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"Não se deve falar de etnia ou sexo nas adoções. Um filho não se escolhe"

A entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto é Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), entidade que assegura a coordenação do Conselho Nacional para a Adoção.

"Não se deve falar de etnia ou sexo nas adoções. Um filho não se escolhe"
Notícias ao Minuto

26/10/23 por Natacha Nunes Costa

País Conselho Nacional de Adoção

O relatório do Conselho Nacional para a Adopção (CNA), relativo a 2022 e divulgado recentemente a nível público, revelou alguns dados dignos de avaliação.

O número de crianças sinalizadas para adoção diminuiu no último ano, passando de 185, em 2021, para 173, em 2022. Um dado à partida positivo mas que pode esconder um fator menos benéfico para os menores.

Já o tempo de espera para adotar uma criança mantém-se nos seis/sete anos, algo que acontece, muitas vezes, devido às preferências das famílias, uma vez que a maioria dos adotantes continua a mostrar apenas disponibilidade para ficar com crianças dos 0 aos 6 anos, não portadoras de deficiência e sem (ou com ligeiros) problemas de saúde. Por outro lado, com o passar dos anos, as preferências de género e de etnia começaram a ficar esbatidas.

O relatório revela ainda que as "interrupções de adoções" sofreram uma "inversão da tendência" de descida e aumentaram em 2022. 14 crianças que já estavam em processo de adoção, acabaram por ver a sua vida dar mais um passo atrás. A maioria (10) encontrou um novo lar ainda no decorrer do último ano, mas não sem que o sentimento de abandono aumentasse ainda mais.

Para nos explicar estes e outros dados, falámos com Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), entidade que assegura a coordenação do Conselho Nacional para a Adoção.

O número de crianças em situação de adotabilidade sinalizada por ano em Portugal desceu em relação ao número anterior. Passou de 185 em 2021 para 173 em 2022. Isto pode ser considerado um bom sinal ou esta descida deve-se a algum fator menos positivo?

O número de crianças a quem os tribunais aplicaram uma medida de 'confiança' com vista à futura adoção desceu realmente em 2022. Os números do ano passado constatam a manutenção de uma curva descendente que vem a observar-se desde 2016. Esperamos que este dado seja positivo no sentido de cada vez existirem menos situações de quebra dos laços próprios da filiação entre famílias. Há menos crianças a serem encaminhadas para a adoção. Verifica-se menos situações de perigo porque a intervenção dos serviços a montante é mais eficaz, ou seja, há um trabalho de apoio à família para que ela possa conservar e continuar a cuidar dos filhos. Esta é uma das hipóteses positivas para esta descida e que, creio, corresponde a grande parte das situações. Evidentemente, também está presente aqui a queda da natalidade. Se há menos nascimentos também há menos probabilidade de alguns destes nascimentos virem aqui a ter insucesso junto das famílias de origem.

Se isto estiver mesmo a acontecer não é bom, uma vez que significa que há crianças que já deveriam estar noutras famílias e não estão

E qual é a hipótese menos positiva?

É o facto de haver maior dificuldade por parte dos magistrados na aplicação de uma medida de adoção, na sequência de alguns casos que foram mediáticos de condenação do Estado português pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem devido ao encaminhamento considerado abusivo de crianças para adoção sem o conhecimento dos pais. Isto poderá ter levado a uma retração na aplicação dessas medidas. Se isto estiver mesmo a acontecer não é bom, uma vez que significa que há crianças que já deveriam estar noutras famílias e não estão. Contudo, quero crer que esta descida é o resultado de um maior empenho no apoio às famílias porque esse é o principal dever do Estado: apoiar as famílias na educação dos filhos e dar-lhes todas as condições que lhes permitam exercer a sua função que é criar os filhos.

E os tempos de espera de seis/sete anos desde a formalização da candidatura até à concretização do projeto de adoção a que se devem?

Sempre houve esta lista de espera de candidatos para adoção. Isto porque o número de crianças disponíveis para adoção tem estado a diminuir e o número de candidatos selecionados em lista de espera é muito superior a este número. Para as 173 crianças que foram sinalizadas em 2022 havia mil e tal candidaturas a nível nacional selecionadas para adoção. E nem todas correspondiam a essas crianças, logo há aqui uma desadequação que, falando em linguagem comercial, corresponde à lei da oferta e da procura.

Por outro lado, a maior parte destas candidaturas diz que têm capacidade e disponibilidade para adotar crianças entre os 0 e os 6 anos, sem problemas de saúde, uma só criança [sem irmãos] e sem problemas de desenvolvimento ou deficiência o que faz com que a lista de crianças disponíveis ainda diminua mais. Portanto, quando se diz que o tempo de espera é de seis, sete anos é para estas crianças porque há candidaturas que esperaram menos de um ano pela concretização do seu projeto de adoção. Em alguns casos, assim que a família foi selecionada, foi apresentada de imediato a proposta de uma criança porque a sua abertura, a sua pretensão era para crianças que estão à espera durante anos de famílias que as aceitem ou tenham disponibilidade para as integrar.

Na maior parte dos casos estas interrupções deram lugar a uma nova integração com sucesso, noutros ainda se continua à procura da família ideal ou adequada

Apesar de por vezes esperarem anos para conseguirem adotar uma criança, o número de interrupções aumentou em 2022. A que se deve isso? Quais são as principais razões que levam as famílias a devolver as crianças que adotaram?

Este número vinha baixando mas, em 2022, registou-se uma inversão desta tendência. Estamos a falar de interrupção de uma situação em que a criança está já numa fase de transição – período de cerca de 15 dias de 'aproximação' antes de passar a viver com a família - bem como numa fase posterior, em que a criança já está a viver com os país, de pré-adoção, que dura entre 6 e 9 meses. Apesar de todas as avaliações e formações, as coisas nem sempre correm bem. Algumas das crianças que passaram por este processo de interrupção vinham de outros anos, mas a disrupção só se deu 2022.

Mas há alguma explicação para isso?

Não temos explicações. Para cada situação de disrupção, o Conselho promove uma reunião em que estão presentes todas as equipas intervenientes neste processo para avaliar o que correu mal, que circunstâncias ocorreram. Na maior parte dos casos, porém, concluiu-se que o elevadíssimo tempo de espera que algumas destas famílias enfrentaram - seis a sete anos - diminuiu a intensidade da motivação de adotar. A vida mudou. Não nos podemos esquecer que, nos últimos anos, todas as pessoas passaram por uma situação complexa que teve impacto psicológico que foi a situação de pandemia. Portanto, tudo isso fez com que algumas destas famílias, quando confrontadas com a realidade da adoção, não fossem capazes de dar a resposta necessária e desistissem perante as dificuldades que são próprias e típicas da adoção.

Por exemplo, de alguma reatividade da criança, de algumas manifestações de rejeição. Apesar dos candidatos serem informados nas sessões de formação para adoção que isso acontece e é resultado do passado de adversidade da criança, do sentimento de abandono e da necessidade de testar se a nova família é mesmo para sempre, isso, junto com o esmorecimento da motivação, faz com que as famílias não se sintam capazes de seguir com o processo. Outras vezes, são as próprias crianças que têm dificuldade em se ligar e manifestam o seu desagrado.

O que mais nos preocupa é o que tem de se fazer relativamente à criança que sofre esta disrupção porque temos uma revitimização, uma retraumatização. Este tipo de situações é sentido pelas crianças sempre como um novo abandono

Então, as crianças também podem recusar a adoção?

Legalmente, a partir de certa idade, a criança tem de prestar o seu consentimento. Em todo o caso, é um dos seus direitos, o direito de participar, de ser ouvida e da sua opinião ser tida em conta em todos os processos que lhe digam respeito. Na adoção há o cumprimento deste direito, que é não só ouvindo a criança e o que ela nos diz a partir de certa idade como através de interpretação dos seus comportamentos. Algumas destas interrupções não são porque a família tenha dito 'não quero mais', nem porque a criança tenha dito 'não quero estar aqui', mas sim porque os comportamentos da criança são o reflexo de que o processo não está a corresponder ao seu superior interesse e aí é obrigação dos serviços interromper o processo e aceitar que não resultou e que haverá outra oportunidade para integrar a criança noutra família e dar tempo para a preparar melhor para essa possibilidade.

Além disso, não podemos dramatizar este número. É um número elevado, claro. Mesmo que fosse só uma criança, já é uma frustração. Mas, em todo o caso, tratando-se de relações humanas e tendo presente que na vida fora da adoção também há muitas disrupções, este número não deve ser nem desvalorizado nem dramatizado. Na maior parte dos casos estas interrupções deram lugar a uma nova integração com sucesso, noutros ainda se continua à procura da família ideal ou adequada.

As famílias que devolvem crianças podem voltar a tentar uma adoção?

Depende. Não é preocupação deste serviço acusar ou formular juízos ou culpabilidade entre uns e outros. Porém, há situações em que se verifica que aquela família, independentemente da criança, não é consentânea com a adoção e, nesses casos, o processo é arquivado e o certificado de adoção revogado. Mas nem sempre essa avaliação é negativa no sentido de dizer que a família não tem as condições necessárias para adotar. Pode ter sido um erro de 'matching'. Nessas circunstâncias, poderá receber uma nova criança para adotar.

Casos em que houve maus-tratos, o que infelizmente pode acontecer, não só a criança é imediatamente retirada e o processo arquivado como dá lugar a uma participação ao tribunal por se tratar de um crime. Assim como as famílias que causaram prejuízos graves a uma criança depois de terem desistido do processo quase por leviandade, 'ai, afinal já não quero'. Esse ato sim, também deve ser sancionado, responsabilizado. No entanto, o que mais nos preocupa é o que tem de se fazer relativamente à criança que sofre esta disrupção porque temos uma revitimização, uma retraumatização. Este tipo de situações é sentido pelas crianças sempre como um novo abandono. Elas culpabilizam-se achando que foram elas que estiveram na origem da disrupção, porque se comportaram mal quando, sendo crianças, têm o direito de se comportarem mal. Estas crianças tornam-se mais difíceis porque, na próxima oportunidade, terão toda uma ansiedade e desconfiança perfeitamente justificada.

O sucesso escolar, académico e profissional não é o objetivo da adoção. O objetivo da adoção é o sucesso humano. É a criação de uma relação afetiva, quer para as crianças que precisam de ser adotadas, quer para a estrutura das suas vidas

O relatório debruça-se também sobre as 'preferências' das famílias. As crianças com mais de 7 anos continuam a ter menos possibilidade de um dia terem uma família que as adote. Porque é que isto acontece?

Porque há a convicção de que adotar até à idade pré-escolar dá a garantia de sucesso escolar, profissional. Muitos têm a ideia de que 'se eu a tiver antes da idade escolar tenho condições de a preparar para aos seis anos entrar na escola e ter sucesso'. O sucesso escolar, académico e profissional não é o objetivo da adoção. O objetivo da adoção é o sucesso humano. É a criação de uma relação afetiva, quer para as crianças que precisam de ser adotadas, quer para a estrutura das suas vidas. É aí que nós precisamos de investir. É no afeto, na segurança, na relação e não propriamente no sucesso. Porque nem todos temos garantia de sucesso. Há este mito de que eu vou adotar e proporcionar-lhe condições para fazer desta criança uma pessoa de grande sucesso. Como nós gostamos, quando temos filhos biológicos, que fossem excelentes profissionais, mas são aquilo que são. Há muitos mitos associados à adoção, sobretudo, se forem rapazes. Que são mais agressivos, mais violentos...

Pois, apesar de a maioria das candidaturas não ter preferência pelo sexo da criança (251), 31 dos candidatos a adotantes ainda preferem raparigas e só 11 rapazes. A que se deve isso?

As candidaturas são espontâneas, nunca houve uma campanha para captar, motivar pessoas para adoção. São pessoas que vêm espontaneamente aos serviços de adoção apresentar a sua candidatura e a maior parte dessas famílias são pessoas com problemas de infertilidade. E que, portanto, pretendem através da adoção substituir o filho que nunca foi gerado e que não conseguem gerar por isso é natural que pretendam reconstituir tudo desde o princípio e como numa gestação, há muitas vezes preferências de género, além do que já falei do mito da agressividade. Isto justifica que haja poucas famílias a dirigir a sua atenção para crianças com mais de sete anos. Por outro lado, há muitas crianças que chegam à adoção com sete ou mais anos. Esses ficam à espera que surja uma das tais famílias - que também existem – que espontaneamente vêm ter com os serviços e dizem: "eu quero adotar e estou disponível para adotar qualquer criança que precise de mim". Essas famílias não esperam quase nem um dia. Imediatamente têm adoção, mas há um número considerável de crianças que ficam à espera que surja essa tal família que tenha condições, capacidade e desejo de adotar uma criança que tenha mais de sete anos.

Se formos analisar o tipo de candidaturas que dá entrada agora, em 2022/2023, já se verifica que não há essa maioria de pretensão de etnia caucasiana. Podemos dizer que quase 50% das candidaturas dizem que é indiferente a etnia da criança

Outras adoções 'difíceis' são as de crianças portadoras de deficiência ou com doenças moderadas a graves. Há algum tipo de iniciativa para promover a adoção destes menores?

Tenho a convicção do facto de não se fazer campanhas, de não se falar dessas crianças que ninguém quer, não ajuda. É uma situação que não é conhecida. A nossa cultura atual de adoção ainda está muito centrada na resposta à fertilidade. Se perguntar, a maior parte das pessoas diz: 'adoção sim, para quem não pode ter filhos'. O que não é verdade. Temos bastantes famílias que já têm filhos. Famílias que, por alguma razão, foram tocadas por esta questão. Ou porque conheceram uma situação, ou porque são família de acolhimento, voluntários ou profissionais de saúde. Nós chamamos a essas famílias de excecionais, uma vez que vêm verdadeiramente centradas na questão da adoção: 'eu quero ser a resposta familiar para uma criança que não a tem. Estou disponível e não limito a minha escolha a idade, sexo, situação de saúde'. E é aí que acho muito importante lançar campanhas para a adoção destas crianças. Dar-lhes visibilidade e fazer com que a comunidade perceba que há crianças que podem e devem ser adotadas para a sua segurança e que ninguém sabe que elas existem, logo ninguém se pode apresentar como disponível para as adotar. Estou convencida disso. É nesse sentido que lutarei para isso possa ser feito. Para lhes dar visibilidade, dar voz, não é publicar nem publicitar.

Já as preferências de etnia recaem, na sua maioria (144), em crianças caucasianas. Porquê? Isso condiciona a adoção de ainda mais crianças, não condiciona?

Tendo em consideração o período de espera, essas candidaturas são muitas delas de 2015 e 2016, portanto, refletem uma realidade que, em todo o caso, já não é uma realidade de hoje. Se formos analisar o tipo de candidaturas que dá entrada agora, em 2022/2023, já se verifica que não há essa maioria de pretensão de etnia caucasiana. Podemos dizer que quase 50% das candidaturas dizem que é indiferente a etnia da criança. Essa preferência deve-se ainda um bocadinho ao desejo de a adoção passar despercebida, embora a necessidade de comunicação sobre a adoção e de a adoção não ser um segredo ser muito falada na preparação das famílias para adoção.

Deixar a possibilidade de alguém escolher eu quero um filho assim ou assado não devia ser permitido. Um filho não se escolhe, um filho é aquilo que é

Ou seja as famílias devem revelar logo aos filhos que foram adotados e ao seu seio familiar que adotaram uma criança?

Sim, a adoção é algo que se deve falar abertamente em família e que a criança deve saber desde o início. Contudo, ainda há um bocadinho esta ideia de poder passar despercebida. A diferença de etnia entre a criança e os adotantes evidencia a adoção, torna-a a clara, toda a gente percebe e como há muitas famílias que se candidataram há vários anos, alguns ainda têm essa tendência de adiar a comunicação da adoção. É essa a razão pela qual, ainda neste relatório, o tipo maioritário de candidatura é dirigida a uma criança caucasiana. Depois ainda há mitos relacionados com algumas etnias. Por exemplo, ainda há muita exclusão da etnia cigana por temerem que possa haver por parte dos pais biológicos, a quem a criança foi retirada, represálias. Mas hoje em dia, no que toca às novas candidaturas, tanto a etnia como o sexo já não são uma questão fundamental. Aliás, no meu entender, nem devia ser permitido falar sobre isso na candidatura, a não ser para avaliar a capacidade de abraçar uma cultura diferente que a criança possa ter, mas deixar a possibilidade de alguém escolher eu quero um filho assim ou assado não devia ser permitido. Um filho não se escolhe, um filho é aquilo que é, aquele que, neste caso da adoção, se adapta à aquela família e isso é a avaliação técnica que o deve fazer.

Das 241 candidaturas conjuntas, 16 são constituídas por pessoas do mesmo sexo. Como têm corrido as adoções por parte destes casais? Como reagem as crianças?

Eu diria que com normalidade. A não ser pelo menor número de famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo, que são ainda em menor número porque há pouco tempo que é permitida a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Fora isso, não há particularidades a mencionar. É desenvolvido um trabalho com todas as crianças, durante a preparação para adoção, sobre a conceção de família e muitas vezes a conceção de família que surge imediatamente é uma família constituída por pai e mãe, mas a adoção pode ser feita por parte de uma família de pai e mãe, só pai, só mãe, duas mães ou dois pais. Portanto, antes da adoção, há todo um trabalho de preparação das crianças para o conceito de família e essa questão é ultrapassada. Por isso, não há dificuldades a assinalar nestas situações.

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