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Sócrates "tinha estratégia gigantesca" para condicionar jornalistas

António José Vilela, jornalista que aborda no seu livro ‘Apanhados’ vários casos de influência do poder económico e político na comunicação social, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

Sócrates "tinha estratégia gigantesca" para condicionar jornalistas
Notícias ao Minuto

09/10/17 por Anabela de Sousa Dantas

País António José Vilela

António José Vilela, jornalista da revista Sábado, aborda no seu livro ‘Apanhados’ vários casos de influência do poder económico e político na comunicação social. Desde o início da explosão do caso BES até à prisão do ex-primeiro-ministro José Sócrates, são relatados episódios de relações questionáveis, tentativas de manipulação e manobras de bastidores para exercer pressão sobre os meios de comunicação social.

Vilela, a acompanhar a Operação Furacão, Monte Branco e Marquês desde o início e tendo assinado vários exclusivos no âmbito das três investigações, fala de uma “relação da comunicação social com o poder” que, em Portugal, “é pouco estudada” e pouco exposta. “Muita gente evita escrever sobre ela porque são jornalistas”, sustenta.

Em outubro de 2015, vários títulos do grupo Cofina, incluindo a revista Sábado, foram proibidos de publicar material sobre o ex-primeiro-ministro José Sócrates e a Operação Marquês que estivesse em segredo de justiça, decisão que foi revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em março de 2016.

O jornalista, frequentemente visado pela defesa do ex-primeiro-ministro José Sócrates, que é arguido na Operação Marquês, defende que nem o Ministério Público nem os arguidos de uma investigação podem definir a relevância jornalística de uma informação. A publicação de uma matéria de interesse jornalístico, após a devida e cuidada confirmação, deve ser publicada "independentemente de beneficiar Sócrates ou a investigação, de beneficiar empresa A ou B", defende.

Relações entre jornalistas e suspeitos nos processos "são muito complexas e muita gente evita escrever sobre elas"

Descreve no livro episódios de instrumentalização da comunicação social, principalmente quando começou a explodir o caso BES. Descreve até casos concretos de jornalistas em comunicação com suspeitos nos processos, a manifestar o seu apoio. Qual é a sua opinião sobre estas relações?

São relações muito complexas e muita gente evita escrever sobre elas só porque são jornalistas. E, realmente, o BES tinha um poder muito forte sobre a comunicação social, que advinha do facto de ser uma das principais instituições que punha publicidade nos órgãos de informação. Eu lembro-me de uma grande briga com o Expresso, em que o BES ameaçou que tirava toda a publicidade, por exemplo, devido a um conjunto de notícias que foram publicadas na altura pelo jornal. E o BES tinha, realmente, um poder muito forte dentro das redações. Convidava todos os anos dezenas de jornalistas para irem em viagens ao Brasil, a Marrocos, com tudo pago, onde falavam com Ricardo Salgado, que aparecia de helicóptero para falar com eles. O BES cultivava essa proximidade com os órgãos de informação e depois um poder de represália: 'Olha, se não te portares bem nós tiramos-te a publicidade, nós fazemos queixa às administrações da tua empresa, nós fazemos pressão e por aí fora'.

E funcionava?

Funcionava e funciona bem. Todos os grandes escândalos económicos não são dados pelos jornais económicos, por exemplo. Exatamente como todos os grandes escândalos desportivos não são dados pelos jornais desportivos. Tal como os grandes escândalos políticos não são dados pelos jornalistas políticos, são dados por outros. Há, numa determinada fase, um conjunto de conversas de bastidores muito importantes sobre uma intervenção direta nos órgãos de informação que eu achei que era relevante mostrar. Achei que era relevante mostrar porque é que, depois de se dar um trabalho grande sobre uma busca à casa de um dos principais dirigentes de um determinado banco, mais nenhuma comunicação social replicava a notícia. Porquê?

As questões de conversas de bastidores de administradores, de jornalistas que mandam SMS de apoio a figuras que estão a ser visadas, de outros que telefonam e escrevem editoriais e depois o editorial circula e marcam um cafezinho com a pessoa. Um conjunto de coisas que é pouco estudado em Portugal, essa relação da comunicação social com o poder, estar dentro do poder, beneficiar do poder.

Os investigadores destes processos ouviram isso tudo, perceberam isso tudo, isso foi acompanhado na altura por uma estratégia gigantesca de José Sócrates e do governo de Sócrates de tentativa de condicionamento dos órgãos de informação, com estrangulamentos financeiros por parte dos bancos, com tentativa de influência direta na compra de órgãos de informação e por aí afora. E é algo que aconteceu politicamente mas também com os grandes grupos económicos. Aconteceu muito com o BES. Veja-se: havia jornalistas que recebiam avenças.

Os jogos de influências, as relações perigosas, as listas de avençados da PT ou do BES vão passar para outro lado qualquerAcha que continuam a existir essas manobras de bastidores?

Vão sempre existir e muitas vezes só conseguimos ter uma perceção exata da sua extensão quando esse poder que está instituído cai. Quando há uma derrocada daquilo tudo, é que conseguimos perceber o que é que lá está. E esta história mostra que todos estes poderes são substituíveis. Depois de um poder destes ruir, é substituído por outra coisa. Nós se calhar ainda não percebemos o que é que está a substitui-lo mas isso vai acontecer. Assim como vão acontecer novamente os jogos de influências, as relações perigosas, as questões complexas, as listas de avençados da PT ou do BES, vão passar para outro lado qualquer. E acho que esse submundo é importante que seja minimamente estudado e sobretudo exposto. 

Voltando ao caso Sócrates, o António publicou recentemente duas peças sobre o processo Operação Marquês que provocou a reação dos advogados do antigo primeiro-ministro, acusando a Sábado de ser um veículo do Ministério Público. Era uma reação esperada?

Sim, sim. A grande questão que se coloca aqui é a seguinte: a Sábado em finais de junho de 2014 publicou a primeira peça que dizia que José Sócrates era suspeito e que os investigadores estavam a pensar detê-lo. Se você for ao processo vê que os investigadores escreveram coisas inenarráveis sobre a Sábado. Que estava a destruir a investigação, que estava fazer isto, a fazer aquilo, que era inacreditável. O José Sócrates processou-me em meio milhão de euros, dizendo que aquilo era falso, enfim…

O trabalho jornalístico é um trabalho complexo mas é um trabalho que não pode ser instrumentalizado por nenhuma das partes, ou seja, os tempos de publicação do jornalista são tempos de publicação do jornalista. O cruzamento de informação é do jornalista. Por exemplo, imagine: no dia em que o Sócrates é detido eu publico então a indiciação de Sócrates. Neste dia, porque estive à espera que ele fosse detido. Eu torno-me um braço armado do Ministério Público ou da defesa ou de quem quer que seja. O trabalho da Sábado sempre foi pautado por uma coisa: nós é que decidimos o que publicamos e quando publicamos. E publicamos independentemente de beneficiar Sócrates ou a investigação, ou beneficiar a empresa A ou a empresa B. Fizemo-lo durante este processo publicando uma série de exclusivos cujas fontes de informação estão completamente disseminadas e eu sei porque fui eu que as consultei.

Ainda recentemente fizemos uma capa na Sábado com umas questões polémicas que foram colocadas durante uma inquirição a uma namorada de Sócrates. Tem a ver com uma questão que é tabu na sociedade portuguesa. Como se o possível consumo de cocaína ou a suspeita de consumo de cocaína não fosse notícia, fosse uma coisa da vida privada das pessoas. Não é. Trata-se de um sujeito que é antigo primeiro-ministro e cuja investigação está centrada naquilo que são as suas despesas pessoais. Mais ainda: que legitimidade tiveram os investigadores para colocar aquelas questões a uma testemunha?

As reações de Sócrates são as reações de Sócrates e as fugas de informação são as que aconteceram, por exemplo, no WatergateA questão de divulgar as perguntas que estão no processo numa inquirição que foi feita oficialmente, em que o procurador levou propositadamente a palavra “cocaína” e que o investigador principal usou “ou outras drogas” e que o MP diz “ainda não sabemos o que é que vai acontecer”, jornalisticamente é relevante. É fundamental que se saiba. A interpretação que Sócrates tira daquilo é “bom, até me estão a acusar de ser drogado”. A interpretação que o MP tem que é “eles estão a fazer aquilo para vitimizar Sócrates”. Foi isso que foi feito de um lado e do outro e para mim, jornalista, isso interessa-me muito pouco. A mim o que me interessa é: aquele facto é verdadeiro ou não? Foram feitas estas questões, neste dia, àquela hora, àquela senhora cuja inquirição foi toda centrada nisto? Foram. Isto está no processo? Está. É relevante para o processo? Ainda não sabemos. Mas aconteceu e ao jornalista apenas interessa isso.

As reações de Sócrates são as reações de Sócrates e as fugas de informação são as que aconteceram, por exemplo, no Watergate. O jornalismo é feito de quê? De fugas de informação. Eu, jornalista, não me levanto de manhã e penso: “e se eu visse o Presidente da República porque eu acho que ele fuma charutos roubados”. Não, as coisas não surgem assim, surgem como? Surgem de fontes de informação, de denúncias, de cruzamentos de informação, de denúncias anónimas, por e-mail e por aí fora, de fontes de informação cultivadas durante não sei quantos anos.

Alguma vez se debateu com alguma coisa que iria noticiar ou em que estava a trabalhar, mesmo sendo verdade?

Tenho sempre dúvidas, quem não tem dúvidas sobre se vai fazer uma peça de determinada maneira é inconsciente. Tem de se ter dúvidas, mas o facto de se ter dúvidas não quer dizer que não se chegue depois a uma certeza e a certeza é: se os dados estão suficientemente confirmados tem de se ponderar a publicação o mais rapidamente possível. Tem de ser feito. Imagine que a Sábado não tinha publicado nada até hoje. Que leitura fariam de determinadas coisas que depois aparecem? “Ah, não publicaram porque isto e porque aquilo”. A ponderação é essencial em todas estas questões, agora depois disso feito, tem de ser publicado. E rapidamente.

Está há cerca de 12 anos a acompanhar estes processos, que envolvem nomes muito poderosos. Alguma vez se sentiu ameaçado?

Não, acho que não. Se o exercício do jornalismo fosse feito aqui como é feito, por exemplo, na Rússia ou no México, era um tema mais complexo. Agora há outras formas de ameaça…

Sim, falava mais nesse sentido...

Há sempre umas conversas [risos]. Agora não tem sido isso que tem impedido qualquer tipo de publicação.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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