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'Juventude Inquieta' mostra que resistir ao fascismo é para sempre

Como podemos não nos resignar é a pergunta que atravessa 'Juventude inquieta', peça que o Teatro do Vestido estreia no sábado, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, inspirada no romance 'A cidade das flores', de Augusto Abelaira.

'Juventude Inquieta' mostra que resistir ao fascismo é para sempre
Notícias ao Minuto

19:22 - 15/10/21 por Lusa

Cultura Teatro D. Maria II

Como na ação do livro, como no tempo em que ele foi escrito, como agora, o fascismo, os fascismos novos e velhos "fazem parte das nossas lutas constantes como civilização", frisou à agência Lusa a diretora do Teatro do Vestido, Joana Craveiro, autora do texto, que também dirige o espetáculo.

Assim, na obra que agora chega a palco, impõem-se as interrogações: como se pode lutar e como se pode resistir, à semelhança do obra que inspirou o espetáculo, concluída em 1959, pelo escritor, jornalista, tradutor e professor Augusto Abelaira (1926-2003) que participou ativamente na luta contra a ditadura do Estado Novo, de Oliveira Salazar, e cuja obra literária foi inspirada pelo movimento neorrealista.

No palco da sala Garrett, onde a companhia com direção artística de Joana Craveiro se estreia, o cenário do espetáculo agrega teatro documental que tem pautado o trabalho do Teatro do Vestido, embora o dispositivo cénico optado para a criação tenha sido "fazer um filme", como disse Joana Craveiro à agência Lusa, no final de um ensaio parcial da obra.

A ação do romance de Abelaira situa-se em Florença, no final dos anos 1930, na Itália fascista de Mussolini. Um pretexto de que o autor se serviu para falar sobre a sua própria geração e a de Portugal no final dos anos 1950, e a partir da qual Joana Craveiro pensou em pôr em palco sob a forma de "fazer um filme".

"Nós que não vivemos nenhuns dos acontecimentos, (...) que já somos velhos [numa alusão à idade dos elementos da companhia que dirige] para fazer as personagens, estamos a tentar, com várias gerações e diferentes atores, todos eles muito novos", fazer um espetáculo ao longo do qual "os jovens é que vão tomar conta do filme e vão afirmar a sua voz", acrescentou Joana Craveiro à Lusa, sublinhano o enquadramento da segunda parte.

A escrita de Alebaira é "muito cinematográfica", afirmou, acrescentando que, no romance original, o autor "sobrepõe diferentes coisas que estão a acontecer ao mesmo tempo".

Uma narrativa que também é respeitada ao longo da peça, quer em quadros de teatro, como em imagens que vão sendo projetadas num ecrã com lugares onde se situa a ação do livro - imagens de Mussolini e a expressão dos "amanhãs que cantam", numa alusão à crença que pautou diversas gerações de ideologias de inspiração marxista.

Elementos do Teatro do Vestido, assim como um casal que está fora da atualidade - mas que está no tempo de Augusto Abelaira, e que, na ação da peça, vai fazer uma audição para o filme -, dão início ao espetáculo que, segundo Joana Craveiro se situa num tempo de "pós memória", em que já se pode questionar até numa perspetiva de mais neutralidade, ainda que se assuma "não neutra".

"É uma metáfora para aquilo que a geração [a que pertence] muitas vezes sentiu enquanto cresceu", prosseguiu.

"É que muito poucas respostas nos eram dadas, ou porque ainda não era tempo para falar, ou porque não havia tempo para falar, ou porque não era importante, ou porque não tínhamos estado lá quem éramos nós para perguntar".

E, passados muitos anos, e muito trabalho sobre os temas a que se tem dedicado, a criadora "não sente que haja grande abertura ainda para falar".

"Nós temos ainda de ir à procura dessas respostas", porque só agora se vai assistindo a "alguma política de memória" como estratégia de "memorialização", afirmou.

O primeiro quadro da peça fixa-se na projeção de imagens da estátua de David, na praça florentina de La Signora, com Giovanni Fazio, uma das personagens centrais da obra.

Sentado em palco, observa a estátua à distância e vê um casal de estrangeiros, enquanto uma 'voz off' acentua que Fazio compreendeu "o que era o desejo de sentir uns olhos habituados à liberdade poisarem no seu corpo de escravo".

Numa mesa dos documentos, ouve-se narrar que Fazio não conhecia "os guias do 'Petit Planète', que não tinham sido escritos ainda, como não sabia que 'disfarçado de guia de viagens' aí se encontrava um retrato real do país".

Nem sabia, também, que "em Portugal este guia iria ser proibido pela direção dos serviços da censura, e que o seu título" entraria "numa lista de livros proibidos que mais tarde um deles vai descobrir nas reservas de uma biblioteca inglesa -- já em 2021".

"Fazio não é português, não lhe compensava, se fosse português talvez não chegasse a ser livro, ficava como folha datilografada por Abelaira, Fazio era italiano e isso garantia-lhe a possibilidade de existir", ouve-se narrar, ao mesmo tempo que se percebe que Abelaira também está sentado a datilografar, numa secretária colocada no palco.

Domenico Villani, outra das personagens, entra igualmente em palco, dialogando com Fazio, e enquanto se projetam 'parangonas' por cima de imagens de Mussolini, Fazio questiona Domenico, perguntando-lhe se ainda tem paciência para ler esses discursos.

Segue-se um diálogo entre os dois jovens, Domenico, de 26 anos, e Fazio, de 28, com o primeiro a confessar que se diverte a ler os discursos, assim como a ler a "enorme repercussão que tiveram no estrangeiro", para logo afirmar "umas bestas".

"Sim... havemos de nos divertir com alguma coisa, agora que perdemos a coragem, agora que nos desinteressámos", responde Fazio.

Está dado o mote para o espetáculo a partir de uma obra que Joana Craveiro disse ter lido pela primeira vez aos 13 anos, por recomendação da mãe que o considerava "um livro "muito importante" para uma geração.

"Nunca mais me esqueci do livro", e tanto a obra como as personagens voltavam "recorrentemente", pelo que "há alguns anos pensava pô-lo em palco, até porque continua atual", disse.

O questionamento mais importante que a obra levanta é "como é que podemos não nos resignar".

Porque, para os jovens retratados na obra, "parece mais fácil resignarem-se, mesmo sendo eles de alguma forma resistentes, no sentido em que não eram afetos à situação, eram desafetos, eram resignados, quase todos eles", disse.

À exceção de Vianello, que está preso e só aparece mais tarde, na ação, assim como um 'camisa negra' fascista, Briganti, que vai aliciar um dos elementos do grupo.

Os jovens da peça passam a vida a questionar-se o que os mantém firmes e incorruptíveis, acabando por admitir que o fazem por incapacidade e por desinteresse, referiu Joana Craveiro.

"Eles estão sempre a questionar porque é que não se juntam ao regime, e eu acho que é [uma questão] muito atual, porque esta ideia dos fascismos velhos e novos não desapareceu, não vai desaparecer, faz parte das nossas lutas constantes como civilização", frisou a autora do texto que também dirige o espetáculo.

Esta "ideologia tão volátil, que se alimenta desses ressentimentos e dessa ignorância e que depois não vai fazer nada disso que as pessoas acham que vai fazer", referiu.

As pessoas, porém, "caem nessa ilusão, porque é mais fácil acreditar que alguém nos vem salvar e curar todos os males com promessas, muitas vezes vazias e vãs, e absolutamente irreais, já para não falar de preconceitos, xenofobia, ultranacionalismos e isso tudo, que são marcas muito constantes", enfatizou.

Esta é uma "imposição a que temos vindo a assistir em vários estados democráticos", "não só em Portugal, como noutros países, muitos deles da Europa" e para a qual Joana Craveiro sublinhou que "temos de estar muito alerta".

"E não nos podemos demitir do nosso papel de constantemente contrapor, estudar, dialogar, contrariar e lutar contra, até ao limite", até ao fim, até ao momento em que a ameaça se torna "uma situação atentatória dos direitos humanos", concluiu.

Questionada sobre se "A cidade das flores" -- título do livro que Fanzio está a escrever e que só se sabe quase no final do romance homónimo de Abelaira -, Joana Craveiro acredita que "sim", que ela existe, porque atirar as ilusões para futuros é sempre uma forma "escapista".

Com texto e direção de Joana Craveiro, "Juventude inquieta" é uma criação conjunta e interpretada por David dos Santos, Estêvão Antunes, Francisco Madureira, Gonçalo Martins, Gustavo Vicente, Inês Minor, Inês Rosado, João Raposo Nunes, Sara Ferrada, Simon Frankel, Tânia Guerreiro, Tozé Cunha e Violeta D'Ambrosio.

A música e o espaço sonoro são de Francisco Madureira, a cenografia, de Carla Martinez, os figurinos, de Tânia Guerreiro, e a conceção visual, realização e imagem de João Paulo Serafim.

O desenho de luz é de João Cachulo, o de som, de Pedro Baptista e Sérgio Milhano, e a operação vídeo de Henrique Antunes, que também deu assistência à encenação.

Na sala Garrett, "Juventude inquieta" pode ser vista até 31 de outubro, com espetáculos de quarta-feira a sábado, às 19:00, e, aos domingos, às 16:00.

No dia 17, após a representação, há uma conversa com os artistas; no dia 24, a sessão terá interpretação em Língua Gestual Portuguesa e, no dia 31, terá audiodescrição.

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