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"Não gosto de olhar para o futuro a pensar na política como uma carreira"

Marisa Matias é uma das entrevistas desta semana do Vozes ao Minuto.

"Não gosto de olhar para o futuro a pensar na política como uma carreira"
Notícias ao Minuto

10/03/17 por Inês André de Figueiredo

Política Marisa Matias

Marisa Matias é uma das representantes portuguesas no Parlamento Europeu, eleita pelo Bloco de Esquerda, encontrando-se a cumprir o seu segundo mandato enquanto eurodeputada. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, a bloquista, além de abordar vários temas de âmbito nacional*, fala sobre o mundo, sobre o fenómeno Trump, bem como acerca do crescimento da extrema-direita e da Comissão Europeia.

E que ambições tem na política? Nenhumas em particular, garante-nos. Nunca encarou a política enquanto carreira, nem tampouco lhe agrada olhar para o futuro a pensar nesses moldes.

Em relação ao tema Almaraz, está satisfeita com a solução encontrada?

Não. É bom que não vá ser feita a construção do depósito de resíduos nucleares mas isso não resolve o problema de fundo que é a existência de uma central nuclear fora de prazo, que sistematicamente está a dar problemas e a provocar acidentes, que está completamente contra aquilo que deve ser o modelo de desenvolvimento sustentável que está a contaminar a água do rio Tejo, que está a destruir os nossos ecossistemas, a biodiversidade e é uma ameaça permanente à saúde pública. Portanto o problema é a existência nuclear e, em particular, o facto de existirem oito centrais nucleares na União Europeia que funcionam para lá da sua esperança de vida e em risco de permanente rutura. Não podemos correr o risco de ter um acidente nuclear e devíamos estar todos muito centrados na exigência de encerramento da central de Almaraz.

Donald Trump de certa maneira é um dos rostos daquilo que infelizmente é muito mais transversal no espaço político atualNão houve uma diferenciação entre o que era verdadeiramente importante – os problemas ambientais – e os confrontos políticos entre Portugal em Espanha?

Esta picardia seria inevitável, a não ser que o Governo estivesse alinhado com a posição espanhola, porque nestas matérias a radioatividade não conhece fronteiras e Portugal será muito afetado se houver um acidente desta natureza. O que diz a legislação europeia é que todas estas questões, antes de serem decididas têm de passar por um acordo entre os diferentes governos que estão implicados e que são afetados e não aconteceu. Portanto, era inevitável que esta picardia existisse, a não ser que António Costa não estivesse disponível para defender o interesse dos portugueses e não se opusesse à construção deste depósito.

Não podemos é dar por encerrado, nem eu creio que o Governo pode dar por encerrada esta questão por não haver a construção. O problema continua lá e gostava de ver o primeiro-ministro empenhado no encerramento da central nuclear de Almaraz como esteve empenhado na não construção do armazém de resíduos nucleares e isso é muito mais vasto do que aquilo que se conseguiu até agora.

Do país para o mundo. Os Estados Unidos têm Donald Trump como presidente e o republicano não para de surpreender e de tomar decisões polémicas. O que lhe apraz dizer sobre o novo líder dos EUA?

Donald Trump de certa maneira é um dos rostos daquilo que infelizmente é muito mais transversal no espaço político atual. Não é um apenas um fenómeno norte-americano, há uma linha muito semelhante a que assistimos na Turquia, na Hungria, na Polónia, na Bulgária ou com o crescimento da extrema-direita em França, ou o ressurgimento na Alemanha, na Holanda.

Tem havido um retrocesso enorme do ponto de vista de conquistas que demoraram décadas, séculos

Trump tem mais visibilidade mas, infelizmente, este tipo de discurso, esta linha política totalmente irresponsável de naturalizar o impensável, a agressão, a desvalorização, a ofensa, a desigualdade como condição normal de existência, a concorrência, a competição, o racismo, a xenofobia, está mais espalhado no quadro político mundial do que apenas nos Estados Unidos. Obviamente Donald Trump tem uma visibilidade que muitos dos outros líderes não têm, mas é um retrocesso enorme.

Como lida uma feminista com tudo o que se está a passar no mundo? Vê isto como um passo atrás em tudo o que se tem conseguido conquistar?

Recentemente, no Parlamento Europeu, houve um deputado polaco que disse que era normal que as mulheres tivessem de receber salários mais baixos porque são mais fracas, mais baixas e menos inteligentes. Isto foi dito no Parlamento Europeu. Tem havido um retrocesso enorme do ponto de vista de conquistas que demoraram décadas, séculos.

O fenómeno Trump tem enaltecido o crescimento dos partidos de extrema-direita. Como está a Comissão Europeia a lidar com isto?

Isso é a prova de que a luta feminista não fez ainda o seu caminho todo, precisa de continuar a fazê-lo, da igualdade entre homens e mulheres e não podemos permitir que homens que odeiam mulheres atenuem esta necessidade de lutar pela igualdade e de fazer disso uma agenda quotidiana.

Tudo isto é muito vergonhoso. Os problemas de fundo da Comissão Europeia são as portas giratóriasTemos de estar preparadas e preparados, porque também há muitos homens feministas, e não permitir estes retrocessos. A legislação, na maior parte dos sítios, continua a ser muito igualitária, o problema são as práticas que não correspondem à legislação.

A extrema-direita, como falou há pouco, está a ganhar mais força. Como é que a Comissão Europeia trata deste assunto?

O 'Livro Branco' da Comissão Europeia (CE) foi apresentado há pouco tempo pelo presidente da CE, com os supostos cinco caminhos para a União Europeia, e fiquei surpreendida porque a resposta é uma espécie de mimetização de muitas das coisas. 'Eles vão investir muito em defesa? Nós vamos investir mais, duplicar', 'Vamos defender os nossos valores mas ao mesmo tempo temos de proteger as fronteiras e por isso temos de fazer uma distinção entre cidadãos'. Ou seja, o que precisávamos era de uma resposta contrária a isto tudo, não era uma tentativa de incorporação de algumas destas coisas, de replicação de outras. 

Ainda no âmbito da Comissão Europeia. A Provedora de Justiça da UE irá investigar a atuação da Comissão no quadro da contratação de Durão Barroso pela Goldman Sachs. O tema não foi bem investigado pela Comissão?

Tudo isto é muito vergonhoso, porque os problemas de fundo são as portas giratórias e este sistema permanente de rapto pelo sistema financeiro em relação à política e à democracia. A Comissão Europeia limitou-se a dizer 'o código de conduta foi cumprido, mas vamos ver se podemos fazer umas alterações ao código, retiramos o estatuto de ex-presidente e passamos a tratá-lo como lobista' e já está. Depois veio-se a descobrir que afinal até tinha havido umas conversas entre Durão Barroso e a Goldman Sachs enquanto era presidente da CE. Obviamente que a Comissão Europeia não fez o trabalho todo e sobretudo fazer o seu trabalho não é rever o código de conduta, o que é fundamental é acabar com estas portas giratórias e estes períodos de nojo têm de ser muito mais amplos. Ninguém pode servir dois senhores ao mesmo tempo, ou serve os interesses financeiros ou serve os cidadãos.

Acho muito bem que a Provedora tenha iniciado a comissão de inquérito relativamente ao comportamento da Comissão Europeia, mas não é uma alteração de código de conduta que vai mudar isto. Estas práticas são todas legais, são legais mas são imorais e, portanto, têm que se converter em práticas que sejam legais e morais, com o mínimo sentido de justiça.

Como tem sido representar um partido de Esquerda numa Comissão Europeia que tantos dizem ser conivente com a Direita?

É estar muitas vezes numa lógica de confrontação permanente, mas isso não me parece nada negativo porque os parlamentos são isso mesmo, uma pluralidade das forças que lá estão. Cada vez que me vêm com o discurso de que 'não pode ser assim e que não se pode ir contra isto, contra aquilo, nem confrontar nada, porque o direito europeu diz uma coisa e estamos a defender o contrário', explico que qualquer força política que vá para um parlamento vai para mudar, para defender coisas que não existem, porque se for para defender as leis que existem temos os tribunais e o sistema de justiça.

Estou lá mas estou sempre em Portugal ao mesmo tempoNeste mandato e meio já foi possível aprovar um conjunto de propostas legislativas com uma base de compromisso. Tive de ir até à Direita, porque no Parlamento não basta negociar à Esquerda. Já consegui provar muitas coisas, há outras em que perco mais do que ganho, mas acho que todas as diferentes posições têm de estar representadas. 

Em que propostas está neste momento a trabalhar?

Neste momento, estou com a adaptação do acordo climático de Paris, ou seja, tenho de alterar o direito comunitário existente no que diz respeito às emissões dos usos da terra e da floresta para que fique em linha com o que foi decidido no acordo das partes das Nações Unidas. E todos os dossiers que estão relacionados com a agenda digital europeia. Em matéria das delegações, continuo a seguir no papel de presidente as relações com a Síria, Jordânia, Egito e Líbano, portanto, muito voltada para as questões da guerra na Síria e dos refugiados.

Está marcado um regresso a Portugal e à política nacional quando acabar o mandato enquanto eurodeputada?

Estou lá mas estou sempre em Portugal ao mesmo tempo. Não pensei rigorosamente nem nada ainda. A minha preocupação neste momento é cumprir este mandato.

E, por cá, a coordenação do Bloco de Esquerda é uma ambição no que toca à política nacional?

Eu entrei na política de representação quando tinha 34 anos, já tinha trabalhado em muitas coisas, e nunca olhei para isto como uma carreira. E também não gosto de olhar para o futuro a pensar nisto como uma carreira. Neste momento estou nesta situação e depois logo se vê, as coisas mudam o tempo todo.

*Pode ler a primeira parte desta entrevista aqui.

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