Admissão da independência de Timor foi uma "reação irritada" de Habibie
A representante de Portugal na Indonésia durante o processo timorense, Ana Gomes, disse hoje que a admissão pública, pelo então Presidente Habibie, da independência do território foi "uma reação irritada", provocada pelas autoridades australianas.
© Reuters
Política Ana Gomes
A propósito da passagem dos 20 anos das declarações históricas do então Presidente interino da Indonésia, Jusuf Habibie, sobre a independência do território, que hoje se assinalam, em entrevista à agência Lusa, Ana Gomes, que integrou a equipa portuguesa nas negociações sobre a égide das Nações Unidas, recordou que a admissão da independência de Timor-Leste "caiu como uma bomba", surpreendendo, em particular, a parte indonésia.
"Vinha ao arrepio do que Portugal e a Indonésia tinham acertado, que era discutir um estatuto de autonomia que seria posto à consideração do povo de Timor. Foi uma bomba, muito mais para o lado indonésio do que para nós, mas foi para todos", disse.
A 27 de Janeiro de 1999, o novo Presidente da Indonésia, Jusuf Habibie, que chegara à Presidência na sequência da queda de Hadji Mohamed Suharto, anuncia que Timor iria receber uma "autonomia regional" e que "se a maioria dos timorenses não a quisesse, [o Governo iria sugerir ao Parlamento que] Timor fosse libertado da Indonésia".
Ana Gomes estava em Nova Iorque, a dois dias de viajar para Jacarta, onde a 30 de janeiro assumiria a chefia da Secção de Negócios de Portugal na Embaixada da Holanda, aberta na sequência das negociações que estavam a decorrer sobre a autonomia do território.
"Ficamos absolutamente espantados porque aquilo punha em causa a posição negocial da Indonésia, que nunca tinha querido por a referendo a ideia de independência ou sequer admitir a ideia de independência. Os indonésios foram os mais chocados", recordou.
Para Ana Gomes, o que Habibie fez foi oferecer aos timorenses "um Mercedes", quando lhe tinha sido prometida "uma bicicleta".
"Os timorenses mesmo que não soubessem conduzir, obviamente preferiam o Mercedes", sustentou.
A eurodeputada, que no dia seguinte ao histórico anúncio tinha uma nova reunião negocial, recorda "perfeitamente a cara" do chefe da delegação indonésia quando lhe foi perguntado sobre as declarações do Presidente Habibie.
"O principal negociador indonésio estava completamente aparvalhado com aquela posição do Presidente Habibie", disse Ana Gomes.
A eurodeputada, que mais tarde viria a ser embaixadora de Portugal na Indonésia, enquadra a posição do antigo chefe de Estado no contexto da sua condição de Presidente interino, de membro de um grupo muçulmano "assertivo", que considerava os timorenses ingratos, e com uma personalidade de "franco atirador".
Por outro lado, acredita Ana Gomes, a tomada de posição resultou de "uma irritação provocada" pelo primeiro-ministro da Austrália de então, John Howard, que, em carta dirigida a Habibie, sugeriu para Timor-Leste uma solução semelhante à encontrada pelos franceses para a Nova Caledónia.
"Isso irritou profundamente Habibie[...] porque a Nova Caledónia era um exemplo colonial e se havia coisa que muita gente não gostava na Indonésia era que assimilassem o seu papel em Timor-Leste ao de uma potência colonial. Aquilo foi visto como um insulto de uma potência a imiscuir-se e [...] portanto, teve aquela saída, de improviso e irritada", considerou.
Para Ana Gomes, tratou-se de "um ponto de não retorno" em que o que passou a estar em causa já não era a autonomia, que viria a ser rejeitada em massa no referendo de 30 de agosto, mas a independência.
A eurodeputada aponta, no entanto, que havia quem pensasse que se tratava de mais "um truque" dos indonésios para "destabilizar o processo negocial", mas diz ter recebido, quase de imediato, garantias do ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia, Ali Alatas, de que o processo negocial era para continuar.
"Em Jacarta, tive desde logo a intuição de que era uma oportunidade única que não podíamos lançar pela borda fora. [...] A partir daí mudou de facto o curso da História", disse.
Já com um novo presidente eleito nas primeiras eleições democráticas na Indonésia, Abdurrahman Wahid, o parlamento indonésio aprovou a 28 de outubro de 1999 a desanexação de Timor-Leste.
"No dia seguinte apresentamos o pedido de restabelecimento das relações diplomáticas, que foram restabelecidas dois meses depois, a tempo de Portugal, no dia 01 de janeiro de 2000, assumir a presidência da União Europeia, facto muito importante para a celeridade de todo este processo", disse.
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