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"Em Portugal ganhas 3 ou 4 mil euros. No final da carreira, fazes o quê?"

Vasco Coelho rumou a Arábia Saudita com o intuito de assegurar um futuro melhor e em busca de um reconhecimento fora de portas. Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, o defesa de 24 anos revela os medos ultrapassados e as barreiras quebradas numa experiência que conta com quatro meses de duração.

"Em Portugal ganhas 3 ou 4 mil euros. No final da carreira, fazes o quê?"
Notícias ao Minuto

08:00 - 16/11/18 por Francisco Amaral Santos

Desporto Exclusivo

Aos 24 anos Vasco Coelho decidiu "arriscar" e colocar-se a caminho da Arábia Saudita, no passado verão, para integrar a equipa do Al-Washm. Depois de uma época agridoce no Real Massamá, o ainda jovem central português entendeu que estava na altura de investir no futuro, num momento em que acredita que o futebol português não concede as melhores condições aos jogadores nativos. 

Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Vasco Coelho revela como se deu a transferência para o território árabe, enumera as dificuldades em lidar com as saudades, mas revela-se feliz por ter saído da zona de conforto e por estar a ultrapassar todas as barreiras que esta aventura fora de portas lhe tem colocado. 

As passagens por equipas como Benfica e Sporting de Braga também foram tema de conversa, bem como a curta experiência no Malmo da Suécia. 

 

Que balanço faz desta experiência? 

Ora bem, já estamos em novembro, o que equivale a quatro meses desde que cheguei. Ao início foi um bocadinho complicado. Foi um choque cultural muito grande. Desde da língua, à escrita, passando pela comida, relações interpessoais, condições de trabalho, hábitos e por aí adiante. Não foi fácil, mas acho que vim com a mentalidade certa. Preparei-me bem antes de vir e consegui dar a volta por cima. Acredito e sei que as coisas estão a correr bem. Não diria que estou perfeitamente adaptado, há coisas que demoram muito tempo a assimilar, mas sinto-me bem e entrosado em tudo aquilo que é necessário.

Como surgiu o convite do Al-Washm? 

Foi através de um intermediário que é meu conhecido. Em Portugal, infelizmente, não nos dão o valor que eu acredito e sei que deveríamos ter. Não estavam a aparecer as propostas que eu pretendia, tanto a nível monetário como desportivo, e por isso decidi arriscar. Cada vez estou mais certo que tomei a melhor decisão.

Falou em choque cultural. Quer dar um exemplo?

Já aconteceram tantas coisas.... Em termos de mentalidade, os jogadores aqui na Arábia Saudita olham para as coisas de maneira diferente. Para eles é mais importante rezar às horas certas e manter os hábitos culturais do que propriamente treinarem e prepararem-se para os jogos. Eu venho de Portugal e de uma mentalidade muito diferente, em que os hábitos adquiridos têm muito rigor e são encarados com muita seriedade pelos jogadores. Aqui são um pouco benevolentes. Nunca há uma hora certa para começar os treinos. Para eles está sempre tudo bem. O que é para amanhã é para daqui um mês… As coisas são muito diferentes.

Estava à espera que as diferenças fossem assim tão notórias? 

Sabia que iria ser um choque grande. Preparei-me, pesquisei e falei com várias pessoas… Tentei  preparar-me ao máximo para encarar esse choque, mas quando dás de cara com as coisas aí é que pensas: ‘Ok, isto é mesmo verdade. Isto acontece mesmo e é real’. Aí é que estremeces um pouco. Mas depois acaba por achar natural e neste momento não me faz confusão nenhuma.

Que condições do clube encontrou quando chegou?

Encontrei boas condições. O clube tem um complexo desportivo grande com dois relvados e um sintético. Além disso, temos ginásio e uma piscina. Há ainda um pavilhão para as outras modalidades: andebol, basquetebol, voleibol… As condições são razoavelmente boas. Não me posso queixar nesse aspeto.

Esteve na II Liga muito recentemente, o que falou para dar o salto para o principal escalão?

Na minha última época as coisas começaram por correr bem, mas depois, por outros motivos, deixei de jogar e ainda hoje não sei bem porquê. Quando chegou o final de época sabia que seria difícil continuar. Estava sem jogar e, na altura, o Real [Massamá] tinha descido de divisão e eu sabia que seria difícil continuar a jogar em Portugal. As condições não eram as melhores e sei que era complicado para um clube apostar num jogador que estava sem jogar e que alinhava numa equipa que desceu de escalão. Ainda que às vezes aconteça, em Portugal os portugueses nunca têm os privilégios que deveriam ter. Foi então que decidi arriscar. Aqui, vim encontrar a valorização que sinto que eu mereço e vim encontrar boas condições de trabalho. E a nível monetário não tem nada a ver com Portugal.

Sente que em Portugal ainda existe aquela teoria de que se dá mais valor aos jogadores estrangeiros do que aos portugueses?

Sem dúvida alguma.

Não existe a palavra namorada no dicionário deles 

Quais os planos para o futuro?

Quando vim para cá, foi no sentido de voltar a sentir-me valorizado e de voltarem a acreditar em mim. As coisas estão, de facto, a correr bem. Tive esta proposta do Al-Washam, que é uma equipa do segundo escalão com ambições e condições de trabalho. Vim sempre no sentido de fazer o máximo número de jogos e, estando a conseguir fazer isso, acho que as coisas vão aparecer naturalmente. Seja aqui na Arábia, nos países do Golfo ou até quem sabe regressar à Europa. Mas estou a aproveitar o momento e quero acreditar que coisas boas vão acontecer.

O objetivo do clube passa por subir de divisão? 

O Al-Washm recentemente subiu à segunda liga. A equipa é boa, mas ainda tem algumas coisas a melhorar para ser um forte candidato. Eles [direção do clube] não se assumem como candidatos, mas nós jogadores, no balneário, temos sempre essa conversa. Temos uma boa equipa, ainda que as coisas não estejam a correr de feição. Ainda assim, se não subirmos não será nenhum descalabro.

Quais as diferenças entre o futebol português e o árabe?

Neste momento, o futebol português está num nível elevado. Porquê? Porque temos o melhor jogador do mundo, temos dos melhores treinadores do mundo, temos o melhor empresário do mundo… Temos imensa qualidade naquilo que fazemos no nosso país. Em termos táticos, técnicos, de preparação, de performance e nutrição, acho que Portugal está num nível muito interessante. Aqui na Arábia as pessoas dão mais valor aos aspetos culturais, o que os faz atrasar nos restantes aspetos desportivo. Na parte fora do futebol, não há nada. Quando falo fora do futebol, falo em suplementação, em prevenção de lesões, em treinos complementares, coisas que eu faço por mim com a ajuda de profissionais que estão em Portugal. Dentro de campo, é um jogo menos pensado e mais com o coração. É um jogo mais partido, em que vale mais a força e a vontade do que propriamente a parte técnica e tática.

Notícias ao Minuto[Vasco Coelho numa partida ao serviço do Real Massamá, em 2017/18, diante do Leixões em jogo da II Liga.]© Global Imagens

Há umas semanas ouvimos Jorge Jesus, treinador do Al-Hilal, criticar o anti jogo dos adversários na Arábia Saudita. Concorda com ele?

Concordo muito! Estão sempre a parar o jogo. Este fim de semana recebemos aqui uma equipa e eles desde dos 20 minutos começaram a fazer isso. O guarda-redes nessa altura já estava no chão com câimbras no chão. ‘Calma, mas está 0-0, o que é que se passa?’. Nós queríamos jogar e eles estavam sempre a fazer anti jogo e a atrasar o ritmo da partida. Sempre no chão, sempre no chão. Jogadores aqui, jogadores ali, sempre no chão. Na segunda parte chegaram mais tarde ao relvado e o treinador ainda os incentivou! Isso é um bocadinho triste e custa-me. Dentro de campo sentimos isso e ficámos mais revoltados porque na única vez que foram à nossa baliza, enviaram a bola ao poste e depois no ressalto conseguiram marcar. A partir daí, nunca mais houve jogo. Jogadores no chão e sempre a tentarem arranjar confusão. Muito, muito anti jogo. Eles querem mesmo é ganhar, para cumprir os objetivos do clube e do treinador. E assim não se dá tanto valor à parte do espetáculo, à parte de que nós tanto gostamos na Europa.

Ainda assim, considera que há espaço para evolução do futebol saudita?

Sim, isso sim. Agora já aumentaram o número de vagas para os jogadores estrangeiros e diminuíram o número de jogadores sauditas. A própria II Liga recebeu muitos jogadores da I Liga. Isto faz com que na I Liga o nível suba muita e isso também influencia a II Liga. A chegada de muitos treinadores estrangeiros também faz aumentar a qualidade de jogo.

Como lida com as saudades de casa?

Tem sido complicado... Infelizmente a Arábia Saudita é um país muito fechado em que não é permitido trazeres cá os teus pais, a tua namorada ou os teus amigos. Quando vens para a Arábia Saudita tens de ter um sponsor e esse sponsor é que faz o teu pedido do visto. Tu vens para cá por determinado motivo: em trabalho, negócios ou religião. Por exemplo, trazer cá a minha namorada é impossível. Não temos relação sanguínea e para eles ou és casado ou não és. Não existe a palavra namorada no dicionário deles. Tem sido muito complicado lidar com essa questão. Namoro com a Rita há dois anos e quando vim para cá foi assim um bocado complicado. Mas ela tem me ajudado muito e estou em crer que nos próximos dois meses consigo ir a Portugal para estarmos juntos. 

Quanto aos meus pais, falamos todos os dias, umas vezes por chamada de Skype, outras vezes por mensagens. Estamos sempre em contacto, mas as saudades são muitas. Mas um dia isto vai valer a pena e vamos aproveitar mais do que nunca.

Já aprendi algumas coisas do árabe, mas quando eles começam a falar muito rápido....

Ainda assim, presumo que não deixe de ser complicado...

É complicado sim. Na Europa há pausas nos campeonatos, mas aqui não. Há jogos todos os fins de semana. Ou melhor, todas as semanas porque nós jogamos a meio a semana. São 40 jogos de campeonato e os teus pais não podem vir visitar-te, a tua namorada também não e os teus amigos igualmente. Tu estás aqui e não consegues falar com ninguém. Os árabes mal falam inglês e chega a uma altura que começas a ficar: 'Epá, o que é que eu vou fazer?'. Felizmente conhecei na embaixada dois portugueses extraordinários que me acolheram e que me ajudaram muito. Temos estado juntos quase todos os meses em Riade. Dá para partilhar experiências e falamos dos problemas comuns. Tem sido muito bom e têm me ajudado muito mesmo. Mas tem sido duro, muito duro.

E a língua. Como tem sido esse desafio? 

Pois, nesse aspeto acho que o clube não está preparado para ir para a I Liga. Ainda não têm um tradutor, não têm uma pessoa que fale fluentemente inglês e que consiga dizer-te as coisas. Quem me tem ajudado muito é o preparador físico que fala razoavelmente inglês. É ele que me traduz as palestras e quem me traduz as indicações do treinador, se bem que ele também fala inglês. Mas assuntos mais importantes têm de ser com o preparador físico. Na minha equipa, há três ou quatro jogadores que sabem umas coisas, mas de resto quase nada. E depois é aquela linguagem gestual. Já aprendi algumas coisas do árabe, mas quando eles começam a falar muito rápido.... Eu não consigo acompanhar (risos). É muito confuso.

Tem sido difícil lidar com essa barreira?

Sim, mas não tem sido por aí. Consigo sempre expressar-me. Mas quando vais almoçar ou jantar, a maior parte das pessoas não sabe falar inglês. Tens de andar com o tradutor no telemóvel para traduzires de inglês para árabe, mas eles até podem ser das Filipinas ou do Bangladesh e também não percebem árabe. Não é fácil, mas tem sido giro. Tenho crescido muito e está a ser uma aventura muito desafiadora.

Aos 24 anos, quais os objetivos a longo prazo?

Ainda sou muito novo e poderia ter ficado em Portugal a jogar na II Liga a ganhar mil ou mil e duzentos euros por mês. Estava junto dos meus pais, dos meus amigos e estava confortável. Mas chegas a uma altura em que pensas: ‘O que é que eu quero para a minha vida? Quero construir um futuro risonho para mim e para os meus? Quero arriscar? Quero ir à luta? Ou quero ficar confortável e depois logo se vê?’. Como já disse, em Portugal é complicado. Se fizeres uma carreira de dez ou 12 anos, entre I e II Liga, a ganhar no máximo três ou quatro mil euros mensais, chegas ao final da carreira e vais fazer o quê? Vais ter de arranjar outro emprego e fazer outra coisa qualquer. Aquele dinheiro deu-te para garantires o dia-a-dia, mas dificilmente chega para dares condições aos teus filhos para crescerem e estudarem. Eu decidi arriscar e tentar ser reconhecido.

Nesse processo de transição sente um crescimento enquanto jogador e pessoa?

Sim, muito mesmo. Aliás, no outro dia estava a comentar isso com um amigo meu. O que tu aqui cresces em um ou dois meses, em Portugal demoras um ou dois anos. Estás fora da zona de confronto e lidas com uma realidade completamente diferente. Tu aqui acordas e olhas para as horas e pensas: ‘Espera aí, se quiser ir ao supermercado está tudo fechado porque eles agora estão todos a rezar’.

Notícias ao Minuto[Vasco Coelho em pleno momento de celebração com os companheiros do Al-Washm.]© Reprodução Instagram Vasco Coelho

Já lhe aconteceu uma situação dessas? 

A primeira vez que viemos de estágio, chegámos tarde e eu aproveitei para descansar. Acordei lá para as 13 horas, levantei-me e, como não tinha nada no frigorífico, decidi sair para ir ao supermercado. No entanto, estava tudo fechado. Não havia nada! Até que encontrei uma pessoa na rua, que não falava inglês, e lá peguei no telefone e usei o tradutor. Mostrei-lhe e ela lá me disse: ‘Não, não, agora está tudo em período de reza. Só daqui a 45 minutos’. E eu pensei: ‘Então agora o que é que eu vou fazer?’. Estas pequenas coisas não acontecem em Portugal e eu há quatro ou cinco meses nunca me imaginaria numa situação semelhante. Tenho de as enfrentar. O que posso eu fazer? Vou para casa chorar e dizer que quero voltar para Portugal? Não. Isto é uma experiência nova e uma aprendizagem constante. Nunca mais me aconteceu uma situação dessas. Tenho sempre comida em casa e estou sempre prevenido. Já não me voltam a apanhar (risos). Mas isto para dizer que para além do nível pessoal, cresci imenso a nível de personalidade.

A nível de futebol também cresci. Em Portugal nunca estás sozinho, conheces sempre alguém que conhece outro alguém. Aqui estás por tua conta. És só tu. Se eu falhar um passe, tenho de ser eu próprio a incentivar-me para a seguir fazer melhor. Encaras as coisas de uma coisa diferente e ficas mais preparado para tudo.

Antes de finalizarmos, fale-nos um poucos das passagens fugazes pelo Benfica e Sporting de Braga... 

Fui para o Benfica com uns 15 anos, creio. Foi o ano de juvenil A com uma geração muito forte. Bernardo Silva, Hélder Costa, Bruno Varela, Cancelo… Era uma geração muito forte. Naquela altura ainda era muito novo. Fui para lá porque no Real era eu e mais dez e foi por isso que fui para o Benfica. Quando cheguei lá deparei-me com uma realidade completamente diferente. Era mais um naquela equipa e as coisas não aconteceram como eu esperava. Além disso, era muito bom aluno e o facto de ir todos os dias para o Seixal fez com que as notas começassem a descer. Os meus pais ficaram reticentes e eu também… No final do ano, o Benfica não demonstrou grande interesse em ficar comigo, os meus pais não estavam inclinados para isso e eu também não me sentia bem. Acabei por regressar ao Real. 

No Braga foi diferente. As coisas estavam a correr bem, fiz uma boa pré-época, mas no final tive uma lesão muito grave e tive parado desde agosto até dezembro. Foram meses horríveis. Deixei tudo em Lisboa, fui para Braga, não conhecia ninguém e passado um mês tive uma lesão. Estava lá só para jogar futebol e nem isso poderia fazer. Quando voltei, as coisas estavam a correr bem e quando estava prestes a ser convocado, contraí novo entorse e tive de ficar parado durante mais um mês. Quando chegámos a janeiro, falámos e fui emprestado ao Casa Pia. No final, quando estava prestes a integrar mais uma pré-época do Sp. Braga, houve umas confusões entre dirigentes, empresários e acabei por rescindir. Antes de ir para o Loures também estive a treinar no Malmo da Suécia durante dez dias. Tinha acabado de sair da formação e cheguei lá e tinha de marcar o  Rosenberg, um avançado que tinha jogado no Wolfsburgo. Foi mais uma aprendizagem e uma experiência enriquecedora.

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