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Vozes ao Minuto: "Há o mito de que quem ameaça suicidar-se não o faz, mas é ao contrário"

Vozes ao Minuto: Francisco Paulino, presidente da Linha SOS Voz Amiga, é o convidado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

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Anabela de Sousa Dantas
03/01/2019 09:20 ‧ 03/01/2019 por Anabela de Sousa Dantas

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A Linha SOS Voz Amiga foi a primeira linha telefónica do género em Portugal. Criada a 9 de outubro de 1978, é um serviço de prevenção de suicídio e de apoio a situações de sofrimento causadas pela solidão, ansiedade ou depressão. No ano da celebração dos seus 40 anos existência, esteve em risco de fechar.

Francisco Paulino, presidente do serviço, falou com o Notícias ao Minuto sobre as dificuldades enfrentadas em 2018 e sobre a intervenção da Altice Portugal, que cedeu um espaço a custo zero para que os voluntários possam continuar a trabalhar.

Na direção desde 2014, depois de uma década do outro lado da linha, Francisco Paulino falou também sobre a importância de uma linha de apoio no contexto da depressão, usando um provérbio árabe que lhe foi ensinado cedo: ‘O que não conseguires contar ao teu melhor amigo, conta ao viajante na estalagem’.

A SOS Voz Amiga atende, atualmente, cerca de 4 mil chamadas por ano, mas já atendeu 12 mil, quando havia mais voluntários. No entender de Francisco Paulino, a área da saúde mental em Portugal tem sido alvo de estudo e planeamento, mas falta a execução.

Recorde-se que a linha funciona todos os dias entre as 16h e as 24h através dos números 213 544 545, 912 802 669 e 963 524 660. Entre as 21h e as 24h está aberta a Linha Verde gratuita, através do número 800 209 899.

Passámos alguns momentos de angústia. Batemos a várias portas, inclusive, do GovernoA linha SOS Voz Amiga celebrou em 2018 o seu 40.º aniversário. Que balanço faz destas décadas ao serviço da população?

O balanço em termos de atendimento é positivo. Nós já levamos 260 mil atendimentos. Agora estamos a fazer média de 4 mil chamadas por ano. Isso tem a ver com o número de voluntários que temos, se tivermos mais voluntários temos mais turnos abertos, se tivermos menos, só podemos atender entre as 16h e a meia-noite, horário que fazemos de há uns anos a esta parte.

Nos primeiros anos atendíamos do meio-dia à meia-noite e quase todas as madrugadas. Nessa altura, tínhamos uma média de 12 mil chamadas por ano, mas também tínhamos um grupo de voluntários entre os 40 e os 45. Agora temos entre os 20 e os 22, tem-se mantido por aí.

Se contassem com mais ajuda, em termos de voluntários, haveria uma média de chamadas maior.

A descida do número de voluntários, pelo menos é aquilo que nós achamos, tem a ver com o seguinte. Inicialmente havia muito poucas linhas de apoio, era a nossa e mais duas ou três generalistas. Com o passar dos anos foram aparecendo uma série delas, específicas. Hoje em dia há linhas para tudo e as pessoas dispersam-se. Não só os apelantes como os voluntários porque há mais escolha.

Antes estávamos a atender numa marquise fechada. Tínhamos reuniões fora dali porque não havia espaçoHá uns meses noticiou-se que o serviço estava na iminência de fechar, por não ter capacidade para arrendar um novo espaço. O que é que aconteceu?

Passámos alguns momentos de angústia. Batemos a várias portas, inclusive, do Governo. Apelei ao senhor primeiro-ministro, que encaminhou para dois ou três gabinetes mas a partir daí a resposta foi nula. Entretanto, na véspera de fazer 40 anos saiu uma reportagem na televisão e, como todos sabemos, a televisão tem muita força. Houve uma resposta muito boa, com várias pessoas a oferecerem espaços e aí tivemos a oportunidade de escolher o melhor. Primeiro, em termos de localização, que é um item importante, porque a maior parte dos voluntários desloca-se de transportes [públicos]. Os turnos terminam à meia-noite, mas nem sempre. O grupo é maioritariamente composto por senhoras, imagine sair às 2h ou 3h da manhã, sozinhas.

Quem é que nos acudiu? A Altice. Fizemos um contrato de cedência, assinámos na segunda-feira, 10 de dezembro, e já lá estamos instalados. Um espaço ótimo, que nos permite até crescer, porque antes estávamos a atender numa marquise fechada. Tínhamos reuniões fora dali porque não havia espaço. Esta resposta foi ótima.

Eles cederam um espaço…

Cederam um espaço para atendimento, que é enorme. Se crescermos em tamanho, permite-nos até ter mais voluntários a atender. Estou muito agradecido à Altice Portugal. Como sabe, as rendas em Lisboa, hoje em dia, estão incomportáveis.

Desde 2008 que não temos um cêntimo de ajuda por parte do EstadoComo é que sobrevive a SOS Voz Amiga?

Desde 2008 que não temos um cêntimo de ajuda por parte do Estado. As nossas despesas, em termos gerais, não são muito elevadas. São cerca de 10 mil euros por ano, mas para quem não tem nada, é muito. Nos últimos anos, o que nos tem ajudado é o IRS solidário [consignação de IRS], no início de cada ano. Temos tido uma média de 5 mil euros e isso já é metade das nossas despesas.

As despesas que temos são com as técnicas de saúde mental, que dão apoio e formação aos voluntários. O resto era a renda, que a partir de agora não vamos ter, porque a cedência do espaço é a custo zero. Temos também despesa com contabilista e outras despesas operacionais. Temos ainda alguns sócios, que [no conjunto] nos dão cerca de mil euros por mês e o restantes temos conseguido através de donativos particulares. Mas andamos ali sempre à justa, o nosso plafond nunca excede muito as nossas despesas.

É o trabalho voluntário que mantém o serviço a funcionar?

Exatamente. Tanto os dirigentes como os voluntários, ninguém recebe absolutamente nada.

Quantas são as pessoas que compõe o serviço?

Neste momento, temos 22 voluntários.

Como é que é feita a sua formação?

Numa primeira fase, com as técnicas de saúde mental. Todos nós sabemos ajudar, um amigo ou um familiar, mas este tipo de ajuda é diferente, requer uma preparação. Os voluntários, depois, são integrados no grupo que já atende. Durante dois meses assistem, apenas. Temos reuniões semanais para, por um lado, apoiar aquele voluntário que numa chamada mal conseguida ficou com algum desconforto, e depois, com as técnicas de saúde mental, tentamos que elimine esse desconforto. Por outro lado, para formação contínua. Aquilo que discutimos ali não é a chamada que aconteceu porque essa chamada é sigilosa, anónima, mas o que surgiu e o que poderia ter sido feito melhor.

Isto vale o que vale porque todas as chamadas são diferentes. Há chamadas que chegam de depressão, solidão, problemas afetivos e crónicos, mas cada pessoa que vem com esse problema tem de ter um atendimento diferente, porque é única.

Isto são situações verídicas: uma senhora idosa que pede desculpa mas que não tem mais ninguém a quem ligar e, como mora sozinha, não tem a quem dizer boa noiteImagino que mesmo na seleção de pessoas para trabalhar como voluntário no SOS Voz Amiga nem toda a gente consiga lidar com…

Não, não. Logo num primeiro momento nós relatamos duas ou três chamadas mais complicadas para ver como a pessoa reage, não pode ser confrontada sem preparação. O que pode acontecer, medindo numa escala, vai do 0 até ao 100. No zero estará, por exemplo, e isto são situações verídicas, uma senhora idosa que pede desculpa mas que não tem mais ninguém a quem ligar e, como mora sozinha, não tem a quem dizer boa noite. Estas situações são um murro no estômago, mas são das mais fáceis. A situação mais complicada e que, felizmente, acontece menos vezes é o suicídio em direto.

Já aconteceu?

Já. É aquela chamada em que a pessoa diz ‘olha, já tenho tudo preparado, queria só partilhar com alguém estes últimos momentos’.

E o que é que um voluntário faz nessa situação?

Isto parece um contrassenso, mas nós, que somos a favor da vida, respeitamos num primeiro momento a decisão daquela pessoa. Não desvalorizamos, porque isso já fizeram com ela. Para chegar àquele ponto já houve quem desvalorizasse. Há esta tendência de achar que a pessoa que diz que se vai suicidar não o faz. Não, é ao contrário. Se a pessoa diz, se ameaça, mais tarde ou mais cedo acaba por fazer. O que nós fazemos é valorizar a intenção daquela pessoa e tentar, depois, que explique por que chegou àquele momento. Felizmente, por vezes, conseguimos evitar o pior naquele dia, naquela tarde ou naquela noite. Mas, infelizmente, por vezes não. Em casos raros.

Numa situação dessas, depois da chamada terminar, o que faz o voluntário?

Estão sempre disponíveis os números da coordenação, porque o voluntário, num momento desses, tem de falar com alguém. Não pode ficar sozinho com aquele peso. Mas felizmente, isso aconteceu poucas vezes.

As chamadas são completamente sigilosas, não é?

Sigilosas e em anonimato. A pessoa que liga só se identifica se quiser.

Lembro-me de uma chamada particular, de uma senhora, que costumava ligar. Ela estava a pedir para ligarmos para a polícia e ouvia-se o marido a tentar arrombar a porta do quarto onde estava fechada Numa situação limite, do género da que exemplificou, o voluntário pode chamar as autoridades?

Não porque os números são barrados na central. Para proteger o anonimato há essa componente. Nós nem sabemos quem é que está a ligar. A angústia ainda é maior, não podemos fazer absolutamente nada.

Agora estou só na direção, mas estive no atendimento durante muitos anos. Lembro-me de uma chamada particular, de uma senhora, que costumava ligar. Ela estava a pedir para ligarmos para a polícia e ouvia-se o marido a tentar arrombar a porta do quarto onde estava fechada. Pedia por favor para chamar a polícia, porque a polícia já não dava importância, já tinha havido muitas queixas. Dizia que se fosse eu a ligar… Imagine a minha angústia, não podia fazer nada.

Nunca chegam a saber quem são as pessoas do outro lado da linha?

Não, nunca.

Nem que essas pessoas tenham vontade de vos conhecer?

Às vezes querem, mas não podemos fazer isso. Às vezes ficam tão agradecidas que querem conhecer a pessoa que as ajudou. No nosso site temos um espaço para mensagens, e há uns dias tínhamos lá um agradecimento de uma pessoa que ajudámos há 20 anos. Agradecia porque a nossa intervenção lhe mudou a vida completamente, pela positiva. E também já aconteceu termos pessoas que foram ajudadas a vir trabalhar como voluntários. Só sabemos porque a pessoa diz. As pessoas são ajudadas e depois querem retribuir. Ao longo dos anos tem acontecido.

O Francisco já falou de solidão na terceira idade, de depressão. Qual é o problema com que lidam mais vezes?

Solidão e depressão. Por vezes, as duas juntas. Nos casos de solidão são pessoas mais velhas, nos casos de depressão não necessariamente. Se eu quisesse fazer um perfil-tipo de quem liga teria de dizer que é mulher, entre os 40 e os 55 anos e normalmente é depressão. As pessoas até estão a ser acompanhadas, mas é diferente uma consulta médica e falar com alguém anónimo.

Ainda há o estigma em torno da doença?

Também, também. A depressão nos primeiros anos nem aparecia nas estatísticas porque não era considerada sequer doença. Era uma manha ou uma mania.

Recentemente, o ex-ministro da Saúde [Adalberto Campos Fernandes] admitiu que a depressão tem características epidémicas em Portugal.

A vida em sociedade está cada vez pior, as exigências, o stress. Isto leva as pessoas por este caminho.

Há o mito de que quem ameaça [que se vai suicidar] não o faz, mas é o contrário

Como é que a comunidade pode ajudar alguém em risco de suicídio?

Estar mais atentos aos sinais. A maior parte destas pessoas dá sinais. Como já disse, há o mito de que quem ameaça não o faz, mas é o contrário. Se aquela ideia está ali na cabeça, vai ser trabalhada e se não for acompanhado, se não tiver ninguém que se preocupe, se não houver apoio, médico ou familiar…

Há comportamentos que são transversais?

Um deles é esse: dizer que o quer fazer. Outro é quando a pessoa se isola, de forma repentina. Aqueles pessoas que, do nada, resolvem fazer um testamento. Que começam a despedir-se dos familiares, a distribuir os seus bens. Isso são tudo sintomas e muitas vezes desvalorizamos.

No ano passado, saiu um estudo que diz que os portugueses adquiriram 20 milhões de psicofármacos por causa da depressão. Seria importante haver mais ajuda deste género?

Os nossos telefones de ajuda são referidos no Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, que faz parte de um outro mais alargado, que é o Programa Nacional da Saúde Mental. Neste Plano Nacional de Prevenção do Suicídio é referido que os telefones de ajuda são muito importantes. As intenções suicidas surgem por picos. Se naquele pico de crise houver alguém que escute, que conforte e que valorize o sofrimento daquela pessoa, isso é muito importante.

Nós somos, salvo erro, cinco linhas de ajuda em Lisboa. Há duas no Porto, uma em Coimbra, surgiu uma em Aveiro e ainda há outra da Inatel, que também faz apoio. Aqui ao lado, em Espanha, o Telefone da Esperança tem, salvo erro, 50 postos de atendimento. Em França a mesma coisa.

Notícias ao MinutoSOS Voz Amiga também dispõe de um número gratuito, a Linha Verde (800 209 899).© Reprodução

Acha que em Portugal, na área da saúde mental, poder-se-ia fazer mais?

Decididamente. Aliás, isso é reconhecido pelo atual diretor do Programa Nacional da Saúde Mental. O professor doutor Fernando Miguel Teixeira Xavier diz isso mesmo. Existe um plano mas a aplicação é que é difícil. A coordenação entre as partes está a ser difícil. Não há apoio. Agora não tenho bem presente as estatísticas, mas li há dias que em cada cinco pessoas que têm perturbações mentais duas não têm acompanhamento. Ou porque o Serviço Nacional de Saúde não tem capacidade de resposta, ou porque as pessoas não têm dinheiro para ir ao privado. No público a resposta é fraca, até na questão da medicação. Além de ser cara, a medicação tem de ser revista regularmente. É preciso uma gestão mais próxima. Da parte do Estado, isso não acontece.

Por que razão um serviço como o vosso é importante?

É importantes porque para muitos é o único espaço que têm para ser ouvidos. E não passa sempre por aí. Lembro-me de um dos técnicos dizer, na minha formação, um provérbio árabe que diz o seguinte: ‘O que não conseguires contar ao teu melhor amigo, conta ao viajante na estalagem’. Muitas vezes esse é o problema, nem em casa conseguimos verbalizar o que vai dentro. Admitir as derrotas, as frustrações, as preocupações. Nestes telefones, sob anonimato, criando-se uma relação de empatia com a pessoa que está do outro lado, é tão mais fácil. Nos dez anos em que estive no atendimento, quantas pessoas não ligavam a chorar por razões diversas e depois de se acalmarem, já descontraídas, conversavam um bocadinho e, sem as ver, já lhes conseguia adivinhar um sorriso no rosto. Aqueles minutos podem ser uma ilha de apoio para uma pessoa. É uma espécie de último recurso. Para alguns, literalmente.

Quando é que o Francisco chegou ao SOS Voz Amiga?

Cheguei em 1998, há vinte anos. Entrei como voluntário, depois fui coordenador dos voluntários vários anos, saí durante algum tempo e em 2014 fui convidado para a direção. E estou lá desde então.

Do tempo em que esteve no atendimento há alguma chamada que o tenha marcado particularmente?

Muitas, mas para mim as mais difíceis são chamadas de mães que perderam os filhos. É das coisas mais dramáticas. Não há apoio que se possa dar, deixa-se chorar. Deixa-se chorar, fazendo a outra pessoa sentir que não vamos desligar. A pessoa chora, acalma-se um pouco, depois fala um pouco. O desgosto não passa, evidentemente, mas sente-se apoiada naquele pedacinho. A morte de um filho nunca é ultrapassada. É dos piores momentos, e foram vários.

Nota: O entrevista

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