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"Tem de haver coragem. Mas os partidos fogem com o rabo à seringa"

Em entrevista, Marta Soares recorda os sustos que apanhou no tempo em que andava no terreno a apagar fogos. E fala-nos também dos riscos que ainda vivemos. "O que tem safado Portugal tem sido a evolução no combate a incêndios".

"Tem de haver coragem. Mas os partidos fogem com o rabo à seringa"
Notícias ao Minuto

04/04/17 por Pedro Filipe Pina

País Marta Soares

Aos 18 anos andava a aprender o que é a vida de bombeiro. Chegou a comandante e, hoje, é o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. 

Em conversa  com o Notícias ao Minuto, Jaime Marta Soares deixa o alerta para o verão que se avizinha: se o tempo não ajudar e as florestas portuguesas forem outra vez vítimas de incendiários, temos razões para nos preocupar.

É que um ano depois o mais natural é que a floresta esteja "pior". E continuamos a perder tempo no que à prevenção de incêndios diz respeito. 

Juntou-se aos Bombeiros ainda com 18 anos. 

Ainda não era bombeiro na altura, estava em formação, mas eu e um grupo de rapazes da mesma idade andávamos a falar da possibilidade de uma corporação no nosso concelho. Os bombeiros de Vila Nova de Poiares foram constituídos em associação em 1954 mas só em 1962 é que foi criado o corpo.

Ao longo da minha vida tive situações em que cheguei a pensar que não me ia safarApanhou algum susto no terreno?

Lembro-me que houve um grande incêndio em que vieram os Sapadores de Coimbra. Como eu e um grupo de amigos conhecíamos os terrenos estávamos ali com eles. Fartei-me de avisar. Mal as minhas palavras eram ditas e de repente o incêndio ia-nos apanhando a todos. Com 18 anos eu corria bem mas havia bombeiros já de outra idade, mais pesados, a tirar o material, alguns a dizerem que nunca mais iam ver a família. Foram momentos dramáticos, foi a minha primeira experiência terrível.

Ainda antes de ser oficialmente bombeiro.

Aquilo endureceu-me logo, para ver quais os perigos, e depois ao longo da minha vida tive situações em que cheguei a pensar que não me ia safar. Quantas vezes chamusquei sobrancelhas, cabelo, pelos dos braços, até queimaduras que passavam o fato macaco, embora não fossem graves.

Alguma vez temeu o pior?

Um dia, no concelho de Penacova. Estava com alguns 20 bombeiros num planalto. O fogo estava a quilómetros de distância quando para ali fomos e de repente era preciso procurar por onde fugir. Estávamos com três carros e disse-lhes: ‘Não gastem uma gota de água que eu já venho’. Conhecia aquela zona e meti-me no jipe a procurar caminhos. Deparei-me com várias pilhas de madeira que me cortavam a passagem. Recordo-me de dizer para o meu quartel que os heróis também morrem. Não queria que ninguém se apercebesse mas não conseguia conter as lágrimas, não por medo mas por saber que por minha culpa estavam indivíduos que iam atrás de mim até ao fim em situação crítica. Lá descobri uma nesga para conseguirmos fugir por um sítio que nem era caminho, foi inventado. Nem uma gota de água se gastou, que era para servir de recurso. Se não conseguíssemos fugir, o plano era enfiarmo-nos dentro da água do tanque, para nos tentarmos proteger enquanto houvesse água. As pessoas às vezes nem imaginam que um foco secundário pode ir parar a um, dois, três quilómetros. Às vezes dizem ‘ah andam aqui a deitar fogo’. Nada disso. É o próprio fogo que lança mais fogo à distância.

O que tem safado Portugal tem sido a evolução no combate aos incêndiosOs anos passam, os governos mudam, mas muitas vezes o verão chega e parecemos surpreendidos pela violência da época de incêndios. Estamos a falhar na prevenção?

O que tem safado Portugal tem sido a evolução no combate. Farto-me de rir quando ouço coisas como o que ouvi no ano passado, ou em 2013 ou 2005. São coisas que disse há 30, 40 anos e não fizeram nada. Perdemos décadas de prevenção. O grande problema dos incêndios em Portugal é a falta de prevenção estrutural, que começa por muitas coisas. Um dia fui apelidado de louco quando disse que nos currículos escolares devia haver matérias relacionadas com a Proteção Civil e com os incêndios florestais, que é na escola que se dá a volta. Às vezes andam para aí a inventar coisas quando já estava tudo inventado.

Há 'capelinhas' e interesses. Quer exemplo maior do que a floresta mais mal tratada serem os 2,5 ou 3% que são do Estado?Falamos do quê, em particular?

Da eucaliptização, por exemplo. E não sou contra o eucalipto, há zonas onde pode ser e outras onde não pode ser. E há quantos anos falo do cadastro florestal. Já existe? Não. Temos em Portugal dos melhores técnicos de floresta mas há muitos conservadores no setor das florestas. Há ‘capelinhas’ e interesses(...). Quer exemplo maior do que a floresta mais mal tratada serem os 2,5 ou 3% que são do Estado? Há uns anos ninguém era obrigado a dar contas a ninguém dos rendimentos da floresta. Como os pinheiros e eucaliptos não votam, os políticos estão-se nas tintas para isso.

Corremos o risco de o próximo verão ser outra vez complicado em termos de incêndios?

Corremos. Basta haver meteorologia do género da do último ano ou criminosos como houve no último ano. E será pior porque a floresta está pior do que estava no ano passado. Têm que se fazer coisas concretas no terreno. Em Portugal não há falta de leis para se saber como tratar a floresta. Falta obrigar a cumpri-las no terreno e, para isso, para se fazer um ordenamento e parcelamento da floresta é preciso expropriar.

Estamos a falar dos terrenos que estão esquecidos?

Não são só esses. O coletivo é superior ao individual. Não falo de uma lei de expropriar para tirar o terreno, mas uma lei expropriante de utilização do terreno. Mas para isso tem de se ter um cadastro. Não há cadastro, não se sabe de quem é a floresta. Claro que depois há o indivíduo que avança com uma impugnação quando nunca foi ao terreno. Mas há também um problema cultural e político.

Basta plagiar o que se fez com a Lei das Sesmarias. Mas tem de haver coragemEm que sentido?

Com tantos desempregados em Portugal, porque é que não se criaram empresas para chamar os jovens? As pessoas abandonaram a floresta e temos que as substituir. Como? Criando incentivos, por exemplo para desempregados criarem novas empresas em zona florestal, para a pastorícia, para a criação de gado, como o caprino, por exemplo. As cabras eram os primeiros bombeiros a limpar a floresta. Sabe-se, por exemplo, que muitos incêndios em Portugal têm origem nos próprios pastores. Com todo o respeito que tenho pelos pastores sérios, mas porque é que não fazemos zonas de queimas controladas para que os pastores não tenham necessidade de fazer aquilo, e correrem o risco de perder o controlo do incêndio? Não é só o problema de destruição das árvores, é o ambiente, a própria economia e vida das pessoas. Basta plagiar o que se fez com a Lei das Sesmarias. Mas tem de haver coragem. Tem de se fazer acordos parlamentares, em que os partidos todos assumam o compromisso político. Mas os partidos fogem com o rabo à seringa.

E em termos de meios de combate a incêndios, são os adequados?

Nós temos bons equipamentos, são é poucos. Há viaturas, algumas com 25 e 30 anos, presas por arames. Isto é complicado porque não se pode ir combater a um incêndio florestal com uma viatura que a qualquer momento fica lá. A viatura ainda é o mínimo mas os bombeiros têm uma paixão pelo material que têm à sua guarda que, às vezes, correm riscos. Quantas vezes bombeiros têm queimaduras graves porque a viatura é como a sua alma, o seu coração. Isto também mostra a coragem. Ninguém negligencia a própria vida. É atitude de amor a uma causa.

Acredita que poderá haver mais investimento em material?

Estou convencido de que, se houver bom entendimento de prioridades entre a Liga dos Bombeiros Portugueses e o Ministério da Administração Interna, vamos conseguir ultrapassar muitas das dificuldades que estão na ordem do dia. Vê-se que há, pelo menos, abertura para falar sobre estas questões.

Quantos bombeiros temos atualmente em Portugal?

Temos 30 mil bombeiros no ativo e mais 30 mil nas reservas e nos quadros de honra, onde há muitos que ainda são novos. Será um exército de 45 mil mulheres e homens, que é uma coisa extraordinária. A maioria assenta no voluntariado mas penso que ninguém hoje acha que voluntariado é sinónimo de amadorismo. Muitos bombeiros voluntários têm em certas áreas tantas horas ou até mais que profissionais.

Há que criar condições para que os bombeiros não se estejam a destruir a si próprios ao ajudar o paísE há condições ou faltam incentivos?

O que era possível há uns anos, hoje cria dificuldades. Há o agregado familiar, o sobreviver no dia a dia, as dificuldades das próprias empresas em deixar o seu funcionário sair.

O que é que acha que tem de se fazer?

Criar incentivos, como criar o cartão social do bombeiro, não só para o bombeiro mas para o agregado familiar. Temos um estatuto social do bombeiro que de alguma forma protege mas desejaríamos ir mais longe. Está no ADN dos portugueses este tipo de voluntariado mas há que criar condições para que os bombeiros não se estejam a destruir a si próprios ao ajudar o país. E isto não é caridadezinha. É ser respeitado como um agente defensor de vidas.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui e a segunda aqui.

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