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"Continuamos a ser um povo um bocado atado e paroquial"

A arte de ser português, a governação da chamada 'Geringonça' e a realidade de um escritor em Portugal são temas analisados por Rui Zink, escritor e professor de literatura.

"Continuamos a ser um povo um bocado atado e paroquial"
Notícias ao Minuto

10/07/17 por João Oliveira

Cultura Entrevista

Rui Zink, escritor e docente de Literaturas Marginais na Faculdade Nova de Lisboa, aceitou - nos seus termos - o pedido de entrevista do Notícias ao Minuto.

Nela, lamenta a falta de destaque dado ao seu mais recente livro, 'O Livro Sagrado da Factologia', em que garante, entre outras coisas, "deixar claro para as mulheres o que é ser homem".

Por entre os diferentes temas abordados, Rui Zink analisa a 'arte de ser português', diz-se "fã" da 'Geringonça' e aponta Luís Marques Mendes como o "agente infiltrado mais flagrante" do espaço mediático.

Nos últimos anos, dedicou uma tetralogia à crise, que entretanto terá - teoricamente - terminado. O que considera ter mudado no país e na maneira de ser português desde então?

Sai um peso de cima. A realidade não mudou, mas a nossa relação com a realidade mudou, logo a realidade mudou.

A sátira foi sempre um recurso habitual na sua maneira de se expressar e escrever. É uma forma subtil de pôr o dedo na ferida ou de não se expor demasiado?

Subtil?!

Para quem participou num programa como 'A Noite da Má Língua', considera que faltam mais espaços de debate ou acredita que os espaços que existem estão ‘mal aproveitados’?

Estão demasiado ocupados com agentes infiltrados. O mais flagrante é Marques Mendes. Mas é apenas o mais flagrante.

Ainda continuamos atrofiados e viciados em duas repressões: a de não viver nem deixar viverFalar de tema ou vida alheia é, por sinal, algo muito característico na arte de ser português. Acha isso bom ou mau?

É bom, quando está do lado da vida. Comentar, criticar, sabendo que a vida do outro é do outro. É mau quando tenta limitar o outro, trazê-lo de volta para junto do rebanho. A nossa tradição de crítica é tão antiga como qualquer outra (desde a fundação da nacionalidade), mas foi entrecortada durante demasiado tempo. Em coma. Assim, em tempos de vida útil o nosso tempo de discussão livre é ainda muito jovem. Ainda falta muito para sermos um povo amante da liberdade, nossa e alheia. Duas liberdades: a de viver e a de criticar. Ainda continuamos atrofiados e viciados em duas repressões: a de não viver nem deixar viver. Alberto Pimenta descreve isso muito bem em 'Discurso sobre o filho-da-puta' (1977), um livro injustamente apreciado como a obra-prima que é ao longo dos últimos 40 anos de democracia precisamente porque ainda há muitos… Isso mesmo.

O que considera, na verdade, ser português? Como é que essa maneira de estar foi mudando ao longo dos anos?

'Ser português' não é um estado fixo. Na melhor das hipóteses, um número infinito de possibilidades influenciadas por um par de variantes: a exposição a uma cultura dominante chamada portuguesa, a uma língua, a presença num território chamado português, o reclamar ou não de uma série de heranças culturais (que vão desde a tourada à abolição da pena de morte). Um português, por exemplo, pode ou não gostar de fado, mas sabe o que é. Para se 'ser português' basta ter um par de cromos dos 32 que constituem, em 2017, o que é 'ser português'. Continuamos a ser um povo um bocado atado e paroquial, um bocadinho a dar para o iletrado, mas agora estamos mais cosmopolitas.

O sonho capitalista é tornar-nos a todos estivadores à antiga, pagos à peça

Costuma publicar assiduamente nas redes sociais. Considera-as úteis? A que níveis?

As redes sociais, para o bem ou para o mal, amplificam a nossa voz – permitem chegarmos a quem não conhecemos pessoalmente. Habituado que estou a fazer-me ouvir, dá-me a liberdade de decidir quando e do que eu falo. O sonho capitalista é tornar-nos a todos estivadores à antiga, pagos à peça: estamos na praça sem fazer nada, chega um capataz e diz-nos que tem um artigo para hoje. Perguntamos quanto paga e ele rosna que depois logo se vê, não nos armemos em espertos se não ele passa o trabalho a outros. E nós, como temos família, amochamos. A mim as redes sociais permitem-me escapar a essa cilada. E, dado que há muitos outros como eu, hoje algumas das coisas mais interessantes e informativas que leio é nas redes sociais. E ligações para artigos interessantes, também partilhadas generosamente.

Em termos gerais, quais considera terem sido os contributos negativos e positivos para a sociedade contemporânea?

Negativos: as redes sociais podem ter espatifado a nossa forma de cogitar durante centenas de anos, e não sabemos se a nova é tão boa como isso. Dificuldade de concentração, mentalidade salta-pocinhas, ilusão de vermos diferença onde só há mais do mesmo… O Grande Algoritmo pode estar, não a libertar-nos, antes a reduzir-nos a esse neo-aspeto da condição humana: consumidores manipuláveis mas que se julgam muito senhores do seu nariz.

Positivos: cortar os intermediários na relação entre uma voz e uma orelha atenta; permitir que toda a gente possa experimentar, uma vez que seja, falar para uma audiência; o sonho da autonomia total do autor.

Enquanto docente na área das ciências humanas, acredita que este plano da sociedade está a ser desvalorizado cada vez mais?

Num mundo de consumidores onde tudo é comida rápida, há cada vez menos interesse nas ciências humanas. Quando Jeff Bezos, da Amazon, decidiu criar uma editora e comprar um jornal, fê-lo por respeito a esses vetustos media ou como divertida prova de quem manda mesmo? As ciências humanas pertencem a um mundo pré-computador e pré-desregulação desenfreada das regras de interação humana, por isso são para abater. Lembram demasiado que outras formas de organizar o mundo são possíveis e que não nascemos necessariamente para ser funções tão úteis quanto dóceis.

A essência da literatura é risco – risco com as palavras, risco com as ideias, risco com a música das palavras e das ideias

No ensino superior, lecionou literaturas marginais. O que define esta vertente da literatura e por que razão escolheu ensiná-la?

Acho que a essência da literatura é risco – risco com as palavras, risco com as ideias, risco com a música das palavras e das ideias. Ora que melhor sítio para brincar aos índios e aos cowbois do que na zona de fronteira entre o que é e o que não é?

O que é que ela ensina aos alunos?

A comer de tudo um pouco. A ver que a literatura é também isso: testar os limites, ver o outro lado das coisas. Muita da chamada literatura marginal é menor? E daí? Ajuda a questionar a literatura, a relação entre a linguagem e a vida, a língua e o mundo, e isso já vale muito.

Numa época onde a cultura das massas é a que tende a prevalecer, faz falta haver mais ‘marginais’?

A arte não depende do número de interlocutores. Quanto mais séria, mais íntima e e intransmissível é a relação com o texto. Nisso é parecida com o amor.

A minha opinião está lavrada. E quem discordar vá bardamerdaEnquanto escritor, como é que se tenta captar mais leitores numa época como esta, em que o imediatismo e o consumo rápido prevalecem?

O humor ajuda. Não nos preocuparmos demasiado com isso também. Se não gostam, problema deles. Tomo dois exemplos de livros que escrevi: O 'Anibaleitor' (2010) e 'A instalação do medo' (2012). São pequenos grandes textos em qualquer parte do mundo. Eu sei. Quem leu sabe. Os livros têm sido traduzido aos bochechos, aqui e ali, com sucessos distintos. Podiam ter recebido um prémio em Portugal? Sim. Teria ajudado a viagem dos livros. Não receberam. As pessoas que estavam nos júris não os acharam merecedores. Os livros poderiam ter sido traduzidos para muitas línguas ao mesmo tempo. Seria bom. Não aconteceu. Vai aos bocadinhos. Mas a minha opinião está lavrada. E quem discordar vá bardamerda.

Considera faltarem mais iniciativas de incentivo à leitura, ou acha que não há como contrariar a força do ‘admirável mundo novo’?

Sim, faltam sempre. Eu não sou responsável pelos outros, mas sou responsável por mim. Vou desistir, só porque 'acho' que não vale a pena? Seria idiota. 'Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena'. Salvo erro, foi um poeta falhado que escreveu isto. E aqui tinha razão.

Sobre a atualidade: Como tem analisado a Governação da chamada 'Geringonça'?

Sou fã.

Depois de tantas notícias boas como o défice, o festival da Eurovisão, o europeu e as contas públicas, o Governo enfrenta agora um conjunto de notícias e acontecimentos negativos. Acredita que o Executivo vai estar a altura para saber responder a questões como a de Pedrógão ou Tancos?

Acho a pergunta impertinente. Que elementos o levam a presumir que não estariam? Ou que outro governo (neste caso, o anterior) faria melhor?

Como analisa a gestão feita até agora na pasta da Cultura? Ainda recentemente Catarina Martins considerou que a parcela do Orçamento para esta área é "vergonhosamente baixa". Concorda?

Nunca prestei muita atenção à gestão da pasta da Cultura. Não é agora que vou começar. Sou um observador interessado, mas apenas medianamente informado. Uma questão de temperamento e de foco. Acho importante haver um ministério e só isso já é uma melhoria em relação ao anterior governo, com o qual este deve ser, de momento, comparado.

É engraçado como media privados que defendem a redução do Estado e o acusam de ser um gordo esbanjador passam a vida a criticar o Estado por não esbanjar dinheiroSe esta redução for crescendo, o que acredita vir a ser o panorama cultural português?

Repare, não sei se este jornal é privado, mas é engraçado como media privados que defendem a redução do Estado e o acusam de ser um gordo esbanjador passam a vida a criticar o Estado por não esbanjar dinheiro. Publiquei um romance há quatro meses e não houve uma única recensão. Chama-se Factologia. O Diário de Notícias fez uma mini-entrevista, o Público desdenhou, o Expresso idem, a Visão, a Sábado etc. Uma alegria. Agora você faz-me esta entrevista na 'silly season'. É a altura em que se entrevistam os pesos-mortos. 

Acredita que, para se ser um artista bem sucedido não basta a qualidade intrínseca da obra? É sempre preciso um forte investimento de marketing?

Sim. Para 'ter sucesso' sim. Não necessariamente 'forte investimento', mas a informação de que a coisa existe tem de passar. O editor tem de lutar pelo livro ou pelo disco. Um editor que não o faz é um mau profissional.

Se assim for, é permitido dizer que, hoje em dia, nas ciências humanas, só ‘vinga’ quem tem poder monetário para investir em si mesmo?

Não. Porque a tecnologia é baixa. Não precisamos de subsídios para escrever um livro. É bom que instituições como o Instituto Camões ou a DGLB [Direção-Geral do Livro e da Biblioteca] apoiem deslocações, traduções, etc., mas para fazer um livro apenas precisamos de tempo. Outro galo canta com uma ópera ou uma peça.

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