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"Quero sair da música a olhar de frente para as pessoas, sem compaixão"

Estivemos à conversa com Clemente.

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Mariline Direito Rodrigues
06/03/2020 09:25 ‧ 06/03/2020 por Mariline Direito Rodrigues

Fama

Clemente

A história da música ligeira portuguesa tem sido marcada por vários nomes e sem dúvida que um deles é o de Clemente. O cantor do êxito 'Vais Partir' esteve à conversa com o Notícias ao Minuto, num ambiente repleto de sorrisos motivados pelas memórias que perfazem uma carreira de 50 anos. 

Descomprometido, Clemente fala-nos do início da sua carreira no mundo da música por causa de uma partida dos amigos, regada com cervejas. Comenta o preconceito ainda existente relativamente ao seu género musical, do qual nunca se deixa de orgulhar. 

Fala, por fim, de nunca ter desejado formar uma família. Não se sente só, até porque se assume sempre muito bem acompanhado pelos seus livros e por um grupo de amigos próximo em que pode confiar.

No próximo mês de maio completa 65 anos. O tempo passa depressa demais?

Nem dei pelo tempo passar e são 50 anos de carreira. Viajei muito e cantei pelo mundo inteiro. 

Naquele tempo ser cantor era muito mais respeitado. Hoje tornou-se banal Quando é que começou a cantar?

Comecei a cantar aos 15 anos, mas o sonho de estudante quando tinha Geografia era conhecer o mundo naquelas fotografias que eu via das cidades e que achava fantásticas. A minha cabeça viajava. Quando percebo que através da música tinha esse mundo à mão então aí… atirei-me. 

Então, as viagens foram a sua principal motivação?

Sim, claro que também gostava de cantar, mas era algo que me fascinava. Mas não era pela vaidade porque naquele tempo ser cantor era muito mais respeitado. Hoje tornou-se banal com a mediatização. Era um dois em um: gostar da música e viajar pelo mundo inteiro. 

Os seus pais aceitaram bem a decisão?

Não. [Mas como] Comecei a cantar como vocalista de um grupo de estudantes lá de Setúbal, aí foi mais fácil. Eram mais velhos do que eu. Mas ainda assim foi complicado. Venho de uma família de classe média. O meu pai era primeiro maquinista da frota de  pesca que ia pescar para o Cabo Branco e a minha mãe estava em casa a cuidar de mim. O sonho deles de estudar num grau académico elevado, era o que tinham para mim. 

Mas chegou a ir para a universidade?

Sim, fiz a entrada para o primeiro ano de Germânicas, porque era o que gostava. Comecei a falar inglês muito cedo, algo inédito para a altura. 

A certa altura como era o DJ, eu é que dizia quem entrava nos bailes de garagem   Teve uma adolescência feliz?

Sim. Naquele tempo era das poucas pessoas da minha idade com um gira-discos a pilhas, um Philips, que levava para todo o lado. A certa altura como era o DJ, eu é que dizia quem entrava nos bailes de garagem. As miúdas entravam todas, os outros fulanos… [diz, enquanto se ri]. 

Mas como é que apareceu a música?

Foi muito giro. Começo a cantar como vocalista do grupo Os Pumas por um desafio tonto dos meus colegas. Aconteceu uma vez que fomos para um baile popular e claro, naquela idade não era suposto beber cerveja, mas devo confessar que nós bebemos umas quantas. Os meus colegas então disseram: ‘Não tens coragem de ir ali e dizer que queres cantar aqui no baile’. O álcool da cerveja funcionou [recorda bem disposto].

Nem sabia se aquilo estava no meu tom, não tinha noção nenhuma da música. Vi ‘Make Me An Island’ de um cantor muito conhecido, o Joe Dolan, e sabia aquilo de trás para a frente. Correu de tal forma bem que o próprio vocalista, que ia para o serviço militar,  disse-me: ‘Olha, vamos fazer-te um desafio. Vens ao ensaio nosso, eu vou ao serviço militar, e se quiseres o lugar de vocalista é teu’. 

No outro dia a minha mãe [que trata carinhosamente como senhora mãe] foi à Mercearia e a senhora que estava lá disse: ‘O seu filho canta muito bem’. Eu não podia cantar sem a permissão dela, porque era obrigatório e ela não achou piada nenhuma, porque disse que estava a fazer um grande sacrifício. 

Fiz nove festivais internacionais a representar Portugal E a partir daí nunca mais parou...

As coisas na minha vida aconteciam, não sei se era o destino. Fiz nove festivais internacionais a representar Portugal. Só não fiz o Festival da Canção da RTP, porque o ano em que nós éramos para ir houve aí uma coisa, que eu não vou contar, nos bastidores. Tínhamos uma canção do Tozé Brito e do António Sala para concorrer. 

Se calhar iria ganhar…

Não iria, porque os dados nesse ano já estavam lançados e por isso mesmo é que nós não fomos. 

Quando é que se lançou a solo? 

Três anos depois, aos 18 anos. E foi outra coincidência. Estou num baile a tocar com o meu conjunto e nessa noite havia um espetáculo de variedades. O mestre Jorge Machado chegou ao pé de mim e disse: ‘Olhe, não trazemos aparelhagem, eu trago aqui um teclado para ligar à vossa aparelhagem e os cantores vão cantar aí’. Cedemos, aquilo correu muito bem, eu começo a cantar e no intervalo o mestre Jorge disse-me que eu tinha muitas qualidades e deixou-me um cartão. Pensei que só estavam a ser simpáticos e passado uma semana telefonei, porque não tinha nada a perder. Liguei e vem ele ao telefone. É ele que me indica para o meu programa de televisão que se chama ‘Canal 13’ e que vem logo a seguir ao ‘Zip Zip’. 

Como é que foi a estreia em televisão?

A senhora mãe foi assistir à gravação. Eu estava nervoso, mas ela é que perdeu as luvas [recorda, entre gargalhadas]. Correu muito bem. A partir daí veio o convite para fazer o primeiro disco com uma editora do Porto. Ora, um jovem com 18 anos recebe assim uma proposta... claro que fui.

Acha que a música ligeira antes era mais valorizada do que é agora?

Quando começa a nova música portuguesa com os cantores de intervenção, no final dos anos 60, há uma separação. Os cantores que cantavam música ligeira eram chamados nacional cancionistas e havia os outros que era a nova música portuguesa...

Uns são cantores pimba e outros... mas sabe que isso nunca me incomodou?Mas existe preconceito?

Existe, não tenho dúvida nenhuma. É assim como se houvesse várias divisões no campo da música. Aos olhos do público consumidor de espetáculos isso não acontece de forma tão atenta, agora ao nível das grandes cidades e da comunicação social existe esse 'separar de águas'. Uns são cantores pimba e outros... mas sabe que isso nunca me incomodou?

As más vontades e o preconceito bacoco… já ouvi gente a emitir opiniões sobre música que percebem tanto daquilo como eu de mandarim

Nunca se sentiu injustiçado? 

Não, porque a minha consciência está perfeitamente tranquila. Trabalhei com os maiores maestros, com o maiores músicos, gravei com a orquestra sinfónica de Madrid, gravei discos em França. As más vontades e o preconceito bacoco… já ouvi gente a emitir opiniões sobre música que percebem tanto daquilo como eu de mandarim. Há amigos meus que me disseram que eu estava mal aproveitado ao fazer este tipo de música. Eu ouvia aquilo e ria porque eu gosto de fazer este género de música. O ‘Vais Partir’ é transversal e toda a gente acha que é uma grande canção. A ‘Colmeia do Amor’ a nível de uma elite já não. 

Em relação ao ‘Vais Partir’ estava à espera que tivesse tanto sucesso?

Eu sou amigo do Marco Paulo há muitos anos e ele entra na minha vida aos 10 anos porque a senhora avó me ofereceu os discos. Ele tinha vindo de uma tournée da Alemanha, isto em 1978, fui a casa dele e disse-me que tinha trazido assim uma data de música. Eu ouvi aquela música e pensei que tinha muita força. Mostrei a música ao António Sala e ele disse para a gravarmos.

Percebi que ia correr bem porque a senhora que limpava o estúdio disse-me num intervalo da gravação: ‘Senhor Clemente, tem aqui um grande sucesso’.

Gravámos em outubro de 1979 e foi lançado em abril de 1980. Eu vou ao ‘Eu Sou Nico’, do Nicolau Breyner, ainda em março, e acabo por ir cantar o ‘Vais Partir’. Quando o programa vai para o ar eu nem conseguia ir à rua. Ainda pensei que era por ser de Setúbal, mas quando vou a Sesimbra à procissão do Senhor das Chagas,  todas as barracas que vendiam cassetes estavam a passar a canção. Nesse verão - entre junho e final de setembro - fiz 82 espetáculos

E no meio de toda esta agitação nunca sentiu necessidade de construir família?

Não. Porque tinha muito pouco tempo para estar em casa. Fazia digressões nos Estados Unidos e Canadá de 45 dias. Havia meses em que quase não ia a casa. 

 No final da senhora mãe dei conta que o ser humano não é flor que se cheire E não se arrepende dessa decisão? Não faria as coisas de forma diferente se pudesse?

Não, porque vivemos num mundo de grande indiferença. No final da senhora mãe dei conta que o ser humano não é flor que se cheire. Porque contaram-me e assisti a coisas que realmente partiram-me o coração. Pessoas que deixam os pais nos hospitais e que dão moradas falsas para irem de férias, por exemplo. Houve uma altura em que tive de deixar a minha mãe num lar e uma vez disseram-me que gostavam de ter muitos como eu e ela. Tenho uns amigos fantásticos, um grupo pequeno, mas que sei que posso confiar. Tenho tido uma vida fantástica, não me posso queixar.

E não tem medo da solidão?

De todo! Eu adoro ler, depois vejo muita televisão. 

O que nos pode dizer sobre este novo disco?

Este disco é o que acompanha os 50 anos, chama-se ‘Promessas de Amor’. Foi gravado na Alemanha. É um estilo totalmente novo, é um corte com as canções românticas para ter uma música mais dançável.

Há gente com muita modernidade, acho que estamos no bom caminho. 

Como é que vê a nova geração de artistas?

Há gente muito talentosa. São muito mais desinibidos do que éramos no nosso tempo. Hoje é mais fácil por causa da globalização. No meu tempo era impossível, tinham todos de passar um crivo. Hoje as pessoas são livres. Há gente com muita modernidade, acho que estamos no bom caminho. 

Se tivesse de dizer alguma coisa ao Clemente com 15 anos o que seria?

Para ter juízo! Não te metas a fazer coisas [diz, entre muitos risos]. 

Quando ‘partir’ efetivamente, como é que gostaria de ser recordado?

Nunca pensei nisso, sinceramente. Que dissessem que eu tinha sido uma pessoa honesta, amigo dos meus amigos, acho que é a melhor coisa. Mas não estou nada preocupado com isso, porque acho que nunca fiz nada de tanto merecimento para ser lembrado.

Quero sair da música a olhar de frente para as pessoas, sem que tenham compaixão  Hoje é tudo tão passageiro, as pessoas que ficam são aquelas que marcam um país socialmente. Estou perfeitamente resolvido. Só quero ter saúde mais uns anos e cantar para aí mais cinco/seis anos. Há-de haver uma altura em que vou sair e quero fazer isso com dignidade, na posse de todas as minhas faculdades. Quero sair da música a olhar de frente para as pessoas, sem que tenham compaixão. 

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