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"Onde a Justiça é paga, quem tem mais meios pode recorrer mais"

A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, é a entrevistada desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

"Onde a Justiça é paga, quem tem mais meios pode recorrer mais"
Notícias ao Minuto

05/09/19 por Anabela Sousa Dantas

País Francisca Van Dunem

"A condição económica modela sempre tudo, e não é só na Justiça", respondeu de forma assertiva Francisca Van Dunem, quando questionada sobre a diferença imposta pela condição social no acesso à Justiça. A ministra que tutela a pasta não menoriza o tema, sublinhando a importância do apoio judiciário, mas não sem chamar a atenção para o custo, por exemplo, de um processo.

A governante, a primeira mulher negra a liderar a Justiça em Portugal, é igualmente frontal no comentário a outros temas da atualidade, numa entrevista concedida ao Notícias ao Minuto, no seu gabinete do Ministério da Justiça, em Lisboa.

A ministra abordou temas como a corrupção, uma batalha antiga, dado que trabalhou na Alta Autoridade Contra a Corrupção entre 1985 e 1987.

Na relação entre as forças policiais e as comunidades marginalizadas pede bom senso, numa altura em que as tensões raciais estão mais demarcadas. Sobre movimentos como a Nova Ordem Social, Van Dunem garante que quem tem de estar atento, está.

Nascida em Luanda, em 1955, Van Dunem é magistrada do Ministério Público (MP) desde setembro de 1979, e desempenhou, de 2007 a 2015, quando foi convidada por António Costa para integrar o Governo, um dos cargos mais importantes do Ministério Público, o de Procuradora-Geral Distrital de Lisboa.

Elogiada pelos seus pares pela franqueza e profissionalismo, como atestam os vários perfis sobre si publicados, Francisca Van Dunem dá respostas concisas, em tom sereno. Mantém uma postura distante e uma interação contida, características traídas apenas pelo sorriso, franco e afável. Sobre a possibilidade de continuidade no cargo, Francisca Van Dunem não se compromete, garantindo apenas a vontade de continuar a servir o país, "em qualquer dimensão".

O mesmo juiz pode julgar corrupção, crime violento, pode julgar fraudes. Essa questão dificulta a menor celeridade ao nível do julgamentoFicou encarregue da pasta da Justiça num período de grande conturbação. Vários setores fizeram greve, como os dos juízes, magistrados do MP, guardas prisionais, funcionários judiciais, inspetores. Que balanço faz do trabalho realizado neste âmbito?

Penso que ao longo destes quatro anos foi possível, relativamente à esmagadora maioria das profissões do judiciário, encontrarmos soluções que, de alguma forma, respondessem às necessidades que essas profissões tinham de atualização dos respetivos estatutos e, por outro lado, que ponderassem as dificuldades e as limitações que nós tínhamos do ponto de vista financeiro. Considerando também, obviamente, o interesse do Estado no aperfeiçoamento nas condições dessas profissões.

Ainda não é um trabalho terminado.

Diria que está quase terminado porque, como sabe, nós revimos o estatuto dos juízes, o estatuto do Ministério Público (MP), as carreiras e orgânica da Polícia Judiciária (PJ), fizemos uma intervenção, ainda que mais limitada, no estatuto dos guardas prisionais. A única coisa que ficou por fazer com respeito a essas carreiras especiais foi o estatuto dos oficiais de justiça.

Já disse antes que a corrupção é um dos crimes que mais a preocupa e que o tratamento do crime económico-financeiro sofreu uma grande evolução nos últimos anos. O que é que ainda falta mudar ou que obstáculos ainda falta ultrapassar?

Acho que há muito para fazer na dimensão da prevenção. Coisas tão pequenas como criar cada vez mais serviços online, aumentar a eficiência de respostas quer da administração quer do sistema de Justiça. Isso corresponde à prevenção na medida em que as pessoas percebem que não há crime sem castigo. Não há nada pior do que ineficácia da resposta do judiciário no que diz respeito à manutenção de certo tipo de condutas.

Mas também, do ponto de vista repressivo, nós verificamos que, se por um lado se melhorou o nível de esclarecimento do crime, teremos ainda de fazer alguma intervenção do ponto de vista do direito premial [colaboração na descoberta e esclarecimento de, por exemplo, casos de corrupção] para facilitar ou para se conseguir chegar mais longe e mais cedo à prova.

E depois outra dificuldade que registamos é na transição para a fase de julgamento. O MP acusa mas depois os julgamentos são muito longos…

Porque é que isso acontece?

Por uma razão lógica, é que o MP especializou-se. A reforma de 1998, que ainda foi protagonizada pelo Procurador Geral da República (PGR) José da Cunha Rodrigues e o então ministro da Justiça Vera Jardim, prometeu ao MP criar os DIAP e criar secções especializadas (a PJ também tem especialização). Ao nível do julgamento... nos magistrados judiciais não há especialização. O que significa que o mesmo juiz pode julgar corrupção, crime violento, pode julgar fraudes, pode julgar várias realidades distintas entre si. Essa questão dificulta de facto a menor celeridade ao nível do julgamento. É preciso encontrar nessa fase, que é a fase específica do julgamento, respostas que sejam adequadas para uma maior celeridade.

A antiga PGR ainda este ano disse que há "redes que utilizam o aparelho de Estado para corrupção". Qual é a sua perceção?

Repare, a afirmação é da senhora PGR Joana Marques Vidal. Uma afirmação dessas pressupunha da minha parte conhecimento factual que me permitisse refazer a afirmação em qualquer circunstância. E não tenho. De facto, não tenho. É óbvio que em todos os tipos de criminalidade há estruturas, organizações criminosas que conhecem melhor determinados meios e que, por essa razão, se dedicam à prática de certo tipo de crimes. Isso acontecerá no crime económico-financeiro, como decerto acontecerá nos roubos.

Se me pergunta se do ponto de vista de uma realidade genérica, e em abstrato, a afirmação pode ser verdadeira, eu diria que sim. Do ponto de vista de uma realidade genérica é, obviamente, verdade que há grupos que se aproveitam, e que se organizam, para praticar crime em certos setores, aproveitando as debilidades do sistema ou o conhecimento que eles próprios têm do sistema.

Não há uma teoria da conspiração, é algo que acontece de forma orgânica?

De forma mais orgânica, sim.

Notícias ao MinutoFrancisca Van Dunem foi, também, diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, entre 2001 e 2007© Imagem cedida pelo Ministério da Justiça

Sente que cumpriu a missão a que se propôs no âmbito da modernização da Justiça?

Não tenho dúvida de que cumpri a missão a que me propus, embora ache que ainda há muito para fazer. A questão da modernização é um contínuo. Provavelmente aquilo que era moderno em 2008 hoje está desatualizado. Tenho um programa, que foi concebido aqui no Ministério, inicialmente com 120 medidas, que depois foram aumentando. As 120 medidas, no essencial, estão cumpridas e eu podia dar-me por satisfeita por essa razão. Mas ainda há coisas para fazer. O processo de mudança, sobretudo quando estamos a falar de mudança ao nível do digital e ao nível de tecnologias, que evoluem muito rapidamente, é um processo permanente e nós temos de acompanhar.

Para quando a adaptação das custas judiciais ao rendimento dos cidadãos?

Nós falamos sobre isso várias vezes e o Governo apresentou ao Parlamento uma proposta que não foi aprovada nesta legislatura. Obviamente, será um tema que o próximo Governo terá de ter em atenção. É verdade que nós temos uma realidade – e os relatórios internacionais dizem isso – em que, do ponto de vista do apoio judiciário, Portugal é dos países que mais paga, embora depois pague menos per capita. O que significa que há mais gente carente deste apoio do que em situações comparadas.

Independentemente disso, acho que é importante garantir o acesso de todos à Justiça, de forma equilibrada e de forma equitativa. Considerando sempre, por um lado, que esse direito é um direito constitucional mas, por outro lado, tem de haver aqui limites. Limites esses que, do meu ponto de vista, devem basear-se em critérios que tenham a ver com a situação económica das pessoas e com o valor das transações que têm para propor.

Se fizer uma relação entre o custo de um processo e aquilo que as pessoas pagam, irá ver que há uma diferença grandeÉ verdadeira a perceção que existe de que há uma Justiça a duas velocidades, dependendo do poder económico do cidadão?

É tudo a duas velocidades, ou a três, dependendo do poder económico dos cidadãos. É verdade, não é? Há uns que andam de comboio, outros que andam na easyJet, outros que andam em aviões particulares. Há cidadãos que usam o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que queremos que seja o melhor possível, e outros que recorrem ao privado e até para o estrangeiro. A condição económica modela sempre tudo, e não é só na Justiça.

Naquilo em que a Justiça é paga, quem tiver mais meios pode recorrer, digamos, a mais intervenções processuais. Quem tem menos meios tem de fazer uma ponderação mais cuidada.

Falou na Saúde, que tem o SNS. A minha pergunta é: qual é o SNS da Justiça?

Eu percebo, eu percebo. O SNS é aquilo que se funda no apoio judiciário, basicamente é isso. Em princípio, permite às pessoas aceder, ou gratuitamente ou de acordo com critérios que tem a ver com a sua situação económica, à Justiça e aos tribunais sem ter de despender de tudo aquilo que a Justiça efetivamente custa.

Quanto custa um processo, quanto é que as pessoas pagam por um processo? Para ter um processo é preciso haver um juiz, um advogado, um oficial de justiça, há toda uma máquina por detrás desse processo. Se fizer uma relação entre o custo desse processo e aquilo que as pessoas efetivamente pagam, irá ver que há uma diferença grande.

Já há um modelo para rastrear como a informação relativa a processos em segredo de justiça chega a público?

Não, não existe um modelo de rastreio [risos]. Pode haver um modelo de investigação, mas os modelos de investigação param muitas vezes onde começam os outros segredos. Quando se chega à barreira do outro segredo, o segredo profissional, a capacidade de rastrear pára. Mas  diria que, se houver diligência e vontade, se consegue estabelecer circuitos e fazer um juízo suficientemente fundado, pelo menos, para produzir acusações.

No limite, só temos uma alternativa - que é a alternativa dos ingleses -, que é o ‘contempt of court’, ou seja, desobediência para com o tribunal. Se o processo está em segredo, considerar que a violação do segredo constitui desobediência pelo tribunal e, a partir desse momento, haver uma prática de crime.

Na senda de casos como o do Bairro da Jamaica ou da esquadra de Alfragide, como é que se trata o racismo nas forças policiais sem perturbar a tranquilidade ou a ordem pública?

Nós temos aí uma equação um pouco complicada para resolver. O primeiro ingrediente para a resolver é o bom senso. Tem de haver equilíbrio, porque é óbvio que se, por um lado, as forças policiais têm de agir em situações de confronto, em situações em que seja necessário restaurar a ordem pública, não é menos verdade também que as pessoas dessas zonas se sentem discriminadas e não devem ser criadas condições para que elas leiam a forma de intervenção policial como influenciada pela sua condição racial.

O MP abriu um inquérito para investigar a eventual existência de um crime de incitamento ao ódio e à violência numa mensagem publicada nas redes sociais pelo movimento de extrema-direita Nova Ordem Social. Não pode ser considerado também incitamento ao ódio e à violência a recente organização de uma conferência para debater posições que são contrárias à Constituição?

Sei que essa situação foi muito discutida, na altura. Não sei qual foi o conteúdo da conferência, sei que foi um encontro privado de organizações. Tenho de dizer que, do ponto de vista das instituições que têm o dever de controlar esse tipo de fenómenos, que as instituições estão devidamente atentas. Sempre que essas organizações ou essas pessoas ultrapassam os limites daquilo que é aceitável e passam para o domínio penal, as instituições, nomeadamente a PJ, agem.

Se me pergunta se acho ser normal, considerando a diversidade de Portugal, que houvesse mais pessoas de outras etnias e de outras origens, acho que sim, devia haverFoi a primeira mulher negra a integrar um governo em Portugal, numa altura em que os discursos de ódio racial se fazem ler e ouvir com muito fervor. Alguma vez sentiu racismo na execução da sua função?

Não, não posso dizer que alguma vez tenha sentido. As coisas não são assim [risos]. Não frequento redes sociais e como calculará nunca ninguém, formalmente, numa situação institucional, teria para comigo qualquer reação que pudesse ser lida como preconceito racial.

A Francisca Van Dunem cidadã - mulher, negra - sente-se representada no Parlamento?

O Parlamento, é verdade, representa a população portuguesa. Se me pergunta se acho ser normal, considerando a diversidade de Portugal, que houvesse mais pessoas de outras etnias e de outras origens, acho que sim, devia haver. Mas diria que não é um problema, talvez, de representação, ou seja, se houver um deputado de origem africana ou de origem asiática, acho que ele não estará lá a representar a comunidade asiática. É um deputado que foi eleito por uma comunidade, deve respeito, em princípio, aos seus eleitores, mas deve respeito ao país no seu conjunto. Não gosto muito de interpretar as coisas nesse sentido. Penso eu que os deputados que lá estão representam, também, os interesses de todas as comunidades.

O que me parece atípico, anormal, nesta altura é que, sendo Portugal um país tão singularmente diverso, e existindo essa diversidade há décadas, não tenha havido processos de ascensão social que fizessem com que houvesse pessoas com outras origens hoje também representados no Parlamento. Isso causa-me estranheza. Mas não coloco a questão em termos de representação.

Em que aspeto diria que a carreira como magistrada não a preparou para o exercício político?

Disse isso uma vez, é verdade. O trabalho dos magistrados é um trabalho relativamente isolado, é um trabalho fechado, o modo de agir dos magistrados, a forma como nós somos formados para agir não tem nada a ver com a ação política, que é intervenção pública e permanente. Há uma dinâmica da intervenção política que não tem nada a ver com a atividade da magistratura.

Tem planos para continuar no cargo?

Eu tenho planos para servir o país em qualquer dimensão. Sou magistrada e não pretendo abandonar [risos]. Tal como disse, estou disponível para servir o país em qualquer circunstância.

Teria feito alguma coisa diferente nestes últimos quatro anos?

Há seguramente coisas que teria feito de forma diferente. Não sou capaz agora de me lembrar em específico, mas, num percurso de quatro anos intensos e com tanto empenho, há seguramente coisas que teria feito de forma diferente. Mas nada de essencial.

Ou seja, está mais bem preparada para continuar.

Não [risos]. Eu diria que ao longo destes quatro anos fui ganhando a 'endurance' e as competências necessárias para exercer esta atividade.

*Pode ler aqui a segunda parte desta entrevista.

 

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