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Violência obstétrica? "As mulheres estão a denunciar e a Ordem a ignorar"

Sara do Vale, presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), é a entrevistada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

Violência obstétrica? "As mulheres estão a denunciar e a Ordem a ignorar"

Acumulam-se os relatos de mulheres portuguesas que dão conta de experiências de abuso ou de maus-tratos naquele que deveria ser um dos momentos mais felizes das suas vidas: dar à luz. Na verdade, um estudo publicado na revista 'The Lancet Regional Health Europe' revelou que, no primeiro ano de pandemia, as grávidas portuguesas foram alvo de mais práticas não recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) do que as mulheres de outros 11 países europeus.

Mas os dados não se ficam por aqui. Entre março de 2020 e março de 2021, Portugal registou uma prevalência de partos instrumentados três vezes superior à média europeia, sendo que a 63% das mulheres não foi pedido "qualquer consentimento".

Perante a degradação dos cuidados obstétricos, a mortalidade materna atingiu, em 2020, o valor mais alto em 38 anos, aliando-se, também, à elevada taxa de cesarianas.

Contudo, a Ordem dos Médicos rejeitou que o conceito de violência obstétrica se aplique à realidade portuguesa, esclarecendo ter apenas conhecimento de  “queixas esporádicas de experiências negativas”. Em conversa com o Notícias ao Minuto, Sara do Vale, presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), 'levantou o véu' a este fenómeno, realçando que "a mulher vai lembrar-se para sempre do que aconteceu consigo e com o seu corpo".

A narrativa que já existe para as vítimas da violência sexual e de violência doméstica tem de começar a aplicar-se cada vez mais à violência obstétrica

O último inquérito realizado pela APDMGP indica que cerca de 30% das mulheres foram vítimas de alguma forma de abuso na gravidez ou no parto. O que é que caracteriza a violência obstétrica?

A violência obstétrica pode ter várias formas. É uma forma de violência de género e pode, na prática, manifestar-se com o abuso ou desrespeito, que pode ser desde físico a verbal. Podem ser coisas tão subtis como não passar a informação toda ou passar informação enviesada à mulher.

À partida, estamos a falar de uma questão de poder, de uma apropriação do corpo da mulher, e da visão e desumanização da mesma como quase mera incubadora daquele bebé. E, portanto, é muito importante perceber que a violência obstétrica não acontece só quando estamos falar de violência, de gritos, ou de fisicamente se restringir uma mulher, apesar de, infelizmente, isso também ser verdade.

Podemos guiar-nos pelas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o número de intervenções que seriam ideais para um país. É um barómetro muito importante, não só em termos da mortalidade materna, como das taxas de cesariana, e das taxas de episiotomia. Só aí, já levantamos um pouco o véu de que as coisas nas maternidades não estão a correr tão bem como deveriam. A violência obstétrica é, também, sempre da perspetiva da vítima. A narrativa que já existe para as vítimas da violência sexual e de violência doméstica tem de começar a aplicar-se cada vez mais à violência obstétrica. A perceção da vítima é aquilo que vale.

Considera, então, que a violência obstétrica é um tipo de violência de género, que não está circunscrita aos especialistas em Obstetrícia?

Claro que sim. Todas as pessoas que possam contactar com a mulher ao longo dos seus cuidados podem ter esse impacto negativo, ou positivo. Há coisas muito diretas que têm que ver com o próprio profissional, como o abuso de poder. Aquilo que se está a passar nos hospitais também pode ser considerado violência obstétrica, pela falta de recursos e de condições físicas. Acaba por ser uma forma indireta de violência obstétrica, mas afeta a mulher neste período do parto, gravidez e puerpério.

Uma mulher vai lembrar-se para sempre de como foram as suas experiências de parto. É incrível perceber que há mulheres que há 20 anos tiveram um bebé e ainda se lembram daquele pormenor, daquela enfermeira que foi bruta, de não perceber o que se tinha passado. Para os profissionais, se calhar é só mais um turno, e esquecem. Mas a mulher vai lembrar-se para sempre do que aconteceu consigo e com o seu corpo.

Trabalhámos com muitas mulheres que só a ideia de escrever e contar a história era um gatilho, e voltavam a reviver a experiência

É um pouco, então, como as vítimas de violência sexual e de violência doméstica, que podem demorar muito tempo a compreender aquilo que lhes aconteceu, sofrendo, muitas vezes, repercussões da sociedade por ter contado a sua história anos mais tarde.

Sem dúvida. Legalmente, em Portugal, há uma séria de formas para a pessoa não só se preparar, mas para fazer queixa – e isso é um dos apoios da associação. Para a pessoa fazer queixa em tribunal e levar até às últimas consequências, tem apenas seis meses. Seis meses não é nada para quem acabou de ter um bebé. A pessoa está a estabelecer a amamentação, a sarar feridas físicas e emocionais profundas e, quando finalmente consegue olhar para isso e identificar que, se calhar, não teria de ser assim, já passou esse tempo. Trabalhámos com muitas mulheres que só a ideia de escrever e contar a história era um gatilho, e voltavam a reviver a experiência.

Às vezes, a narrativa da violência obstétrica baseia-se muito em quebrar o silêncio, mas é preciso ter imenso pudor na forma como as mulheres se vão expor, [uma vez que podem ter sido] silenciadas pelos familiares e pela sociedade. Pequenas frases como ‘o que importa é um bebé saudável’, ‘o que importa é que ele está cá’, ‘choras porquê, se tens um bebé tão lindo’, acabam por retraumatizar a mulher.

Voltando um pouco atrás, que práticas e intervenções podem ser incluídas neste conceito?

Intervenções sem consentimento como, por exemplo, a episiotomia*. É um exemplo clássico do qual Portugal não tem desculpa. A OMS retirou das suas práticas de 2018 a recomendação da episiotomia, [sendo que,] antigamente, colocava a taxa de episiotomia entre 10% a 15% para um país. Portugal tem das taxas de episiotomia mais altas do mundo, entre os 70%, segundo os estudos que foram feitos, e o nosso primeiro questionário.

O segundo questionário registou uma pequena descida, mas ainda muito aquém daquilo que deveria ser o valor. A falta de consentimento informado, a separação mãe-bebé, tudo o que sejam questões que desumanizam a mulher, [e até mesmo] a falta de acompanhante, que tem vindo a crescer por causa das restrições da pandemia, retira o fator testemunha. A mulher, que se encontra sozinha na instituição hospitalar, é, muitas vezes, mais alvo de violência, de negligência, de maus-tratos, e de abusos verbais e físicos.

O chamado ‘ponto do marido’** e a própria manobra de Kristeller, de fazer pressão no topo da barriga para o bebé descer, são intervenções categorizadas como violência obstétrica e proibidas pela OMS, mas que continuam a fazer-se. O ‘ponto do marido’ é uma coisa muito antiga. Já ouvimos alguns profissionais mais antigos dizer que sim, que se lhes ensinava. Não é um mito urbano, ainda acontece – muito menos do que, por exemplo, há 10 anos, mas acontece. É esta apropriação do corpo da mulher para outrem, esta ideia errada de que o parto vaginal e o nascimento vai alargar a vagina, quando não é assim que as vaginas funcionam. Infelizmente, a saúde das mulheres sempre foi feita a elas e não com elas. O início da Obstetrícia está enraizado nesse princípio.

A evidência veio demonstrar que quanto menos intervenção, mais seguro é o parto

Em Portugal, temos um modelo de serviço que é muito propenso a ter mais intervenção, e mais violência obstétrica, porque ainda vemos o obstetra como estando no topo da pirâmide. Os países do Norte da Europa adotam o modelo de cuidados das parteiras, esta ideia de que o enfermeiro especialista em saúde materna e Obstetrícia é responsável pela grande maioria das gravidezes e partos, [particularmente] os de baixo risco. Os obstetras são muito necessários, [mas] são cirurgiões treinados para agir na patologia, enquanto os enfermeiros não. Temos alguns serviços em Portugal que operam dessa forma, mas não todos. A evidência veio demonstrar que quanto menos intervenção, mais seguro é o parto.

*Incisão no períneo, a região entre o ânus e a vagina, para facilitar a passagem do bebé
**Sutura feita depois da episiotomia com pontos a mais com objetivo de apertar a entrada vaginal

Por outro lado, a Ordem dos Médicos pronunciou-se sobre o tema, negando a existência deste fenómeno em Portugal, e dando apenas conta de “queixas esporádicas de experiências negativas”. Enquanto associação, reveem-se nestas declarações?

Não, claro que não. É lamentável. Enquanto estivermos neste pingue-pongue semântico, não vamos a lado nenhum, e suspeitamos que é isso que a Ordem dos Médicos quer. Se as nossas mulheres estão a morrer tanto como há 38 anos, a nossa taxa de cesariana nunca foi tão alta, as nossas taxas de episiotomia também, o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) está em estado de colapso, se calhar é importante olhar de frente para o problema.

As mulheres estão a expressar o seu desagrado, a contar as suas histórias com imensa coragem, e a Ordem dos Médicos está a ignorar. É inaceitável, é sintomático do problema que temos, e é muito ilustrativo daquilo que é a hierarquia que existe no nosso sistema. Num mundo ideal, a mulher está no centro da sua experiência – o título das recomendações da OMS é ‘Cuidados durante o parte para uma experiência positiva’, e coloca a mulher no centro. A atitude da Ordem dos Médicos é que isso não interessa, porque não viram, porque não nomeiam, porque não consideram.

Apesar dos muitos relatos que têm vindo a ser divulgados, e de a OMS ter revelado que Portugal está acima da média europeia no que toca a aplicação de práticas não recomendadas, o conceito de violência obstétrica é, ainda, um tanto ou quanto tabu no nosso país. Porquê?

Talvez, precisamente, porque os profissionais ainda se sentem muito melindrados pelo próprio termo. Acho que é importante perceber que não são todos os profissionais, não são todos os serviços, mas tanto para um lado, como para outro, se calhar ainda se coloca ‘tudo no mesmo saco’. Temos serviços e profissionais respeitosos em Portugal, mas que, se calhar, não têm coragem de dar a cara, [ainda que] alguns já o tenham feito. É importante admitir que temos um problema e que a forma como os profissionais são ensinados tem de se atualizar, e a associação tem diversas formações nesse sentido.

É tabu porque ninguém quer falar destas questões. Quando falamos de violência sexual ou de violência doméstica, parece muito mais óbvio. Quando falamos de violência obstétrica há muito mais pudor, porque a 'baliza' entre o que é que foi realmente necessário como intervenção para salvar aquela mãe ou aquele bebé, e o que foi negligente e desnecessário, ainda é difícil de compreender.

Erradamente, as pessoas pensam que no privado haverá menos violência obstétrica ou que serão mais bem tratadas

Tendo em conta os relatos que vos chegam, e os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) que indicam que o número de partos tem vindo a diminuir nos hospitais públicos, mas a aumentar nos privados, existem diferenças no tratamento entre instituições públicas e privadas?

Erradamente, as pessoas pensam que no privado haverá menos violência obstétrica ou que serão mais bem tratadas. Tem que ver com a continuidade de cuidados. Há obstetras bastante humanizados mas, na grande maioria, podemos afirmar que no privado a mulher estará sujeita a muito mais intervenções, por várias razões. Uma delas é esta ideia de que o obstetra ganha ao parto, e está a acompanhar uma série de mulheres ao mesmo tempo.

Quando a Obstetrícia é levada a sério, as pessoas compreendem que o bebé pode nascer à meia-noite, ou às três da manhã. No privado, há muitos partos marcados, muitas cesarianas, e muitas induções, para 'encaixar' na agenda do obstetra. É uma coação com sorriso na cara, [mas] pode ser mais difícil de identificar. No público, se calhar as pessoas são um pouco mais ‘brutas’ e diretas.

Se se dissesse, ‘Olhe, quero marcar a sua indução, porque vou de férias a 15 de agosto. O bebé está ótimo, você também, e a gravidez pode continuar. Se fizermos uma indução, tem mais hipóteses de o bebé entrar em sofrimento e acabar em cesariana. Quer?’, a mulher, provavelmente, pensaria duas vezes. Mas não é assim que as coisas são apresentadas.

Temos imensas mulheres com incontinência urinária muito antes do que deveriam, por causa de episiotomias

Que impacto é que a violência obstétrica tem não só nas grávidas, mas também nas suas famílias e nos recém-nascidos?

O impacto é enorme, não só físico, como emocional. Nos nossos questionários, essas 30% das mulheres afirmaram ter mais dificuldade em ligar-se ao bebé, mais dificuldade na amamentação, mais dificuldade na sua relação com o parceiro. A sua vontade de ter mais filhos, a relação com elas próprias, a sua vida sexual futura ou o retorno à vida sexual [também se alteraram]. Há coisas extremas, como problemas decorrentes de uma episiotomia, entre eles problemas urinários, problemas sexuais, prolapsos uterinos e vaginais. Estamos a falar da saúde da mulher a longo prazo.

Temos imensas mulheres com incontinência urinária muito antes do que deveriam, por causa de episiotomias. Uma cesariana significa, à partida, que nas gravidezes seguintes há mais hipótese de uma placenta acreta, uma rutura uterina e, na altura de se fazer a cesariana, nem se pensa. Estas coisas ficam, muitas vezes, escondidas ou dormentes, enquanto a mulher tem de funcionar, criar aquele bebé, e voltar à sua rotina, mas voltam à superfície quando engravida outra vez. Quando estamos a falar do bebé, um bebé vivo não é um bebé saudável. Temos de subir a fasquia.

A pandemia agravou o recurso a estas práticas?

Sem dúvida. Recuámos anos com a pandemia, e ainda não recuperámos o tempo perdido. Desde logo a separação mãe-bebé, e mães positivas à Covid-19 que tinham de deitar fora o seu leite. Podemos não saber muito sobre o vírus, mas sabemos sobre a amamentação e os seus benefícios. Também a necessidade de se encaixar os testes à Covid-19 provocou uma ‘pandemia’ de partos induzidos e marcados.

Ainda hoje assistimos a isso, mas um pouco menos. No início, a associação [admitiu] que não sabíamos, de facto, que vírus era este. Mas, a partir o momento em que se conheceu o vírus, em que já tínhamos os testes, em que as coisas ficaram organizadas e mais controladas, o que se assistiu foi que as práticas se mantiveram. As taxas de mortalidade, cesarianas, e intervenções que estamos a ver decorrem desse momento.

Continuamos à espera que sejam divulgadas as circunstâncias dessas mortes maternas. Apontar a idade avançada em que as mulheres estão a ter os partos não é desculpa

Ia precisamente questionar quanto à relação da violência obstétrica com o aumento da mortalidade materna.

Sim, a mortalidade é daqueles barómetros mais importantes em relação à forma como a mulher é tratada. Continuamos à espera que sejam divulgadas as circunstâncias dessas mortes maternas. Apontar a idade avançada em que as mulheres estão a ter os partos não é desculpa, e temos assistido, infelizmente, a esse argumento. Este é um fenómeno que se verifica em vários países do Norte da Europa, que não têm aumento da mortalidade materna. Coincide um pouco com o fecho de uma série de maternidades locais e a concentração dos partos em polos hospitalares nestes últimos 10 anos, e tem também que ver com o aumento gradual das intervenções a que Portugal tem assistido. É uma crónica de uma tragédia anunciada e, se não pararmos, este barco ainda vai ficar pior.

Existem propostas muito interessantes da Associação Portuguesa de Enfermeiros Obstetras (APEO) e da Ordem dos Enfermeiros, no sentido dos centros de parto normal, e das casas de parto. Portanto, temos oportunidade de mudarmos o curso, e isso seria uma resposta baseada em evidência, com provas dadas noutros países.

Quais os mecanismos disponíveis para grávidas e famílias afetadas pela violência obstétrica?

É muito importante, por exemplo, fazer um plano de parto, e informar-se sobre os vários hospitais disponíveis, sendo que, claro, não é possível para toda a gente. Fazer aulas de preparação para o parto, entrevistar os hospitais e debater o plano de parto [também é importante, porque] mais vale ter uma desilusão antes do parto, do que no dia. A possibilidade de se contratar uma doula, um acompanhamento personalizado que pode apoiar nestas escolhas e, por outro lado, conhecer os seus direitos, [são também opções].

Em Portugal, a legislação é bastante robusta. A Lei n.º 110/2019 veio acrescentar à lei de 2015, [sendo] a única debaixo da qual estão todos os direitos reprodutivos das mulheres. Está lá tudo: plano de parto, consentimento informado, escolha do local de nascimento. E pode empoderar as mulheres, [a partir] de uma posição de igualdade com os profissionais.

Será que a criminalização poderá ser o caminho?

A acontecer, tem de ser muito bem feita. As propostas anteriores não foram, de todo, bem feitas, nem pensadas. [A medida] tem de ser baseada na ideia de que a violência obstétrica tem de ser um crime público, que garanta que as mulheres podem ser ressarcidas por aquilo que está a acontecer, com uma investigação séria e, infelizmente, isso ainda não aconteceu. Era importante que houvesse propostas de quem compreende aquilo que se está a passar no terreno, e de onde é que a Lei 110/2019 pode ir mais longe. A associação apoia e apoiará qualquer tipo de movimento nesse sentido, porque é muito triste aquilo que se está a passar com as nossas mulheres.

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