Após o golpe militar de 11 de setembro de 1973, a embaixada italiana em Santiago tornou-se um dos principais refúgios seguros para muitos apoiantes do Presidente Salvador Allende, que morreu nesse dia do assalto ao Palácio de La Moneda.
O historiador Loris Zanatta conta à Lusa que "a experiência que o Chile estava a viver tinha paralelismos extraordinários com a situação em Itália" e os dois sistemas políticos tinham no início da década de 1970 "semelhanças muito fortes" e "os italianos olhavam com muita atenção para Chile, porque era como se fossem partidos gémeos".
"O Chile era dos poucos países na América Latina que tinha uma tradição democrática, sem fenómenos populistas, e o panorama político era muito parecido com o de Itália, no sentido em que havia uma esquerda robusta, com um partido comunista e um partido socialista fortes, e um partido hegemónico [de centro] em 1970, o Partido Democrata-Cristão", referiu o professor de História da América Latina na Universidade de Bolonha.
A chegada ao poder no Chile, através de eleições livres e democráticas, da Unidade Popular, plataforma de esquerda liderada por Salvador Allende, "um socialista marxista, era vista sobretudo pela esquerda italiana como um reflexo do que poderia suceder em Itália se ganhasse o Partido Comunista, na época muito popular".
A solidariedade italiana manifestou-se pelas ações de jovens diplomatas que agiram numa primeira fase sem indicações de Roma - embora o governo italiano [democrata-cristão, de centro] tenha vindo a apoiar o acolhimento de exilados políticos chilenos -, é atribuída por especialistas italianos na história da América Latina não só aos laços fortes entre os partidos de ambos os países à época, mas também ao que representava no imaginário europeu o projeto político de Allende.
Maria Rosaria Stabili, professora catedrática de História da América Latina no Departamento de Ciência Política da Universidade de Roma Tre, nota que, "desde os anos 1960, as relações entre os partidos políticos italianos e chilenos, sobretudo de centro e de esquerda, eram muito fortes".
"De todos os países da América Latina, o espetro partidário do Chile era o mais semelhante ao italiano, e é muito importante ter em conta esse elemento", diz, sublinhando que outro elemento fundamental para entender a resposta de Itália ao golpe militar de 1973 é o facto de "o governo de Allende não ser um governo qualquer".
"Na ideia de um socialismo democrático que Allende sonhava realizar, reconhecia-se toda uma geração europeia e um setor dos jovens norte-americanos" e o seu Governo "não gostava nada dos Estados Unidos, mas também não gostava muito da União Soviética", com o seu sistema totalitário, pelo que "o exemplo da Unidade Popular era perigoso" também para Moscovo.
"Os [democratas-cristão] chilenos não tinham dúvidas de que o governo de Allende estava a abrir as portas ao comunismo, pelo que havia que derrotá-lo antes que fechasse as portas à democracia. Só com o passar dos anos, quando viram que o golpe tinha resultado numa ditadura duradoura, passaram para a oposição. Já a democracia-cristã italiana opôs-se desde o início", apontou Zanatta.
"Na Europa, assistia-se a tanques e aviões militares a bombardearem um governo eleito. Os democratas-cristãos italianos não podiam aceitar a ideia de uma intervenção tão violenta contra um governo de Allende que era visto da Europa como social-democrata. E se tivessem apoiado o golpe chileno, isso teria sido um desastre junto da opinião publica italiana, o que seria aproveitado pelo partido comunista", observou.
Os comunistas italianos foram os que mais se mobilizaram no acolhimento dos dissidentes chilenos que fugiam à repressão violenta do regime de Augusto Pinochet.
"Os sindicatos e as cooperativas mobilizaram-se para receber os refugiados chilenos. Para eles, era a coisa mais normal do mundo, pois havia uma afinidade e irmandade ideológica. Não casualmente, a grande maioria dos chilenos chegaram à minha própria região, Emília Romanha, uma região comunista por definição", notou Lóris Zanatta.
"Sou de Bolonha, vivo em Bolonha, que sempre foi uma cidade 'vermelha'. Eu ainda tenho amigos que chegaram nessa época, e que foram ajudados pelo Partido Comunista a trabalhar nas cooperativas", contou o historiador, que considera, no entanto, que subsiste uma ideia demasiado "romântica" do que era o governo de Allende.
"Há que não esquecer que Allende era um marxista-leninista. Muitas vezes 'pinta-se' a ideia de que era quase um social-democrata, mas nem por isso. O tipo de socialismo que tinha na cabeça não me parece que fosse tão democrático", salientou.
"Tenta dar-se a ideia de que o governo de Allende era democrata, pluralista, respeitoso dos direitos humanos, que nada tinha a ver com o totalitarismo comunista, até que chegou imperialismo americano. É uma leitura que não corresponde à realidade. Os Estados Unidos apoiaram o golpe, sem dúvida, mas as causas foram fundamentalmente internas. O governo de Allende [eleito em 1970] falhou em todas as frentes, sobretudo na económica. O respeito pela democracia era muito precário, havia movimentos paramilitares que cometiam homicídios. Ou seja, a história é muito mais complexa", sustentou.
"Mas em Itália permanecemos parados em 1973. Sempre que se fala no Chile há como que um dogma que há que repetir, porque se alguém levanta a mão e tenta dizer algo diferente é condenado ao ostracismo" e classificado de "fascista ou pinochetista".
A solidariedade italiana não se estendeu aos opositores da brutal ditadura militar na Argentina, instaurada pelo ditador Jorge Rafael Videla.
"Três anos depois, quando houve o golpe militar na Argentina, em 1976, a embaixada italiana não ajudou nada. Colocou correntes em torno da embaixada, não permitiu que ninguém encontrasse refúgio", contou Maria Rosaria Stabili.
Também neste caso, Itália teve o seu «Schindler», um funcionário diplomático, Enrico Calami, que "ajudou muita gente a fugir da Argentina fornecendo passaportes falsos, mas que atuou sozinho, sem qualquer apoio da embaixada ou do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Itália", contou.
"Em Itália, onde o Partido Comunista estava a distanciar-se em relação à União Soviética, como condenação pela invasão de Praga e em defesa de um socialismo democrático, Allende representava muito. Na Argentina, era uma história completamente diferente: em termos políticos não havia esse 'espelho' partidário, e Isabel Perón [destituída pela junta militar] não representava nenhum projeto de sociedade nova, como Allende no Chile", assinalou.
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