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Mulheres pelo Ambiente: Estrela 'ofereceu' joias ecológicas ao Príncipe

Em plena crise por cá e com o emprego a escassear, Estrela Matilde recebeu uma proposta desafiante: ir para a ilha do Príncipe. Com espírito de aventura, a bióloga deixou o Alentejo e rumou a África. E é aí que há seis anos continua a fazer a diferença, provando que é possível valorizar os recursos desta “reserva mundial da bioesfera”, com a ajuda do turismo e contribuindo para o bem-estar dos locais. Como? Criando joias de vidro reciclado, que mudaram a vida de um grupo de mulheres.

Notícias ao Minuto

09:00 - 29/11/18 por Ana Lemos

País Projeto

Esta semana continuamos pelo continente africano. Vamos até São Tomé e Príncipe, à pequena ilha do Príncipe, conhecer Estrela Matilde, a vencedora do prémio ‘Terre de Femmes’ deste ano, atribuído pela Fundação Yves Rocher, com o objetivo de premiar e distinguir mulheres com projetos de cariz ecológico e sustentável. No caso desta jovem bióloga, natural do Alentejo, a distinção chegou com a Cooperativa de Valorização de Resíduos (CVR) que ajudou a “nascer”.

A falta de emprego em Portugal levou Estrela a aceitar o desafio de um professor: rumar a São Tomé por seis meses para fazer a certificação ambiental de hotéis do grupo de investimentos turísticos HBD. Apesar de não ser a sua área de formação, decidiu arriscar e por lá continua passados seis anos. E continuará. Um regresso a Portugal só acontecerá “quando sentir que já não há nada que possa dar”.

Mas que diferença fez a chegada de Estrela Matilde à pequena ilha, a segunda maior do arquipélago de São Tomé e Príncipe? Provou que é possível proteger e, em simultâneo, aproveitar os recursos naturais desta “reserva mundial da UNESCO da bioesfera”, com a ajuda do turismo, e para o bem de todos: natureza e comunidades.

À chegada ao Príncipe, a bióloga portuguesa integrou a Fundação Príncipe Trust, uma organização não-governamental (ONG) que se dedica à conservação da natureza e das espécies endémicas da ilha, mas sempre com um foco: contribuindo para “o desenvolvimento económico e social das comunidades”. Ou seja, oferecendo alternativas de valorização dos recursos aos locais – homens e mulheres – e, em simultâneo, convidando-os a proteger a ilha que habitam e “de que tanto se orgulham”.

E foi assim que um grupo de mulheres, que se dedicava a uma atividade perigosa - “partir pedra para fazer brita” -, pediu ajuda a Estrela para criar um negócio sustentável, mas também rentável. O processo foi moroso, e durante algum tempo os resultados que gostariam de alcançar não chegaram. Mas depois de adaptado o projeto, que Estrela conheceu no Gana, às condições climatéricas do Príncipe, as joias começaram a ‘brilhar’. E hoje têm a conquista do prémio ‘Terre de Femmes’ no currículo, um ordenado e um trabalho que lhes alimenta a autoestima.

Em conversa, por telefone, com o Notícias ao Minuto, a bióloga alentejana confessa que este prémio foi “a cereja no topo do bolo”, ao dar a este grupos de palaês melhores condições de vida sem prejudicar o “hotspot da diversidade” que habitam. Com o projeto da CVR praticamente autónomo, Estrela Matilde quer agora avançar para outras conquistas. Mas sair da ilha do Príncipe não está, para já, no horizonte porque ainda sente que está a “fazer a diferença”. E enquanto assim for, esta continuará a ser a sua casa.

Era uma proposta de seis meses, e seis anos depois ainda cá estou. Novos projetos e novos desafios foram surgindo e continuo por cáComo surge a oportunidade de rumar ao Príncipe?

Sou de Sines, estudei em Évora, e trabalhei quase sempre no Alentejo. Trabalhava numa ONG, num projeto de proteção do abutre preto e do lince ibérico. Antes trabalhei como freenlancer em biologia, e em várias empresas. E [quando] estava a acabar o mestrado – que aproveitei para fazer quando estava sem emprego – um dos meus professores enviou-me a proposta, porque estavam a precisar de alguém para certificar os hotéis de um grupo de investimento turístico na ilha do Príncipe. Era uma área completamente diferente da minha, sou bióloga da conservação, mas achei que era oportunidade interessante de ir para África, de conhecer o Continente (ou parte dele), a realidade africana. Era uma proposta de seis meses, e seis anos depois ainda cá estou. Novos projetos e novos desafios foram surgindo e continuo por cá.

Há, portanto, aqui uma ligação entre ambiente, turismo e as comunidades, que aprendem como tirar partido dessas duas mais valias que têm: o ambiente/biodiversidade e o turismo.

Exatamente, o Príncipe é uma reserva mundial da bioesfera, ou seja, um sítio onde existe um equilíbrio entre o homem e a natureza. Já lá vai o tempo em que proteger a natureza era abraçarmo-nos às árvores. O homem é tão importante como é qualquer outro ser vivo e é possível haver um equilíbrio. É possível utilizar os recursos que a ilha tem de uma maneira sustentável, de forma a que serviam para as gerações futuras do mesmo modo que as comunidades conseguem ter o que necessitam para se desenvolverem económica e socialmente. Mas, sobretudo, valorizar aquilo que até agora não era valorizado: os resíduos. No Príncipe temos ainda a facilidade de ser uma ilha pequena – cerca de oito mil pessoas – e conseguimos chegar às comunidades e fazer com que as coisas funcionem, ao ponto de sermos um exemplo. Somos um ‘laboratório vivo’ (como chama a UNESCO a esta uma reserva natural) em que tentamos testar estes três pilares: a economia, o ambiente e as pessoas, de maneira a mostrarmos que é possível as pessoas viverem de uma forma saudável sem terem de destruir tudo.

E o projeto da CVR surge a partir desta 'equação'?

Há cerca de dois anos, a Fundação Príncipe Trust, uma ONG da conservação que dirijo neste momento, foi abordada por um grupo de senhoras de uma das cooperativas da ilha que queria fazer um negócio que fosse bom para a bioesfera. Começámos [então] a pensar em algo que ainda não existisse na ilha, que pudesse servir de rendimento a 12 senhoras, e que fosse [também] interessante do ponto de vista da valorização dos recursos existentes. Elas tiveram, então, a ideia de fazer areia de vidro para a construção, mas nós percebemos que a areia/vidro não era suficiente para dar rendimento a 12 famílias. Foi então que nos lembramos de joias feitas de vidro reciclado – um projeto que eu conheci no Gana.

Esse grupo era formado por mulheres de pescadores?

Não, neste caso em particular é uma comunidade que está mais na zona tampão do Parque Nacional do Príncipe e que utiliza mais recursos terrestres. Elas iam apanhar búzios e partir pedra para fazer brita. É uma atividade muito perigosa que é feita por mulheres e até algumas crianças. Mas nós conseguimos tirá-las daí, e dar-lhes outros recursos. Agora a própria cooperativa já está a dar emprego. É uma perspetiva de futuro que a comunidade pode ter de vir a trabalhar ali e até a desenvolver alguma veia artística.

Mas sempre com recurso a resíduos da própria ilha?

Este projeto tem duas vertentes. A compostagem, a recolha dos resíduos orgânicos, para a qual elas foram formadas durante um ano por uma engenheira do ambiente de São Tomé, e além disso o governo regional (...) decidiu proibir a importação de fertilizantes químicos. Portanto, havia na ilha este nicho de mercado: o composto. A única coisa disponível que os agricultores tinham era o estrume que não era o suficiente para melhorar a produção agrícola, além de que é caro. E como eu tinha estado no Gana, onde conheci o projeto das joias, achei que era possível fazê-lo no Príncipe. Fizemos então um acordo com o governo regional, e cederam-nos um espaço que nós recuperámos para fazer a nossa fábrica. As garrafas de vidro são lavadas, depois partidas e moídas à mão, e elas apanham lenha para os fornos que construímos – há muito trabalho físico. [Mas] tivemos um ano pouco produtivo porque não estávamos a conseguir fazer as joias como vimos no Gana. As senhoras começaram a ficar um pouco frustradas, mas conseguimos trazer uma equipa do Gana ao Príncipe para formar toda a cooperativa e perceber o que se passava. Percebemos, por exemplo, que se no Gana eram precisos 45 minutos no forno, no Príncipe eram necessárias duas horas devido à humidade. Acabou por resultar no sucesso das joias e na conquista de mais autonomia e autoestima. Também trouxemos uma designer do Gana que ensinou as palaês a fazer colares e alguma criatividade. Para mim, o mais interessante – apesar da barreira linguística – foi elas terem conseguido mostrar e ganhar autoestima. Apesar de terem alguma dificuldade em reconhecer beleza àquilo que fazem, o prémio ‘Terre de Femmes’ veio dar uma autoestima enorme e ajudou a que percebessem que aquilo que fazem é único.

Costumamos dizer que o nosso trabalho aqui é ficarmos desempregados porque estamos a trabalhar para formar e capacitar as pessoas da ilha para que tomem a nossa posição (...) e isso é a melhor recompensa que nós podemos darEssa foi a principal conquista com a atribuição do prémio da Fundação Yves Rocher?

Mais do que o dinheiro em si, concorremos porque estávamos a precisar. A Fundação [Príncipe Trust] deixou de ter o financiamento que tinha para apoiar. O apoio que damos, neste momento, é apenas técnico e de acompanhamento – já não temos financiamento. E elas, por exemplo, quando precisavam de lenha para os fornos vinham pedir à Fundação, e nós tínhamos que ir nos nossos carros com elas apanhar lenha e vidro. Tudo isto era complicado. Então precisávamos de uma carrinha e isso foi conseguido com o prémio. Mas eu diria que muito mais do que esta autonomia de movimentos, alcançada com a carrinha, foi a autoestima que elas ganharam porque até lá achavam que o que vinha de fora é que era bonito e que o turista não ia gostar. Mas com este prémio conseguiram perceber com o feedback que houve, com as pessoas a quererem comprar, que de facto as pessoas valorizam aquilo que elas fazem à mão, desde apanhar as garrafas de vidro, a moer, a pintar, é tudo feito por elas. Então a autoestima que ganharam e o amor por aquilo que fazem foi sem dúvida o melhor que este prémio trouxe. Sinto-me muito orgulhosa por ter proporcionado isto a estas mulheres que hoje já estão muito mais autónomas. Costumamos dizer que o nosso trabalho aqui é ficarmos desempregados porque estamos a trabalhar para formar e capacitar as pessoas da ilha para que tomem a nossa posição, para que fiquem com cada vez mais responsabilidades, que assumam os projetos, e isso é a melhor recompensa que nós podemos dar.

No Príncipe, onde é que vendem as joias?

Na fábrica mesmo, na cooperativa, mas também nos vários hóteis da ilha, em São Tomé também temos um hotel e uma lojinha que já vendem, e temos uma loja online.

Elas já conseguem ter um ordenado que é o dobro do ordenado mínimo local – pode parecer muito, mas o ordenado mínimo aqui são 40 euros, portanto não é – mas já conseguem ter um rendimento muito superior àquele que conseguiriamE o dinheiro da venda dessas joias, o que já fizeram com ele?

O dinheiro é todo da cooperativa. Nos primeiros três anos, guardávamos 70% num fundo da cooperativa e os restantes 30% eram distribuídos pelos membros, entretanto passámos a fazer ao contrário, os 70% são distribuídos pelas senhoras e 30% fica no fundo. E, neste momento, já conseguem ter um ordenado que é o dobro do ordenado mínimo local – pode parecer muito, mas o ordenado mínimo aqui são 40 euros, portanto não é – mas já conseguem ter um rendimento muito superior àquele que conseguiriam.

Qual é, agora, o papel da Estrela no projeto?

Neste momento, sou uma fã. Fiz o projeto desde início, desde a sua raiz. Estive com a cooperativa desde a sua criação, parte legal, o projeto de recuperação da fábrica, acordos com o Governo, a parte burocrática, a parte financeira de gestão do orçamento. Agora, a cooperativa já está completamente autónoma de mim e da fundação. Concorri ao prémio no sentido de conseguir o financiamento que nós precisávamos para a carrinha, e acabamos por ganhar até mais do que estávamos à espera: esta autonomia toda. Outra coisa fantástica que a Fundação Yves Rocher conseguiu fazer foi levar a Bela (diretora da cooperativa) a Portugal – ela nunca tinha ido – e isso foi fantástico, ela ter tido oportunidade de sair, de ver as pessoas a darem-lhe os parabéns. E isso não tem preço. Só foi pena não termos podido levar todas (risos). Por isso, [a minha função agora] é dar apoio moral e tentando aconselhar.

Como no Príncipe não há fome, as pessoas não precisam de trabalhar e acaba por ser fácil desistir dos projetosQue outros projetos sustentáveis e de carácter social tem a Fundação Príncipe Trust?

Temos uma equipa bastante grande. Somos 47, sendo que 91% são funcionários locais. A maior parte da nossa equipa são guardas de monitorização marinha, de praia, para a proteção de tartarugas, sendo que a maior parte deles eram caçadores de tartaruga. Pegamos neste grupo de risco de antigos caçadores, formamos, capacitamos e hoje são quem protege as tartarugas. O nosso projeto de conservação de tartarugas é o mais antigo, é até de antes da fundação existir. [Temos] visitas à praia onde as tartarugas desovam e recebemos 15 euros por cada visitante. Esse valor reverte totalmente para um fundo comunitário e depois fazemos um concurso: pelas três comunidades que têm melhores práticas, que limpam a própria comunidade, que tiram os resíduos do mar, distribuímos o ‘dinheiro’ do turismo, dessas visitas à praia. A comunidade vencedora tem depois de fazer uma proposta sobre onde quer investir esse dinheiro. Tem que ser algo que valorize tantos os pescadores, como as mulheres palaês – salgam e secam o peixe – tem de ser algo que beneficie toda a comunidade – pintar uma escola, arranjar um fontanário, melhorar as artes de pesca e o material das próprias paleês. Temos agora um grupo de senhoras, estamos a começar um projeto novo, para elas valorizarem os chinelos que dão à costa na praia. Mulheres de pescadores que apanham os muitos, infelizmente, chinelos que dão à praia e valorizarem-nos para algo que seja bom para elas e para o turista. Também trabalhamos muito com as comunidades piscatórias e começámos também uma iniciativa comunitária – a que chamámos Ideias Comunitárias – em que as comunidades criaram ideias de negócio que nós apoiámos financeiramente com a implementação. Foram seis comunidades, tivemos seis ideias, uma é a do sabão com leite de cocô que está a ser feita por pescadores, temos também um grupo paleês que apoiámos com a melhoria da salga e da seca para diminuir a perda que tinham do produto, temos também um centro de artesanato com espinhas e escamas de peixe que hoje também é um centro que os turistas vão visitar, duas comunidades criaram um centro comunitário para receber turistas - e onde fazem refeições - para mostrar a comunidade. Ou seja, temos projetos de conservação terrestre e marinhos. Depois temos a parte de perceber o que se passa com a biodiversidade da ilha, com as espécies. Estamos a formar uma equipa para fazer o levantamento intensivo do parque natural e trabalhamos com as comunidades à volta do parque natural para tentar perceber a utilização que fazem dos recursos do parque, que impacto tem a produção de carvão, a recolha de búzios, para tentarmos encontrar alternativas. É esse o trabalho que fazemos envolvendo sempre muito educação ambiental, [nomeadamente] nas escolas, para que todos sejam envolvidos e desde o início.

E daqui para a frente, qual é o objetivo?

No projeto estamos a tentar encontrar investimento para formação em gestão de negócios, queremos apoio na parte da contabilidade, este tipo de coisas que eu própria também não sei. Como aqui [no Príncipe] não há fome, as pessoas não precisam de trabalhar. Portanto, acaba por ser fácil desistir dos projetos. Não há muito a ideia de que ‘preciso mesmo disto’, ‘quero mesmo crescer’, ‘fazer um negócio que funcione’. [Por isso] estamos a tentar encontrar apoio para que o negócio possa prosperar, ou seja, ensinar as pessoas a ter os seus próprios negócios. A cooperativa está a crescer, queremos ter as joias em mais sítios, fazer coisas diferentes, vamos participar agora na feira da reciclagem em São tomé, portanto uma das senhoras vai até São Tomé para mostrar também à outra ilha o trabalho que se está a fazer. E a fundação continua a crescer, a formar e a capacitar a nossa equipa, mas como ONG que somos temos de ir atrás de financiamento, tentar cada vez conseguir criar estas ideias e oportunidades nas várias comunidades da ilha e ter cada vez as pessoas mais integradas na conservação da natureza para nós conseguirmos proteger a ilha que temos e ao mesmo tempo para que as pessoas consigam ter melhores condições de vida do que têm hoje.

Quando sentir que já não há nada que eu possa dar, que as pessoas já não precisam do meu trabalho, então aí é momento de partir para outra aventura, mas o Príncipe vai fazer sempre parte de mimE o regresso a Portugal não está nos planos?

Está sempre. Mas de facto, neste momento, o país ainda não oferece as condições que gostaríamos. Vim para seis meses, estou cá há seis anos, e enquanto sentir que estou a fazer a diferença, que há alguma coisa mais que possa dar, vou continuar por cá. Quando sentir que já não há nada que eu possa dar, que as pessoas já não precisam do meu trabalho, então aí é momento de partir para outra aventura, mas o Príncipe vai fazer sempre parte de mim, da minha vida. Tenho amigos, família, tenho o meu coração aqui. Irei voltar sempre, mas o mundo é muito grande. Até agora tem sido uma aventura extraordinária. As pessoas da ilha são fantásticas, apesar das dificuldades de viver numa ilha tão pequena no meio do oceano [Atântico], são as pessoas que fazem com que valha a pena continuar a lutar porque merecem tudo de bom e sinto mesmo que vim para cá para poder dar e contribuir para que as pessoas tenham melhores condições de vida. E quando for para eu sair, quero sair sabendo que dei e que ficou melhor por minha causa. Até lá estou em casa, como dizemos aqui.

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