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"O estigma é enorme. Muitos homens acreditam que não podem ser vítimas"

Ângelo Fernandes acaba de lançar o seu primeiro romance. 'Neblina' conta a história de um abuso, assim como "das sombras" e dos "pactos de silêncio" que nos habitam e "o preço atroz de enterrar uma verdade que, finalmente, se recusa a ficar calada". O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o autor.

"O estigma é enorme. Muitos homens acreditam que não podem ser vítimas"

© Leya

Natacha Nunes Costa
15/10/2025 08:50 ‧ há 10 horas por Natacha Nunes Costa

Intenso e profundo. Assim é 'Neblina', o primeiro romance de Ângelo Fernandes, vencedor em 2004 do Prémio Nacional de Escrita Para Teatro e fundador da 'Quebrar o Silêncio', a primeira associação portuguesa de apoio a homens e rapazes sobreviventes de violência sexual.

 

A obra é o reflexo de mais de 20 décadas de experiência de escrita e de muitos anos de trabalho com vítimas de abuso sexual - entre as quais Ângelo se inclui.

Apesar de ser um "romance de ficção" e "não pretender ser um livro técnico", nota-se em 'Neblina' o profundo conhecimento de Ângelo sobre violência sexual e das dinâmicas familiares que perpetuam o silêncio e a dor de quem sofre na pele este tipo de flagelo.

Porém, o autor não recorre à exploração gráfica do trauma, não foi pelo caminho das "dramatizações estereotipadas". Preferiu a subtileza das "memórias sensoriais, das texturas e odores, em vez de imagens explícitas". Teve, aliás, "o cuidado de não incluir determinados termos ou palavras," para não "suscitar a curiosidade mórbida de potenciais leitores".

E é com o foco do que é essencial, "nas emoções e nos sentimentos que os sobreviventes de abuso sexual experienciam", na "viagem interna" e nas "emoções que nos acompanham durante o processo de superação do trauma", que nos apresenta um relato cru e muitas vezes perturbador, que nos prende da primeira à última página.

Durante a entrevista ao Notícias ao Minuto, houve ainda tempo para falar da 'Quebrar o Silêncio', associação através da qual já ajudou mais de 800 homens e rapazes, e que combate o estigma social que ainda impede muitas vítimas de procurar ajuda.

Estreou-se recentemente na escrita de romances, com 'Neblina', mas o tema foca-se no abuso sexual de crianças, crime que conhece bem e sobre o qual se debruça há vários anos. Acha que este tipo de literatura também pode ajudar as vítimas e as suas famílias?

Acredito que a literatura pode abrir espaços de reflexão e empatia que muitas vezes o debate público ou mais técnico não alcança. Quando um romance dá corpo ao silêncio e à dor, permite aos leitores confrontarem-se com realidades que poderiam ignorar. Para algumas vítimas e famílias, pode ser um ponto de identificação, um reconhecimento de que a sua experiência não está sozinha nem esquecida. 'Neblina' é um romance de ficção, não pretende ser um livro técnico ou um guia sobre violência sexual contra crianças, mas se puder ensinar algo, isso é um complemento muito valioso.

O que o inspirou a escrever 'Neblina'? Houve algum episódio em particular? É inspirado em alguém?

'Neblina' não parte de uma história única, mas de um conjunto de experiências e observações acumuladas ao longo dos anos de trabalho com homens sobreviventes de violência sexual. É um romance de ficção, mas com raízes na realidade. Cada história é única e deve ser tratada como tal, mas existem pontos em comum com muitas outras histórias, e é aí que centro a narrativa. A minha inspiração foi explorar as dinâmicas familiares, os silêncios que persistem e as dores que se arrastam. Esse era o foco original; o abuso sexual surgiu como tema para desenvolver os encontros e desencontros familiares.

Que simbolismo tem o título 'Neblina'?

A neblina encobre, turva a visão e torna difícil distinguir o que está diante de nós, por vezes durante décadas. É também o ambiente que envolve a família deste romance, refletindo muitas famílias portuguesas. Na neblina, nada é claro; as memórias confundem-se com factos, a verdade não se revela inteira e pode estar repartida por diferentes perspetivas. Só quando a neblina se dissipa é que se percebe o peso do trauma escondido.

Que desafios enfrentou ao escrever um romance sobre um tema tão doloroso?

O maior desafio foi equilibrar a necessidade de verdade com a responsabilidade de não explorar a dor. Sempre tive consciência de que 'Neblina' podia incomodar, mas nunca quis recorrer a dramatizações estereotipadas ou a descrições gráficas. A meu ver, esta história pedia outro registo: referências a memórias sensoriais, texturas e odores, em vez de imagens explícitas. Durante o processo de escrita, tive o cuidado de não incluir determinados termos ou palavras, mantendo-me distante de algo que pudesse suscitar a curiosidade mórbida de potenciais leitores.

A mensagem que pretendo transmitir é de otimismo: o trauma deixa marcas profundas, sim, mas não precisa de definir toda a vida. É possível viver livre do trauma

O que foi mais desafiante: retratar as vítimas, os agressores ou o ambiente onde este tipo de crimes acontece?

O mais desafiante foi explorar o contexto em que tudo acontece: quem é vítima, mas também quem observa ou sabe dos crimes. Esse observador será uma outra forma de vítima ou conivente com os crimes? Quis explorar o silêncio que está presente nesta família, que se senta à mesa com eles e ocupa lugar, sem pedir, e sabendo que incomoda.

Qual a mensagem mais importante que espera que os leitores retirem de 'Neblina'?

Apesar de poder ser uma leitura dura, quem o leu diz que é intensa, mas também necessária e apreciada. Gostava que os leitores pudessem espreitar uma brecha de um universo ainda preso a ideias erradas, mitos e crenças. A mensagem que pretendo transmitir é de otimismo: o trauma deixa marcas profundas, sim, mas não precisa de definir toda a vida. É possível viver livre do trauma.

Foquei-me essencialmente nas emoções e nos sentimentos que os sobreviventes de abuso sexual experienciam

Como é que o seu caso pessoal e o seu trabalho na 'Quebrar o Silêncio' se entrelaçam com 'Neblina'?

Como disse antes, o abuso sexual não foi o ponto de partida, mas sim o tema para explorar as dinâmicas familiares. Claro que não ignorei a minha própria história nem as de tantos homens que procuram ajuda na 'Quebrar o Silêncio', mas não me foquei em acontecimentos concretos. Foquei-me essencialmente nas emoções e nos sentimentos que os sobreviventes de abuso sexual experienciam. A viagem interna, as emoções que nos acompanham durante o processo de superação do trauma.

Muitos homens acreditam que não podem ser vítimas, ou que se o forem isso coloca em causa a sua masculinidade. A sociedade reforça esta ideia ao duvidar, ridicularizar ou minimizar os relatos dos homens vitimados

Há oito anos criou a associação 'Quebrar o Silêncio', um espaço que apoia homens vítimas de violência sexual. Consegue precisar quantos homens já procuraram a associação durante este tempo?

Até janeiro de 2025, registámos 830 pedidos de ajuda de homens e rapazes vítimas de violência sexual. Em 2024, tivemos 112 novos pedidos de apoio de homens e 50 novos pedidos de familiares e amigos. Estes números não são apenas estatísticas, refletem vidas concretas, histórias complexas e pedidos de ajuda que rompem um estigma enorme.

Por que motivo decidiu fundar esta associação?

Decidi fundá-la porque não existia, em Portugal, nenhum espaço específico para apoiar homens e rapazes sobreviventes de violência sexual. Sempre me fez sentido criar um lugar seguro e especializado, onde pudessem ser escutados sem juízos de valor. Era uma lacuna no nosso país e que decidimos colmatar.

Sente que ainda há algum estigma na sociedade que leva a que muitos homens não procurem ajuda?

Sim, o estigma é enorme. Muitos homens acreditam que não podem ser vítimas, ou que se o forem isso coloca em causa a sua masculinidade. A sociedade reforça esta ideia ao duvidar, ridicularizar ou minimizar os relatos dos homens vitimados. Combater isto implica falar mais sobre o tema, dar visibilidade às suas histórias e garantir que os serviços de apoio são inclusivos e especializados.

É urgente trabalhar para uma sociedade que promova segurança, permitindo que as vítimas quebrem o silêncio e possam denunciar ou falar das suas histórias sem serem escrutinadas, atacadas ou desvalorizadas 

De que forma a 'Quebrar o Silêncio' ajuda as vítimas que a procuram? E que trabalho faz na prevenção da violência sexual contra crianças?

Apoiamos de várias formas: através de atendimento psicológico especializado, grupos de ajuda mútua e apoio entre pares. Trabalhamos também na sensibilização, informação e formação de profissionais sobre violência sexual contra homens e investimos na prevenção deste crime, nomeadamente contra crianças.

Quais as maiores dificuldades que a associação enfrenta no seu dia a dia e de que forma é que se pode apoiar a associação?

O estigma social continua a reforçar a ideia errada de que os homens não podem ser vítimas de violência sexual. Fundámos a 'Quebrar o Silêncio' há quase nove anos e ainda repetimos as mesmas mensagens que transmitíamos em 2017. É urgente trabalhar para uma sociedade que promova segurança, permitindo que as vítimas quebrem o silêncio e possam denunciar ou falar das suas histórias sem serem escrutinadas, atacadas ou desvalorizadas.

Recentemente, fizeram um apelo à TVI para incluir uma advertência numa telenovela onde participa o ator António Capelo — acusado, nas redes sociais, por vários alunos (e não só) de assédio e abuso sexual. De que forma é que pode ser feita essa advertência e como pode ajudar as vítimas deste tipo de crimes?

O pedido foi simples: incluir uma advertência antes da exibição dos episódios, informando o público de que um dos atores foi acusado de assédio e abuso sexual. Isso não substitui a justiça, nem é nossa intenção, mas permite que as vítimas saibam que não estão sozinhas e que o tema e as denúncias não são ignorados. É também uma forma de responsabilizar os meios de comunicação, mostrando que o entretenimento não pode ser indiferente nem sobrepor-se à violência sexual.

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