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"Não podemos esquecer as consequências da retórica de Hitler"

Em 'Campos de Concentração Nazis – Sobreviventes e Fugitivos' Inês Figueiras conta-nos histórias chocantes e impensáveis relatos de superação e fuga da "página mais negra da História contemporânea". Ao Notícias ao Minuto, a autora frisa ser fundamental aprendermos com os erros do passado. "Mas muitos ainda não o fizeram", lamenta.

"Não podemos esquecer as consequências da retórica de Hitler"
Notícias ao Minuto

08:32 - 06/06/21 por Melissa Lopes

Cultura Literatura

Não há tanto tempo assim, entre 1933 e 1945, milhões de pessoas foram encerradas em campos de concentração e submetidas à barbárie nazi apenas porque a sua condição física, mental, étnica, religiosa, social ou sexual não seguia os padrões definidos pela retórica de ódio de Adolf Hitler. Todos conhecemos a página mais negra da História contemporânea. Mas para nunca esquecer é preciso lembrar.

Esse é o propósito de Inês Figueiras  na obra 'Campos de Concentração Nazis – Sobreviventes e Fugitivos' (pela editora Guerra e Paz) ao recuperar, oito décadas depois, alguns dos "chocantes e impensáveis" relatos de superação e fuga. Um livro que tem como objetivo maior preservar a memória dos sobreviventes do Holocausto, "para que a história não se repita".

A autora lembra o "complexo sistema de segregação, paralelo aos conflitos da Segunda Guerra Mundial, composto por campos de concentração, campos de prisioneiros de guerra, campos de trânsito, campos de trabalhos forçados, campos de extermínio, bordéis de prostituição forçada e centros de eutanásia, de interrupção forçada de gravidez e de germanização de crianças". 

Com os espancamentos, a escravidão, a violação, a fome, a privação de sono, a tifo e de outras enfermidades, o destino das vítimas "do inferno na Terra" era quase certo: o gaseamento e os fornos crematórios. 11 milhões de pessoas morreram. Mas, "entre os horrores dos campos nazis, existiram também alguns milagres". E são alguns desses milagres - incluindo a história de uma portuguesa natural de Ponte de Lima - que preenchem as páginas desta obra.

Notícias ao MinutoCampos de Concentração Nazis – Sobreviventes e Fugitivos© Guerra e Paz  

"Estas pessoas sobreviveram por um conjunto de pequenos e grandes milagres, como o acesso a condições um pouco melhores do que a maioria, ajuda e compaixão de terceiros, força interior e determinação, instinto ou o simples acaso", afirma a autora na nota introdutória do livro que está nas bancas desde o passado dia 18 de maio. 

Em conversa com o Notícias ao Minuto, explica como chegou às histórias destes sobreviventes e alerta para a semelhança do discurso de ódio da extrema-direita atual com o discurso de Hitler. "É muito preocupante", diz. 

Como surgiu a ideia de escrever sobre este período da história? 

O livro 'Campos de Concentração Nazis: Sobreviventes e Fugitivos' nasceu de uma ideia do editor da Guerra e Paz, Manuel S. Fonseca, que acompanhou todo o processo de escrita e, com a sua experiência na arte de contar histórias, sem se desviar dos factos, emprestou mais vibração e humanidade à narrativa, com diversas sugestões.

Como é que chegou às histórias que conta no livro? 

Pesquisei histórias de sobreviventes do Holocausto em diversos arquivos digitais, como os do Museu do Holocausto dos Estados Unidos, do Yad Vashem ou da Biblioteca Britânica, e ouvi horas e horas de entrevistas disponíveis em áudio ou vídeo. Li também entrevistas e reportagens de diversos jornais, analisei relatórios de alguns sobreviventes, vi filmes e documentários. Foi assim que cheguei a estas histórias, selecionando as de pessoas que estiveram presas em campos de concentração e que sobreviveram até ao fim da Segunda Guerra Mundial ou que conseguiram até a incrível façanha de fugir de um deles. Depois de selecionar as histórias que ia contar, cruzei diversas fontes de informação, para tentar ser o mais fiel possível aos acontecimentos.

Procurei dar alguma diversidade ao livro no que diz respeito às origens e ao tipo de experiências por que cada uma destas pessoas passou. Estas pessoas poderiam ter sido pais ou avós de qualquer um de nós e, para mim, era importante passar essa mensagem aos leitores. Por isso, embora os judeus tenham sido as principais vítimas, quis contar também outras histórias. Neste livro há, por exemplo, católicos, escuteiros, ciganos. Há também pessoas de diferentes nacionalidades, algumas das quais improváveis, como o caso dos portugueses.

Perto de mil portugueses que foram submetidos a trabalhos forçados para alimentar o esforço de guerra alemão. Pelo menos oito dezenas de portugueses estiveram presos em campos de concentração nazis. É muita gente, tendo em conta que Portugal se declarou um país neutro durante a Segunda Guerra Mundial

E a história da portuguesa Maria Barbosa?

Cheguei às histórias dos portugueses através de algumas reportagens de jornalistas portugueses e selecionei a história de Maria Barbosa, natural de Ponte de Lima, para dar voz a esta parte esquecida da história. Alguns investigadores, historiadores e jornalistas têm feito um belíssimo trabalho de pesquisa destas histórias, mas há ainda muito por fazer. Até há poucos anos, nem sequer tínhamos noção de que havia vítimas portuguesas dos campos de concentração nazis. Uma equipa de investigadores do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, num projeto liderado pelo historiador Fernando Rosas, identificou perto de mil portugueses que foram submetidos a trabalhos forçados para alimentar o esforço de guerra alemão. Pelo menos oito dezenas de portugueses estiveram presos em campos de concentração nazis. É muita gente, tendo em conta que Portugal se declarou um país neutro durante a Segunda Guerra Mundial.

Perante todo o sofrimento que viviam nos campos de concentração, muitas pessoas acabaram por desejar a própria morte, correndo de encontro ao arame farpado eletrificado

O que é mais a impressionou no percurso destas pessoas?

O que mais me impressionou foi a incrível capacidade de sobrevivência nas condições mais terríveis, a que nenhum ser humano deveria ser submetido, muito menos vítimas absolutamente inocentes, crianças e jovens, pessoas que sofreram processos de completa desumanização apenas porque um louco determinou que os culpados dos problemas da sociedade eram os judeus, os negros, os ciganos.

Perante todo o sofrimento que viviam nos campos de concentração, muitas pessoas acabaram por desejar a própria morte, correndo de encontro ao arame farpado eletrificado. A dor, o desespero, a falta de esperança tomou conta de muitas pessoas. Mas outras conseguiram encontrar forças que elas próprias provavelmente nem imaginavam ter.

Neste livro, conto, por exemplo, a história de uma ginecologista que, quando descobriu que as grávidas eram atiradas vivas para o crematório, em Auschwitz-Birkenau, ajudou centenas de mulheres a abortar, na esperança de que, assim, pelo menos uma vida se salvasse, já que salvar mãe e filho era impossível.

Ou de um homem que passou por vários campos de concentração e, já no fim da guerra, sobreviveu até ao bombardeamento dos navios instalados na baía de Lübeck, com milhares de prisioneiros fechados lá dentro, que acabaram por morrer, aos milhares, em chamas, asfixiados ou afogados. São histórias incríveis e que, a cada parágrafo, impressionam pelo que revelam do pior e do melhor que há em cada ser humano. Estas pessoas sobreviveram para contar a história e é graças a elas que sabemos o que realmente se passou dentro dos campos de concentração, mas milhões de pessoas não tiveram a mesma sorte.

Quando é que vamos perceber que somos todos iguais, independentemente do tom de pele, da religião, do local em que nascemos? Não podemos esquecer as consequências da retórica de Hitler e não podemos deixar que a História se repita

Considera que o mundo aprendeu bem a lição do período mais negro da sua história?

É fundamental aprendermos com os erros do passado, mas muitos ainda não o fizeram. Se lermos o Mein Kampf, de Adolf Hitler, vamos encontrar semelhanças a discursos de ódio da extrema-direita atual, e isso é muito preocupante.

Vê nos populismos que agora crescem na Europa, incluindo em Portugal, um perigo?

Os discursos populistas tendem a ganhar terreno com o descontentamento geral das populações e, infelizmente, têm vindo a ganhar terreno na Europa, incluindo Portugal. Incentivar o ódio contra determinados grupos não é solução para nada. Quando é que vamos perceber que somos todos iguais, independentemente do tom de pele, da religião, do local em que nascemos? Não podemos esquecer as consequências da retórica de Hitler e não podemos deixar que a História se repita.

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