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"Estigma da SIDA hoje é diferente mas continua a existir e a ser sentido"

Tornou-se voluntária da Liga Portuguesa Contra a SIDA nos primeiros anos de existência da instituição, assumindo desde 2006 a sua presidência. Apesar de defender que há hoje mais informação sobre a doença do que há 27 anos, acredita também que se criou uma ideia errada de que esta é uma doença fácil e com cura. Por isso, defende, é preciso mais formação e informação.

"Estigma da SIDA hoje é diferente mas continua a existir e a ser sentido"
Notícias ao Minuto

01/12/17 por Andrea Pinto

País M. Eugénia Saraiva

Fala-se cada vez menos na SIDA e são também cada vez menos as campanhas que nos alertam para o perigo da doença. Com isso, criou-se a ideia de que hoje em dia já não se morre de SIDA e que esta já não representa um perigo para a saúde. Uma ideia que está “errada”, afirma a presidente da Liga Portuguesa Contra a SIDA, Maria Eugénia Saraiva, a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto..

A data que assinala a luta contra a SIDA, que hoje se celebra, foi implementada nos anos 80 e, desde então, muitos têm sido os avanços no que ao conhecimento sobre a doença diz respeito. Contudo, e os últimos dados da Organização Mundial da Saúde comprovam-no, há ainda muito a fazer para que se quebrem preconceitos e para que se promova o diagnóstico precoce. Para que a luta contra esta infeção se torne cada vez mais eficaz. 

A mensagem de Eugénia Saraiva, neste dia, não é por isso uma mensagem de esperança mas sim um alerta.

Se a informação no início era muita, hoje as pessoas acham que já sabem tudo, e acham que já ninguém morre de SIDA

Assinala-se hoje mais um ano da Luta Mundial contra a Sida. Que avanços se têm registado no que ao conhecimento sobre a doença diz respeito?

O sucesso que podemos assinalar tem a ver com a terapêutica. Há alguns anos a toma consistia numa quantidade de diversos anti-retrovirais, o chamado cocktail de medicação. E hoje temos doentes que tomam apenas um comprimido. Essa, posso dizer, é uma grande vitória da parte dos cientistas, dos investigadores e dos médicos face a esta infeção. Podemos assinalar também o facto de a transmissão de mãe para filho, a transmissão vertical, ser hoje bastante residual, devido ao facto de as grávidas serem acompanhadas e terem acesso a consultas através da obstetrícia, ginecologia, da maternidade Alfredo da Costa, ao grupo de pediatria.

Face a estes 27 anos da Liga Portuguesa Contra a SIDA, não podemos deixar de assinalar o envolvimento da sociedade civil, procurando respostas, procurando aquilo que hoje é o mote da UNAIDS [programa das Nações Unidas que tem como função criar soluções e ajudar nações no combate à SIDA], que é erradicar a infeção em 2030. Este já era o mote da instituição quando foi criada: acabar com o estigma, com a discriminação, não só em relação às pessoas infetadas mas também aos familiares e amigos, que conviviam de perto com esta infeção. Uma infeção que há 27 anos era mais do que isso, era uma doença que era desconhecida não só para toda a população mas também para os médicos, que não sabiam lidar com ela. Porque nessa altura esta era uma descoberta que matava e que por isso aterrorizava todos.

Outra coisa em que podemos assistir a uma grande mudança é nas campanhas. As campanhas continuam a ser poucas mas há uma diferença na campanha de há muitos anos em que se falava de morte, de sintomas... E hoje as campanhas procuram ser direcionadas para as diferentes faixas etárias e para os diferentes públicos-alvo. Pontos negativos: estas campanhas não existem. As que existem da parte do Governo são poucas e as que existem por parte das organizações vão surgindo mas dentro da disponibilidade do nosso parceiro - o  McCann-Erickson - com quem contamos há muitos anos. As campanhas não existem e se a informação no início era muita, hoje as pessoas acham que já sabem tudo, e acham que já ninguém morre de SIDA.

Essa é uma ideia errada?

O que nós tentamos informar é que na realidade existe tratamento, o qual depende da fase em que se encontra a infeção, mas é sempre preferível não viver com o VIH. Portanto, se o pudermos prevenir, é isso que devemos fazer. Logo, a estratégia passa pela prevenção, o diagnóstico precoce, a literacia na saúde, a formação nas escolas e a informação em ações de sensibilização. Estas são as estratégias em que a Liga procura investir. Claro que depois em termos mundiais estamos a falar de outros números...

Exato, porque um estudo recente da Organização Mundial da Saúde dá conta de que foram registados 160 mil novos casos de pessoas infetadas no último ano na Europa.

São dados da própria UNAIDS. É uma grande preocupação. E é também uma grande preocupação o facto de 51% dos novos diagnósticos já serem feitos numa fase avançada da doença. O que quer dizer que os diagnósticos são tardios e esta situação verifica-se em todos ao países: no Leste, na Europa e até nos países mais desenvolvidos.

As pessoas muitas vezes confundem métodos preventivos com contracetivos e não se preocupam com a sua saúde neste aspetoIsso tem a ver com a tal falta de informação?

Eu diria que é mais uma falta de gestão de informação. Primeiro falou-se muito e as pessoas cansaram-se. Hoje o VIH é mais uma doença crónica, mais uma doença que tem tratamento e com uma esperança média de vida diferente da anterior. E, portanto, as pessoas muitas vezes confundem métodos preventivos com contracetivos e diria mesmo que não se preocupam com a sua saúde neste aspeto. 

Ou seja, se atualmente ouvimos falar muito menos em SIDA isso não é propriamente um bom sinal?

Não, porque os números existem. Só este ano surgiram 841 novos casos reportados até maio, pelo Programa Nacional para a Infeção VIH/SIDA e Tuberculose.

E como é que a Liga procura combater isso?

A Liga procura apostar em novas estratégias e acredito que uma delas é a PrEP (profilaxia pré-exposição do VIH) e o autoteste, que é algo que está para ser lançado em breve. São estratégias que a nível nacional poderão vir a ajudar. A Liga defende uma maior aposta em campanhas de sensibilização para a necessidade de se usar preservativo de forma consistente, defende que o acesso aos preservativos deve ser de acesso fácil e mantermos o sistema de troca de seringas.

Em relação à PrEP, a Liga tem uma posição que é a de que quanto mais estratégias houver, melhor será para ajudar as pessoas a evitarem a doença. Nesse sentido, defendemos a utilização da PrEP porque sendo tratamento é também prevenção. E este deve ser sempre associado ao uso do preservativo para fazer reduzir o número de infeções.

A epidemia em Portugal é concentrada. É uma epidemia que acontece nas populações mais vulneráveis

Qual é que continua a ser o principal fator de contaminação?

Em termos da proporção, continua a ser entre os casais heterossexuais. Mas a epidemia em Portugal é concentrada. É uma epidemia que acontece nas populações mais vulneráveis.

Em termos de diagnóstico precoce, a Liga também procura insistir nos rastreios junto das populações mais vulneráveis, e leva a sua unidade móvel a Lisboa, Loures e Odivelas, mas sempre junto das pessoas que têm menos acessibilidade a fazer o teste. E quando falamos em teste não nos limitamos a fazer rastreios. Nós fazemos ações de sensibilização junto das pessoas porque o rastreio é, sobretudo, um momento muito importante para fazer sensibilização, literacia, e informação. O testes são feitos de forma gratuita, confidencial, e é disponibilizado aconselhamento pré e pós-teste por uma psicóloga clínica e de saúde. Com base nos resultados obtidos, temos tido uma ótima adesão da população e uma estreita relação com os parceiros sociais, que consideram uma mais-valia este tipo de iniciativa porque é uma iniciativa que funciona num contexto de proximidade.

Dizia há pouco que muitas destas pessoas que foram agora diagnosticadas, foram-no numa fase já muito avançada. A que sinais é que as pessoas devem estar alerta?

Não posso dizer que existem sinais. Aquilo que a Liga e a própria Organização Mundial da Saúde [OMS] aconselha é que se faça o teste de rastreio pelo menos uma vez na vida sobretudo sempre que existe um comportamento de risco ou casos na família. E isso - a proposta de teste- ainda acontece pouco.

Fala-se agora também  de uma estratégia muito importante, que é a realização do autoteste: comprar o teste e levar para casa para fazê-lo. Estes ainda estão a ser alvo de análise pelo Infarmed e nós, sociedade civil e Liga, que está incluída num grupo de outras organizações que constituem o fórum nacional da sociedade civil para o VIH, aguardamos que o próprio Infarmed se reúna com as organizações para falar desta situação, porque enquanto Liga também temos as nossas restrições como a de não saber como vai reagir uma pessoa que faça um teste em casa sozinho. E é isso que precisamos de esclarecer.

Até porque uma pessoa que descubra sozinha em casa que está infetada pode não ir logo procurar ajuda, por vergonha, por exemplo.

Sim, e pode ficar em casa a pensar: ‘o que é que os outros vão pensar?’. Se eu fizer este teste acompanhado por uma psicólogo ou pelo meu par, tenho ali alguém que pode ser um apoio. Esta é uma estratégia para travar a infeção mas temos de perceber como e quais são os critérios para que as coisas funcionem. No fundo, tem de haver um consenso e tem de ser feito um ajustamento de cada caso porque cada pessoa é uma pessoa.

A discriminação é resultado muitas vezes do medo, do estigma, da ostracização, e leva as pessoas a não irem fazer o testeExiste ainda muita discriminação para com os doentes de SIDA? Quais são os receios com que ainda lidam estas pessoas?

A discriminação é resultado muitoas vezes do medo, do estigma, da ostracização, e que leva as pessoas a não irem fazer o teste. Muitas das pessoas com quem convivemos, e com uma idade mais avançada, confundem os métodos contracetivos com os preventivos e dizem: ‘Eu já não engravido, por isso não preciso de preservativo’. E não associam o uso do mesmo para evitar contrair infeções. E muitas vezes diziam que nem sequer queriam fazer o teste porque não queriam saber que tinham mais uma doença.

Em termos de discriminação, muitos dos casos que existem são por falta de conhecimento por parte da população e dos próprios familiares que continuam a falar da infeção como se se contraísse pelo contacto social. Assistimos ainda à situação de famílias que abandonam, de entidades patronais que eliminam e despedem, a pais que não têm contacto com os filhos porque são portadores do VIH. O estigma é diferente daquele que existia há 27 anos, mas continua a existir de forma mais camuflada, mas não menos sentida pelas pessoas que nos procuram e que nos relatam os casos vividos.

Apesar dessas situações, pode considerar-se que hoje em dia um doente com SIDA consegue ter uma vida melhor do que aquela que tinha anteriormente? 

Um doente portador do VIH tem na realidade uma esperança diferente da que existia há 27 anos. No entanto, temos de lembrar que hoje muitos dos doentes de VIH têm as chamadas comorbidades [mais de duas doenças] e aqui, mais uma vez na faixa etária dos seniores, mais de 50 anos, assistimos muitas vezes ao facto de que a maioria da população não tem só uma doença crónica: tem VIH, Hepatite, diabetes, e aqui assistimos às coinfeções. O que é importante neste caso é fazer um investimento na área da saúde, incluir a prevenção, e não falar só do VIH, mas de todas as infeções sexualmente transmissíveis.

Os imigrantes, os homens que têm sexo com homens, os sem-abrigo e os utilizadores de drogas são as populações com que mais lidamos nos nossos centros de atendimento e apoio psicossocial. É importante integrar estas pessoas, dando-lhes uma perspetiva de esperança de vida não só em termos de mais anos, mas de anos com qualidade. E isso é uma procura constante.

No que diz respeito ao acesso aos cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde, quais são os maiores desafios enfrentados?

A Liga espera em breve poder anunciar um projeto em que tem trabalhado e que é de grande mais-valia, que é fazer uma articulação entre os cuidados de saúde primários e a Liga Portuguesa Contra a Sida porque sentimos muitas vezes uma carência. Como é sabido, em consultas com hora marcada, com tempo limitado - e em Portugal uma consulta ronda os 15 minutos - nem sempre há a disponibilidade para propor a realização do teste, para fazer uma história clínica familiar que envolva a proposta do teste, uma história de consumo, de infeções… Daí a nossa proposta de articulação entre as organizações de base comunitária com os cuidados de saúde primária e os hospitais.

E é sempre preciso lembrar aquela que é a primeira valência da Liga Portuguesa Contra a Sida, a linha SOS SIDA - 800 20 10 40, que continua a ajudar quem telefona, quem procura ajuda, aconselhando e encaminhando para profissionais especializados nesta área.

Nunca podemos falar em custos quando falamos de saúde. Falamos em ganhosFalava há pouco da falta de apoio do Estado no que diz respeito às campanhas. Foi anunciado esta semana que o Estado vai reduzir custos no tratamento dos doentes com SIDA. É algo que a preocupa?

Preocupa-me imenso o desinvestimento na área da saúde. Preocupa-me porque leva muitas vezes a uma iniquidade de acesso quer ao tratamento, quer às infeções. Nunca podemos falar em custos quando falamos de saúde. Falamos em ganhos. A prevenção não tem um ganho a curto prazo mas tem um ganho a médio-longo prazo e este tem de ser valorizado. E quando falamos em redução sabemos que existem terapêuticas diferenciadas. Por exemplo: em breve, estarão no mercado os genéricos, mas nem todos os utentes podem tomar os genéricos, e isso é importante para nós na medida em que as soluções têm de ser ajustadas às necessidades dos doentes, as terapêuticas têm de ser diferenciadas.

Em paralelo com isso, também os valores têm de ser sempre menores face ao valor anteriormente proposto pela indústria farmacêutica, mas tem de existir um consenso entre o Estado, a indústria farmacêutica e a sociedade civil de forma a envolver todas as pessoas para o melhor que se possa dar aos utentes.

Tendo em conta tudo o que foi dito, a luta contra a SIDA começa com o mudar de mentalidades?

Mudar o comportamento é preciso, mas para isso precisamos mudar as mentalidades e isso é muito difícil. Ao fim de 27 anos, temos e acreditamos que muito já foi feito. O plano de troca de seringas, estas novas estratégias que estão para sair. Mas muito caminho há ainda para percorrer e, principalmente, não podemos abrandar porque nesta fase é importante não haver um desinvestimento.

Somos todos poucos para o que ainda há para fazerDisse no início que o objetivo era erradicar o vírus até 2030. É uma meta tangível?

É o mote da UNAIDs e é esse também o desejo que nós temos. E daí o projeto Fast Track City, de unir as cidades em Portugal e erradicar o vírus. Há aqui um consenso, uma reunião de esforços, e é esta a vontade de todos os que trabalham: técnicos, investigadores… Somos todos poucos para o que ainda há para fazer.

E nesse sentido há que salientar que existe também uma desvalorização do voluntariado, do envolvimento das pessoas, e há também que motivá-las e chamá-las. Precisamos de mais pessoas que nos ajudem. As associações profissionalizaram-se mas continuamos a precisar de voluntários, de forma a podermos manter a estrutura que foi criada há 27 anos.

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