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"Ninguém devia ser sujeito a degradação e violência só por ser mulher"

Com recurso a relatórios e estatísticas, Cho Nam-Joo pintou um retrato da vida das mulheres coreanas nos dias de hoje, com o qual "o maior número possível de mulheres se pudesse identificar". O Notícias ao Minuto conversou com a autora de 'Kim Jiyoung, nascida em 1982', cuja tradução em português chegou às livrarias na véspera do Dia Internacional da Mulher.

"Ninguém devia ser sujeito a degradação e violência só por ser mulher"
Notícias ao Minuto

14/05/24 por Daniela Filipe

Cultura Literatura

A primeira edição de 'Kim Jiyoung, nascida em 1982' foi publicada quase à boleia do brotar do movimento #MeToo, que se alastrou um pouco por todo o mundo, em meados de 2016. Baseando-se na sua própria experiência enquanto mulher que, após o nascimento da filha, deixou o emprego para se tornar dona de casa, a autora sul-coreana Cho Nam-Joo transpôs para o papel a realidade enfrentada pelas suas conterrâneas, ainda que qualquer mulher se possa rever nas experiências da protagonista.

O livro, que foi traduzido para mais de 20 idiomas e vendeu mais de dois milhões de exemplares a nível global, chegou a Portugal precisamente na véspera do Dia Internacional da Mulher, assinalado anualmente a 8 de março. O Notícias ao Minuto conversou com a escritora sobre este terceiro romance que preparou o caminho para uma nova onda feminista na Coreia do Sul, impulsionando os debates sobre a desigualdade e a discriminação de género não só naquele país, mas no mundo.

Com recurso a relatórios e estatísticas, Cho Nam-Joo pintou um retrato da vida das mulheres coreanas nos dias de hoje, com o qual "o maior número possível de mulheres se pudesse identificar". E, apesar de o país continuar a adotar uma postura "muito tolerante em relação aos crimes sexuais", a autora verificou que, se antes "havia um sentimento de derrota e cinismo", atualmente as mulheres sabem que as suas vozes "fazem a diferença".

Ninguém devia ser sujeito a degradação e violência só por ser mulher. A frustração, a exaustão e o medo que advêm do facto de se ser mulher. Quis escrever uma história sobre algo que é tão vulgar e comum, mas que não deve ser tomado como garantido

O que é que a motivou a escrever sobre os problemas e a discriminação que as mulheres enfrentam diariamente?

Na Coreia, por volta de 2015, houve uma enorme onda daquilo a que chamaria um ‘reboot’ feminista. Nessa altura, muitos meios de comunicação social e a Internet estavam a ridicularizar e a rebaixar as mulheres, e havia até um novo termo chamado ‘mamchung’ que comparava as mães a vermes. Vídeos ilegais e de violência sexual no maior site de pornografia da Coreia do Sul foram divulgados e as mulheres começaram a manifestar-se, e acho que escrevi este romance no meio disso. 

Senti que ninguém devia ser sujeito a degradação e violência só por ser mulher. A frustração, a exaustão e o medo que advêm do facto de se ser mulher. Quis escrever uma história sobre algo que é tão vulgar e comum, mas que não deve ser tomado como garantido.

Escreveu esta obra em apenas três meses, mas está repleta de estatísticas que comprovam os vários níveis de discriminação na Coreia do Sul. Foi fácil colocar no papel aquilo que sente na pele?

Queria que o romance servisse como um registo imparcial da vida das mulheres coreanas nos dias de hoje, e queria ter a certeza de que não era apenas ficção, ou seja, uma história inventada, mas que era real para alguém. Para isso, precisava de dados objetivos para apoiar a história, e utilizei relatórios e estatísticas dos meios de comunicação social.

É claro que ‘Kim Jiyoung, nascida em 1982’ tem as suas falhas e limitações, e é natural que haja uma apreciação crítica, mas não posso deixar de me sentir impotente perante aqueles que o ridicularizam e condenam sem o lerem devidamente

Licenciei-me em Sociologia na universidade e trabalhei como guionista para um programa de televisão antes de começar a escrever romances. Sigo as notícias e tenho o hábito de procurar as fontes das estatísticas citadas nos relatórios. No entanto, os meus outros romances são no chamado "formato tradicional de romance". Para a história de ‘Kim Jiyoung, nascida em 1982’, achei este estilo narrativo eficaz e citei ativamente fontes e estatísticas.

Kim Jiyoung poderia ser qualquer mulher; até este nome foi escolhido propositadamente, uma vez que é um nome muito usado na Coreia do Sul. Como é que o livro foi recebido pelas mulheres? E pelos homens?

As leitoras falavam frequentemente de si próprias: das suas experiências como filhas, alunas, funcionárias, mães. [Partilhavam] pensamentos, dúvidas e perguntas que tinham ao verem as mulheres à sua volta... Mesmo em entrevistas à imprensa, as jornalistas falavam das suas próprias histórias antes mesmo de eu lhes poder fazer perguntas, como o facto de terem deixado os filhos com as mães para a entrevista, ou as dificuldades que enfrentavam numa organização exclusivamente masculina. Pensei: "Este é o tipo de romance que nos faz querer falar de nós próprios, e eu quero manter as mulheres a falar”.

Nos primeiros dias após a publicação do livro, os leitores do sexo masculino disseram-me que tinham adquirido uma compreensão mais profunda da vida das mulheres, e os políticos que expressaram publicamente o seu apreço e o recomendaram eram todos homens. Depois, à medida que o romance se tornou sinónimo de "vozes de mulheres", "narrativas de mulheres" e "ficção feminista", senti a reação a crescer. É claro que ‘Kim Jiyoung, nascida em 1982’ tem as suas falhas e limitações, e é natural que haja uma apreciação crítica, mas não posso deixar de me sentir impotente perante aqueles que o ridicularizam e condenam sem o lerem devidamente. 

Pensou nas repercussões que a obra teria a nível internacional quando o escreveu?

Quando escrevi o romance, o meu objetivo era conseguir que fosse publicado. Quando o filme foi lançado, o realizador disse que sentia que a narrativa de ‘Kim Ji Young, nascida em 82’ tinha vida própria. Quando vejo o romance a ser traduzido e publicado em vários países, penso para comigo: "Quero que a história de 'Kim Jiyoung, nascida em 1982' se espalhe mais, que faça as pessoas falarem, que faça as pessoas pensarem, que faça as pessoas discutirem, que faça as pessoas existirem." Penso que ‘Kim Jiyoung, nascida em 1982’ é mais corajosa e mais empreendedora do que eu.

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© Porto Editora  

A capa do livro também é simbólica, tendo em conta que retrata uma mulher sem rosto. Que outros simbolismos queria transmitir?

Em ‘Kim Jiyoung, nascida em 1982’, escrevi sobre a experiência universal das mulheres como um relatório antropológico. Kim Jiyoung é um quadro de emoções e experiências, e queria que os leitores fossem capazes de se colocar a si próprios, e às mulheres à sua volta, nesse quadro.

Contou que, se fosse um rapaz, o seu tio – que já tinha cinco filhas – tê-la-ia adotado. Que aspetos desta história são autobiográficos?

Quando compus ‘Kim Jiyoung, nascida em 1982’, reuni experiências deixadas por mulheres em várias redes sociais, cibercafés e quadros de avisos, e selecionei episódios de artigos, entrevistas, webzines e livros sobre a vida e o trabalho das mulheres. Tentei escrever algo com que o maior número possível de mulheres se pudesse identificar e, como resultado, tenho experiências semelhantes. Por exemplo, a ordem dos números de turma na escola, assédio sexual em grande e pequena escala, apoio em casa que se centrava mais nos filhos do que nas filhas e interrupções na carreira depois de ter filhos.

Segundo os dados que apresentou, era comum as mulheres abortarem quando sabiam que estavam grávidas de uma menina. Como é que encara este tipo de misoginia enraizada nas próprias mulheres?

Todos nós interiorizamos as normas e os valores da sociedade em que vivemos. Se nascermos, formos educados e vivermos numa sociedade patriarcal e masculina, mesmo uma mulher terá valores patriarcais e masculinos. 

Nos anos 80, ao contrário do que acontece atualmente, a Coreia tinha uma política de controlo da natalidade devido às preocupações com o crescimento demográfico. Numa altura em que as pessoas tinham apenas um ou dois filhos, a preferência pelos rapazes manteve-se e, quando os avanços da medicina permitiram identificar o sexo do feto, nasceu o fenómeno da escolha dos filhos. Penso que abortar uma menina é uma escolha do casal e da família e não uma escolha individual da mãe, e é um reflexo dos valores sociais.

No romance, há uma cena em que a mãe de Kim Jiyoung é pressionada indiretamente pelas opiniões do marido e da sogra e sofre com as consequências de ter abortado.

Quando falamos com os homens sobre misoginia e sexismo, dizemos muitas vezes coisas como "pensa na tua mãe" ou "pensa na tua mulher ou filha", mas acho que há limites para essa abordagem, porque não é uma questão de favorecimento pessoal, é uma questão de bom senso e decência

Quando pensamos no sexismo na Coreia do Sul pensamos, muitas vezes, em câmaras nas casas de banho, como retratou no livro. Isto ainda acontece?

A Coreia do Sul continua a ser muito tolerante em relação aos crimes sexuais, e os inúmeros crimes de assédio sexual, agressão sexual e perseguição, bem como os crescentes crimes sexuais digitais baseados em comunidades de homens na Internet, páginas Web e outros, nunca foram devidamente investigados e punidos, nem mesmo os casos da Dark web altamente publicitados, a conduta sexual imprópria de funcionários do gabinete do Procurador-Geral e os crimes sexuais que envolvem celebridades.

Em todas as ocasiões, as mulheres ficaram indignadas e desesperadas, mas não desistiram. Lutaram por investigações e punições e assumiram a responsabilidade de localizar e processar os criminosos e ajudar as vítimas. Foram estudantes universitárias que localizaram e processaram os crimes sexuais do Telegram, e a vítima de uma tentativa de violação e homicídio tornou pública a sua história e recuperação, e denunciou a falta de investigações. Admiro e apoio as mulheres coreanas que chegaram até aqui e sei que não vamos parar por aqui.

A reviravolta no final pretende mostrar que, na realidade, todos os homens pensam da mesma forma, por serem um produto da sociedade em que vivem?

Quando falamos com os homens sobre misoginia e sexismo, dizemos muitas vezes coisas como "pensa na tua mãe" ou "pensa na tua mulher ou filha", mas acho que há limites para essa abordagem, porque não é uma questão de favorecimento pessoal, é uma questão de bom senso e decência, e queria chamar a atenção para isso. 

Não creio que haja uma pessoa específica, independentemente do género, que esteja a causar dor a Kim Jiyoung, mas ela sente que está em frente a uma grande parede sem respostas. Não é um problema individual, é um problema estrutural.

Onde antes havia um sentimento de derrota e cinismo, vimos em primeira mão que as nossas vozes fazem a diferença, e não acho que essa experiência e convicção sejam facilmente abaladas

De onde acha que surgiu a crença de que o homem é superior à mulher? Como é que a podemos combater?

A Coreia do Sul atravessou um período de grande crescimento nos anos 70 e 80, que criou um ambiente estável para a força de trabalho e introduziu o modelo de família do ganha-pão masculino. É claro que as mulheres não deixaram de trabalhar - continuaram a fazer trabalhos irregulares e mal pagos, como fez a mãe de Kim - mas estavam escondidas na sombra do patriarca, e agora que estamos a viver um período de baixo crescimento, penso que ainda estamos presos à ilusão da família normal. A Coreia tornou-se uma sociedade em que as pessoas não se casam e não têm filhos. Penso que as perceções sociais, as instituições, a cultura empresarial, etc., devem e irão mudar.

Que avanços considera que houve desde 2016, tendo em conta o brotar do movimento #MeToo?

Sinto que a mudança é simultaneamente grande e lenta. Estarmos a assinar petições, a protestar e a sair para as ruas tem feito a diferença. As narrativas centradas nas mulheres tornaram-se mais proeminentes na cultura pop e na literatura. Estamos a ver punições para os perpetradores do #MeToo, leis de aborto a serem revogadas e melhores penas para crimes sexuais. É claro que a reação negativa é muito forte neste momento. Mas onde antes havia um sentimento de derrota e cinismo, vimos em primeira mão que as nossas vozes fazem a diferença, e não acho que essa experiência e convicção sejam facilmente abaladas.

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