pergunto, será que o Estado vai receber os tais cinco milhões do nosso Joe? Tenho dúvidas!A caução apenas se aplica, ou impõe, desde que o crime imputado seja punível com pena de prisão, e poderá ser prestada pelo arguido através de depósito, penhor, hipoteca, fiança ou garantia bancária, nos termos estabelecidos pelo juiz de instrução criminal. Mas também pode ser cumulada com a aplicação de outra medida de coação, exceto com prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação (prisão domiciliária). Deste modo, José fica com a incumbência de prestar uma caução de três milhões de euros e o nosso Joe de cinco milhões.

Para o sistema de justiça espanhol a prestação de caução de elevado valor afigura-se como uma situação normal e com bons resultados. Com efeito, já em 1999, a juíza de instrução criminal da Audiencia Nacional de Barcelona aplicava uma caução de 30 milhões de euros ao advogado e empresário Javier de la Rosa. No entanto, a caução mais elevada que até hoje se verificou em Espanha aconteceu em 2012 ao empresário Ángel Cabo, proprietário da Marsans, um grupo ligado ao turismo, no valor de 50 milhões de euros.

Falamos de valores estratosféricos para o cidadão comum, sempre pronto a esbugalhar os olhos quando ouve falar em 'pipas de massa', ou quando pergunta se já pode ir ao Banco levantar o dinheiro, mas, para os prevaricadores que os têm de prestar, a elite dos negócios de colarinho branco, esses valores não passam de meros acidentes de percurso. Por cá, a nossa justiça, ao teimar em não mudar o paradigma das habituais medidas de coacção, e que nenhum dano de maior provocam ao património dos artífices do lucro fácil, nunca conseguirá que eles deixem de arrecadar ilicitamente milhões, sabendo de antemão que nem um cêntimo conseguirá ser recuperado, como tem sido de regra. 

Mas, pergunto, será que o Estado vai receber os tais cinco milhões do nosso Joe?

Tenho dúvidas! E tenho-as porque a medida de coação pode ser substituída, oficiosamente (por iniciativa do juiz) ou mediante requerimento, por qualquer outra medida de coação, em situações de impossibilidade, graves dificuldades ou impedimentos do arguido em prestá-la.

Resta apenas saber quem será o ventríloquo do nosso Joe, que é José de sua graça, tanto quanto se sabe o seu boneco não tem nome, mas que não é difícil de adivinhar quem seja 

Nos casos acabados de referir, o arguido terá de fazer prova da sua situação financeira, demonstrando incapacidade para suportar tal quantia, sendo-lhe, então, aplicada uma caução proporcional à sua situação, além de poder ainda ser considerado excessivo o valor fixado. E quando a medida de coação é considerada demasiado gravosa pode-se sempre recorrer para o Tribunal da Relação.

Sendo consensual a questão da proporcionalidade da caução e a capacidade financeira do arguido em ambos os sistemas jurídicos ibéricos, diferente é, todavia, a iniciativa de investigação levada a cabo pelos respetivos órgãos de polícia. Quanto ao José, os factos são atuais, a investigação iniciou-se em 2018, após várias denúncias de entidades bancárias. Quanto ao Joe, os factos denunciados remontam a 2006, mas a investigação foi apenas impulsionada em 2019, após ele ter sido ouvido numa comissão de inquérito da Assembleia da República à Caixa Geral Depósitos. Entretanto, muita água correu sob as pontes, e o nosso Joe fez fantásticos negócios, de que só ele e Deus é que sabem…

Assim, espera-se uma condenação para José e uma prescrição penal para Joe. Países vizinhos, métodos de justiça diferentes. Resta apenas saber quem será o ventríloquo do nosso Joe, que é José de sua graça, tanto quanto se sabe o seu boneco não tem nome, mas que não é difícil de adivinhar quem seja.

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