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Mulheres pelo Ambiente: O "sonho" que as Guardiãs do Mar tornaram real

Foi na televisão que o viu pela primeira vez e com ele começou a sonhar. Cresceu, formou-se, viajou, mas porque, como um dia escreveu o poeta António Gedeão, “o sonho comanda a vida”, Raquel Gaspar arriscou e concretizou-o. A ajuda encontrou-a junto de outras mulheres. Hoje são Guardiãs de um “berçário da biodiversidade”, o estuário do Sado. E tinham de ser elas a fazê-lo, não só porque partilham com as espécies marinhas o mesmo habitat, mas porque são mulheres, uma “força da natureza que cria”.

Notícias ao Minuto

09:00 - 06/12/18 por Ana Lemos

País Projeto

Depois de termos partido do Porto e de fazermos um desvio por Aveiro, rumámos a África. Tivemos na Guiné-Bissau, em Moçambique, e recentemente no Príncipe. Esta semana regressamos a Portugal. A paragem é no estuário do Sado. Vamos conhecer a bióloga Raquel Gaspar e as Guardiãs do Mar, que em 2017 conquistaram o prémio ‘Terre de Femmes’, atribuído todos os anos pela Fundação Yves Rocher, para premiar e distinguir mulheres com projetos de cariz ecológico e sustentável.

Não nasceu à beira-mar. As suas raízes estão numa aldeia perto de Leiria mas, aos domingos, viajava pelo mar na companhia de Jacques-Yves Cousteau. Não perdia um episódio e ganhou desde então uma paixão que dura até hoje. A primeira vez que o viu não ficou gravada na memória, mas ficou o sabor, quando levada pela curiosidade de criança chupou um mexilhão na praia da Vieira. Esse sabor, o sabor do mar, ficou para sempre.

Formou-se em Biologia Marinha, na Universidade de Lisboa, e durante o doutoramento dividiu-se entre os Açores e o estuário do Sado. E foi, precisamente, ao conhecer a história da população de golfinhos do estuário, e de concluir que esta estava a desaparecer, que percebeu que tinha de agir. Para as crias sobreviverem o seu “habitat berçário tinha de ser protegido”.

Mas como funcionária do estuário do Sado não estava ao seu alcance fazê-lo. Foi então que Raquel Gaspar decidiu criar a Ocean Alive e, “por pura intuição”, começou por procurar ajuda junto de outras pessoas que como ela “amavam o mar”: as mulheres dos pescadores. Com elas conseguiu encontrar alternativas que não prejudicassem a “comunidade piscatória” e que, em simultâneo, protegessem e valorizassem as pradarias marinhas do estuário do Sado. Assim ‘nasceu’ o projeto Guardiãs do Mar. Pelo caminho, além dos vários prémios conquistados, já retiraram 47 toneladas de lixo das pradarias marinhas, mais de 50 mil embalagens de sal, e geraram 15 mil euros em rendimentos alternativos diretos paras as Guardiãs do Mar, que hoje mais do que mulheres de pescadores são “guias marinhas, agentes de sensibilização e monitoras das pradarias”.

Raquel Gaspar tornou-as “líderes na transformação de comportamentos” pela proteção de um bem comum. Quer seja através de um “compromisso voluntário”, quer pela nova profissão que têm, estas mulheres ajudam todos os dias a proteger “um ninho de alimentação e procriação da vida marinha”.

Mas porque não basta o sonho para comandar a vida, em conversa, por telefone, com o Notícias ao Minuto, a bióloga confessa que há uma necessidade que se impõe no futuro próximo: “arranjar parceiros que permitam consolidar a rede de Guardiãs”. Até porque, o desafio que Raquel Gaspar orgulhosamente abraçou e iniciou é, na verdade, “uma atividade interminável enquanto o nosso estilo de vida se mantiver”.

Tem uma grande paixão pelo mar. Lembra-se da primeira vez que o viu?

Lembro-me do sabor do mar a chupar um mexilhão vivo na praia da Vieira. Tenho poucas memórias de criança, mas esta não sai da cabeça. Lembro-me da primeira vez que senti o saber do mar na minha boca.

E foi nesse momento que nasceu a paixão?

Já tentei explicar isso a muitas pessoas. As minhas raízes são de uma aldeia, perto de Leiria. Venho do campo, não do mar. [Mas] começou com os programas do Jacques-Yves Cousteau, que davam ao domingo. Quando via aquilo passei a sonhar com o mar. Não sei porquê, há coisas que estão dentro de nós. Aquele programa mostrou-me o quanto gostava do mar sem saber. Desde que vi aquele programa, soube que queria ser bióloga marinha. E pela primeira vez que consegui ir a França, tive que ir ao aquário do Cousteau, tinha seis anos. E quando já estava na faculdade, sonhei em poder estudar baleias e golfinhos e consegui fazê-lo a bordo de um veleiro que se chamava ‘Song of de Wale’, de uma ONG que estava a trabalhar nos Açores. Desenvolvi este sonho, estudar baleias e golfinhos e comecei a fazê-lo da melhor forma. Vivia a bordo de um veleiro, com investigadores estrangeiros. No primeiro ano fui como voluntária, no segundo já como tripulação paga, e no terceiro já com um projeto para desenvolver que deu início à observação comercial de cetáceos. Em simultâneo, já estava a trabalhar com os golfinhos do Sado. Acabei [por motivos pessoais] por trocar os Açores pelo estuário do Sado e por desenvolver a minha vida aqui.

E o que encontrou no estuário do Sado que a preocupou?

Quando regressei dos Açores, conclui o meu doutoramento sobre a população de golfinhos do estuário, e o que me preocupava era tentar perceber a história desta população, que futuro a esperava e de que forma é que podíamos ajudar. Trabalhei com dados demográficos, estudei na altura 20 anos da população, sabia quantas crias tinham nascido, quantos animais tinham morrido, e modelei, fiz vários cenários. E a conclusão do meu doutoramento sobre esta população – tão pequena e que na altura estava com problemas graves – foi que tudo o que eram crias, se conseguissem chegar a juvenis, acabavam por desaparecer. A população estava a ficar envelhecida e assim não ia a lado nenhum. O que tentei perceber foi o que tinha gerado esta situação, ou seja, na verdade o que descobri foi a perda da camada jovem e tentar perceber como é que o Governo, as políticas de conservação, podiam ajudar a que esta população estabilizasse e pudesse encontrar soluções para crescer. A grande resposta foi que se eu conseguisse ajudar a que essa população tivesse melhores condições de vida, nomeadamente boa disponibilidade ambiental, diminuir o stress, a poluição, era a resposta que fazia com que a população pudesse aumentar. Na prática, o que vi foi que o habitat do qual a alimentação desta população depende precisava de ser protegido porque é um habitat berçário/ninho de biodiversidade. [Entretanto] tinha tido uma filha e fui viver para a Austrália (seis meses), depois fui viver para o México (outros seis meses), e mudei a minha profissão. Passei a ser, também um pouco devido à maternidade, educadora. Candidatei-me a uma bolsa de pós-doutoramento na área da comunicação de ciência e durante seis anos trabalhei nessa área com professores, escolas, universidades, e desenvolvi livros, cursos, materiais pedagógicos – escrevi, por exemplo, histórias para crianças.

Conheci mulheres que também amavam o mar, viviam dele, mulheres pescadoras que trabalham com os seus maridos nos barcos. Era com elas que devia falar porque sabia que quer os golfinhos, quer elas, dependiam exatamente do mesmo habitat

Quando decidiu que era tempo de pôr as ‘mãos à obra’?

Percebi que como funcionária pública [do estuário] não estava ao meu alcance e como já tinha os meus filhos crescidos, era o momento de fazer este percurso, em que acreditava, e no qual estava com toda a força. Precisava de criar um movimento para chamar as pessoas para transformar, para mudar comportamentos, criar políticas, chamar a atenção. Sozinha e dentro da reserva, não estava ao meu alcance. E foi por pura intuição que achei que devia começar por procurar, em primeiro lugar, ajuda das mulheres do mar. Acho que tanto no México, como na Austrália, senti muito o que é o empoderamento da mulher. Em Portugal, a criatividade da mulher não é alentada, alimentada e eu vivi muito isso. Ao trabalhar no Sado, conheci mulheres que também amavam o mar, viviam dele, mulheres pescadoras que trabalham com os seus maridos nos barcos. E achei que era com elas que devia falar porque sabia que quer os golfinhos, quer elas, dependiam exatamente do mesmo habitat: as pradarias marinhas. Então desenvolvi esta visão: criar um habitat liderado por mulheres do mar. Falei com elas para saber o que acham disto e saber o que podíamos fazer. Sabia que as pradarias tinham ameaças muito maiores do que a comunidade piscatória podia causar. Eu trabalhei no estatuário, sabia que a poluição dos herbicidas dos arrozais, a poluição química das indústrias, do esgoto urbano, tudo isso eram fortes ameaças, mas não estavam ao meu alcance. A organização que eu podia criar não teria capacidade para liderar este movimento de mudança logo assim de raiz, mas o objetivo era chegar lá. E senti que tinha que procurar pessoas que amavam o mar como eu para [assim] criar um projeto coeso, mas que desse liderança às mulheres. Foi aí que criei a Ocean Alive, uma cooperativa de educação marinha.

Criámos três eixos e em cada um deles encaixava uma profissão para as pescadoras. O objetivo era eliminar os problemas que a atividade piscatória causa às pradarias

As pescadoras perceberam logo a mensagem e a importância daquilo que a Raquel pretendia? Não recearam que fosse prejudicial para o meio de subsistência do qual dependiam?

Percebi que tinham a sensibilidade necessária e foi, aliás, com elas que conseguimos identificar quais eram os problemas que a própria comunidade piscatória estava a causar às pradarias. E foi refletindo com elas que chegamos a alternativas que valorizassem as pescadoras e que trouxessem também um benefício. Conseguimos perceber que se o projeto criasse profissões alternativas ou complementares à pesca ou ao desemprego, ao criar rendimentos permitíamos dar-lhes uma voz na proteção de algo de que elas dependiam. Percebemos que podíamos criar uma organização com uma parte educativa, uma parte de sensibilização, e uma parte de monitorização e avaliação de impacto. Criámos estes três eixos e em cada um deles encaixava uma profissão para as pescadoras. [No caso das] Guardiãs do Mar o objetivo era eliminar os problemas que a atividade piscatória causa às pradarias: - o lixo da mariscagem, [nomeadamente] do lingueirão, um bivalve muito procurado no estuário do Sado e que é capturado com sal fino de embalagens - e ao longo de décadas havia o hábito de ao usar o sal deixar-se a embalagem no mar ou enterrá-la na areia. Criámos então a campanha ‘Mariscar sem Lixo’, para resolver o primeiro problema que identificámos que a comunidade piscatória criava. Mas, atenção, não estamos a dizer que o plástico contamina as ervas, mas sendo um habitat berçário, onde há posturas de choco, de búzios, de lesmas do mar, de raias, está a contaminar todo o habitat berçário que é ninho de alimentação e da procriação, da vida marinha, da biodiversidade marinha. O objetivo era eliminar este hábito. Então criámos uma nova profissão: agentes de sensibilização. E já tínhamos as guias marinhas, mulheres que falam sobre a sua sabedoria sobre as pradarias marinhas. Todas as atividades que temos no programa educativo são dirigidas a escolas e ao público em geral, são apresentadas por uma bióloga marinha e uma pescadora ou mariscadora - por um lado o conhecimento científico e por outro lado a sabedoria e a experiência de vida. [Além de que estamos] a dar oportunidade a uma mulher da atividade piscatória, a valorizar a sua sabedoria, a dar-lhe um rendimento complementar, e está a tornar-se um exemplo na sua comunidade – ela tem algo diferente e inspira os seus pares, sobretudo as outras mulheres.

Hoje tenho uma voz na proteção do oceano

A campanha ‘Mariscar sem Lixo’ faz parte do projeto Guardiãs do Mar?

Sim, as Guardiãs têm como objetivo eliminar os três principais problemas que a comunidade piscatória causa às pradarias e o primeiro problema é o lixo da mariscagem, e foi por isso que criámos a campanha ‘Mariscar sem Lixo’. O segundo problema é o das ancoras e das amarrações dos barcos, assim como a pesca destrutiva, que destroem o habitat. Portanto para sensibilizar para cada um dos problemas, temos a intenção de criar uma campanha. A ‘Mariscar sem Lixo’ foi a primeira.

Quando em 2017 são premiadas com o ‘Terre de Femmes’, deu mais força ao seu sonho, ao seu projeto?

Em 2017, havia seis Guardiãs do Mar, hoje são 15. O maior impacto que o prémio teve no projeto foi de facto a divulgação. A nível pessoal, sinto que hoje tenho uma voz na proteção do oceano. Para mim, o maior impacto foi o reconhecimento junto dos meus pares, da comunidade de biólogos, deu-me uma voz para que as pessoas olhassem para este projeto como um trabalho que envolve a comunidade na proteção do meio marinho do qual ela depende. Desde o dia em que conheci o prémio, quis ganhá-lo. Trouxe reconhecimento e visibilidade à Ocean Alive, [assim como] uma capacidade de atrair outros parceiros e patrocinadores, dos quais destaco a Fundação Oceano Azul e o Oceanário de Lisboa, que têm sido essenciais na campanha ‘Mariscar sem Lixo’, nomeadamente no facto de hoje termos seis agentes de sensibilização que são pagas pelo seu trabalho e que de outra forma nunca poderíamos dar-lhes esse financiamento. Além disso, o prémio deu brilho ao papel da mulher. É um prémio de mulheres para mulheres.

O nosso maior desafio é conseguir parceiros que apostem em nós (…) para termos um exemplo sólido de um modelo em que há uma comunidade costeira, liderada por mulheres, na proteção do oceano

O que gostaria que o futuro reservasse às Guardiãs do Mar?

É com muito orgulho que em 2019 vamos criar uma nova profissão: as monitoras das pradarias, vamos conseguir que as pescadoras colaborem com cientistas no mapeamento das pradarias e ganhamos um financiamento muito importante da União Europeia para dar voz às mulheres nas alterações climáticas, porque estas pradarias têm uma função premium no armazenamento do carbono – são o 3.º habitat do planeta com mais capacidade para armazenar carbono – portanto não vamos só falar de biodiversidade marinha, mas também do valor das pradarias como serviço ecológico de que beneficiamos todos, enquanto habitat chave na conservação do Oceano. Mas temos um grande desafio pela frente. O projeto cresceu, mas a nossa capacidade como estrutura não é suficiente para manter a capacitação. Temos consciência da fragilidade de uma organização pequena, perante o crescimento das Guardiãs do Mar. Hoje o nosso maior desafio é conseguir parceiros que apostem em nós para que nos permitam consolidar a rede das Guardiãs, para termos um exemplo sólido de um modelo em que há uma comunidade costeira, liderada por mulheres, na proteção do oceano. As Guardiãs precisam de alento e nós como organização não temos capacidade, estamos aqui numa grande necessidade. Temos de encontrar parceiros que invistam em nós para financiar a consolidação da rede de Guardiãs. Manter esta rede é o maior desafio, chegámos ao terceiro eixo, mas é sempre uma responsabilidade acrescida. Não podemos só deixar estas mulheres no ativo, isso requer tempo, é algo que se alimenta com a persistência. É disso exemplo a ‘Mariscar sem Lixo’, que está [no terreno] todos os meses e esse trabalho não é lucrativo – uma organização para se quer manter tem que gerar receitas e capacitar pessoas por si só não gera receitas. Se queremos ter mulheres líderes, temos que capacitá-las, dar-lhes alimento, formação.

E três anos depois da criação da Ocean Alive e da sua ação no terreno, já se nota alguma redução do lixo?

Todos os dias o mar traz lixo, não há redução na quantidade de lixo. Menos embalagens de sal, acredito, sei a quantidade de pessoas que já mudámos, temos dados concretos, mas redução de lixo, sinceramente, não. E porquê? O lixo no estuário do Sado vem de todo o lado, sempre que há enxurradas, os rios trazem lixo, vem da cidade, da pesca, das praias, do vento, e todos os dias o lixo chega. É uma atividade interminável enquanto o nosso estilo de vida se mantiver. O que posso dizer é que cada ano tiramos mais lixo e cada ano temos mais voluntários e capacidade para apanhar o lixo.

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