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Randall's Island, onde "sonho americano morre" para milhares de migrantes

Há meses à espera de uma oportunidade para recomeçar a vida em Nova Iorque, como milhões antes deles conseguiram nos últimos séculos, imigrantes dos quatro cantos do mundo começam a questionar-se, como o equatoriano Jhon, se "o sonho americano morreu".

Randall's Island, onde "sonho americano morre" para milhares de migrantes
Notícias ao Minuto

09:39 - 03/02/24 por Lusa

Mundo Estados Unidos

À margem do East River, com o sol a pôr-se e o vento gélido a soprar, um grupo de migrantes venezuelanos, equatorianos e senegaleses, das barracas de plástico que montaram para passar a noite, os arranha-céus de Manhattan, luxuosos e iluminados.

Cada um tem a sua história, mas todos esperam por uma autorização de trabalho ou asilo. Além da esperança de uma vida melhor, partilham a falta de preparação para as baixas temperaturas que se fazem sentir em Nova Iorque nesta altura do ano, com mínimas noturnas em torno de -5ºC na última semana.

Com umas sapatilhas de pano húmidas nos pés, Jhon, de 52 anos, conta à Lusa que termina em breve a sua autorização de 30 dias para permanecer dentro das grandes tendas montadas pela autarquia de Nova Iorque na Randall's Island - onde cerca de 3.000 migrantes dormem todas as noites.

É com os olhos marejados e com a voz embargada que Jhon explica que a sua história até chegar a Nova Iorque "é longa" e inclui um sequestro no México. Foi largado numa ponte - que até hoje não sabe o nome - e conseguiu fazer a travessia a pé para o Texas. Já no lado norte-americano, foi colocado num autocarro e enviado para Nova Iorque.

No Equador era barbeiro... e na Randall's Island também. A sua "veia empreendedora" levou-o a improvisar uma "barbearia ao ar livre", bem na frente das enormes tendas brancas.

Com uma cadeira e com uma máquina barbeadora "barata", Jhon cobra 10 dólares (cerca de nove euros) por cada corte de cabelo e barba aos jovens migrantes e, por vezes, cinco dólares, se "a pessoa não puder pagar mais".

Mas não se fica por aí. Atento às necessidades e aos diferentes gostos de cada migrante, o equatoriano começou também a vender chocolate quente por um dólar, além de café, bolachas e sanduíches com vários recheios.

"Quando encontro algumas promoções, invisto e compro biscoitos e 'brownies' de chocolate. O pessoal do Haiti e do Senegal gosta muito de pão com maionese e, por isso, também tenho comprado. É assim que vou juntando algum dinheiro", contou mostrando um recibo de 82 dólares (76 euros) que gastou na sua mais recente ida ao mercado.

Nos tempos livres, aprende inglês: "Conseguiram colocar-me numas aulas gratuitas. Levo o meu caderno, aponto tudo e, à noite, até adormecer, fico a repetir as palavras, e depois as frases, até assimilar tudo".

Até há poucos meses, jogava-se à bola nos inúmeros campos desportivos da Randalls Island, mas agora é a vida de milhares de pessoas que está em jogo nesta pequena ilha de Nova Iorque que acolhe o maior abrigo da cidade para requerentes de asilo.

A prioridade é dada a famílias, mas a maioria das pessoas que está no exterior das tendas, à espera de uma cama ou de algum tipo de ajuda, são homens solteiros.

Dentro das tendas, não há privacidade e casos de violência não são raros, com um venezuelano de 24 anos morto à facada no início de janeiro. Mas, em contrapartida, as noites são mais quentes.

Apesar de um regresso ao Equador não fazer parte dos seus planos, Jhon não esconde a mágoa pelas situações a que tem sido submetido e assegura que essas amarguras "mataram o sonho Americano", não só o seu, mas o de milhares de pessoas na mesma situação.

"A realidade é que este é um país de imigrantes. Foram os imigrantes que também trouxeram a cidade à tona. A maioria das construções foi feita por migrantes. Então, porque é que nos querem virar as costas agora? Eu também vim trabalhar, vim colaborar. Obviamente, nem todos têm boas intenções. Como acontece com qualquer saco de arroz, sempre há um grão que não está limpo, mas devem dar-nos uma oportunidade de trabalho", defendeu.

Desde a primavera de 2022, 172.400 migrantes passaram pelo sistema de admissão de Nova Iorque, gerando uma enorme e insustentável crise migratória que custa aos cofres da cidade milhões de dólares todos os meses, segundo o gabinete do 'mayor', Eric Adams.

A situação agravou-se no verão passado, quando governadores republicanos de estados do sul dos EUA, como o Texas, começaram a enviar autocarros com migrantes para estados democratas, como Nova Iorque.

Além disso, um acordo legal único, designado "direito ao abrigo", exige que a cidade de Nova Iorque forneça uma cama a cada sem-abrigo que a solicite, levando à rutura dos já lotados abrigos da cidade.

Para tentar aliviar essa pressão, Eric Adams endureceu ainda mais as regras dos abrigos, limitando a 30 dias o tempo de permanência de migrantes adultos em instalações administradas pela autarquia.

Ao contrário de John, nem todos os migrantes que chegam a Randall's Island têm a mesma facilidade em ultrapassar obstáculos e em criar oportunidades nas adversidades.

É o caso de um grupo de três jovens venezuelanos que está há vários dias a dormir diretamente no chão frio e molhado da ilha. Esgotaram a capacidade de permanecer dentro das tendas e não conseguiram abrigo em outro lugar.

Andrés, de 32 anos, tem os olhos com lágrimas e o rosto vermelho, queimado do frio.

Diz à Lusa: "Estou completamente atordoado. Há quem pense que estou drogado, mas quem pensa assim nunca passou frio. Estou gelado".

Sem tirar as mãos dos bolsos, conta que entrou - tal como os seus amigos e milhares de outras pessoas - pela fronteira dos Estados Unidos a pé e chegou a Nova Iorque através de boleias.

Refeições completas ainda não fizeram desde que entraram no país, alimentando-se à base de sanduíches -- "quando têm essa sorte" - mas, sobretudo, à base de fruta que um conhecido lhes vai levando.

"Não imaginávamos que isto fosse assim, que iríamos passar por isto", disse, por sua vez, Antony, de 26 anos.

Ao relento, com os seus finos casacos, esperam conseguir autorizações de trabalho que lhes permitam mudar de vida, já que regressar à Venezuela "nem pensar".

Do outro lado do rio, em Manhattan, dezenas de requerentes de asilo, maioritariamente provenientes de África e da América Latina, aglomeram-se na calçada da East 7th Street, no bairro de East Village, ao lado Tompkins Square Park.

O objetivo é conseguirem serem atendidos na St. Brigid's, uma escola católica fechada desde 2019 que passou a ser o centro de operações de Nova Iorque para realocação de migrantes que já ultrapassaram os 30 dias de permanência em abrigos da autarquia.

Nas paredes exteriores da escola, e em nove idiomas diferentes, estão afixadas regras de conduta para os migrantes, que incluem a proibição de porte de armas, de urinar em público, de cuspir noutra pessoa ou intimidar o próprio 'staff'.

Além das listas com 18 regras a cumprir sob pena de não voltarem a ser atendidos pela autarquia, os migrantes veem ainda afixados cartazes a informar que Nova Iorque se disponibiliza a pagar-lhes uma viagem para qualquer lugar fora da cidade.

Mas a maioria prefere manter-se em Nova Iorque, esperando que o tempo tudo resolva.

Enquanto isso, o número de pessoas sem-abrigo na cidade disparou 53% no ano passado, dados impulsionados pelo aumento implacável de migrantes, de acordo com um relatório divulgado na terça-feira pela autarquia.

Além do número dos sem-abrigo, cresce também o sentimento anti-imigração em Nova Iorque, com a Igreja Episcopal de Saint John, em Staten Island, a recuar na sua intenção de abrir cerca de 57 camas para requerentes de asilo após o reverendo Hank Tuell ter denunciado, no mês passado, que recebeu "ameaças perturbadoras de grupos anti-imigrantes, que foram tristemente encorajados por vários políticos eleitos".

Uma realidade adversa que contrasta com as esperanças de Jhon: "a verdade é que o sonho americano morreu", afirma.

"Não passa de um sonho. A realidade é muito mais difícil", lamentou o migrante equatoriano em declarações à Lusa.

"Cada pessoa que está aqui tem uma história diferente, cada uma pior do que a outra. Ninguém aqui tem nada de bom para contar. Passamos por amarguras, por frio, por depressão e tristeza. Viemos aqui para trabalhar, para produzir, para ter uma vida melhor", disse Jhon.

"Não somos cidadãos americanos perfeitos, eu sei, mas talvez um dia cheguemos a ser. Não sei como se coloca um viajante numa terra estrangeira, mas não é assim que deveria ser".

Leia Também: Sem ajuda, autarca de Queens recusa virar costas a "irmãos migrantes"

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