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Vozes ao Minuto: "Sou mais feliz agora do que antes de ser diagnosticado com leucemia"

Vozes ao Minuto: Luís Costa, conhecido como DJ Magazino, abriu-nos as portas de sua casa para uma entrevista crua, genuína e sem filtros, tal e qual como se apresenta no livro que lançou esta quinta-feira, 'Ao Vivo', e onde conta a história da sua vida. 

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© Reprodução Instagram/ Magazino

Catarina Carvalho Ferreira
15/10/2021 09:30 ‧ 15/10/2021 por Catarina Carvalho Ferreira

Fama

DJ Magazino

Foi com o colorido das ruas de Lisboa, onde vive, a entrar pelas janelas, e a agitação do lado de fora a servir ao fundo de instrumental, porque 'música' não podia faltar, que pintámos esta entrevista - que esperamos tão cheia de cor como a vida de Magazino. 

Não seria difícil impressionarmo-nos com a parede gigante repleta de discos, e a imponente mesa de mistura, a decorar a sala de estar onde nos recebeu. Ali está a história do DJ Magazino, mas, tal como no livro que serve de mote a esta conversa, é a vida de Luís, o homem que há dois anos luta contra a leucemia, que nos faz olhar com maior admiração para seu percurso.

Em 'Ao Vivo', Luís Costa recorda os traumas de infância, lembra as viagens pelo mundo como DJ, os excessos da noite e como se tornou um ícone na história da música eletrónica em Portugal, mas acima de tudo dá-nos uma lição de esperança ao falar sobre a luta de quem viu a leucemia reformular-lhe os planos. A história é contada neste livro com a ajuda da jornalista Ana Ventura e, por isso, não podíamos deixá-la de parte nesta conversa. 

Como nasce a ideia de fazer este livro?

Magazino - A ideia veio através do Rui Estevão, da Antena 3, que já há alguns anos me chateava para fazer um livro com as histórias da minha vida profissional. Numa visita dele ao hospital, já quando estava doente, voltou a falar nisso e aí sim pensei: bem, vou estar aqui muito tempo internado, vai sobrar-me tempo para escrever. Logo no momento soube que não ia conseguir escrever sozinho e lembrei-me da Ana Ventura, que estava a escrever a segunda biografia dos Xutos & Pontapés, e mandei-lhe uma mensagem.

Ana Ventura - Em fevereiro de 2020 o Luís mandou-me uma mensagem a dizer que estava a pensar fazer um livro sobre a vida dele. Na altura fui muito honesta, disse-lhe que adorava fazer o livro mas tinha o compromisso do segundo volume da biografia dos Xutos, que teria de ficar fechada até ao início do verão, a partir dessa altura poderíamos começar a trabalhar.

Depois disso o Luís decidiu entreter-se, fazer tempo para esperar por mim, foi internado, entrou em coma... Quando ficámos os dois disponíveis arregaçámos as mangas e começámos a trabalhar, em novembro do ano passado.

Foi um 'sim de caras' para a Ana?

A - Foi um sim de caras, claro. Ele é que teve a simpatia de aguardar, por mim foi logo um sim. 

E porque é que decidiram chamar 'Ao Vivo' ao livro?

M - Foi sugestão de uma amiga, a Diana, que trabalha numa agência de comunicação e que é muito boa com nomes. Tem que ver com o facto de eu estar vivo, que não é fácil nas minhas condições, e com o facto de querer retratar a minha história de uma forma muito genuína, em discurso direto.

Este livro tem três capítulos principais, o Luís, o Magazino e a Luta. O Luís e o Magazino são pessoas diferentes?

M - O Luís já tem 43 anos, o Magazino tem 26. Falo na parte do Luís até ao início da minha carreira enquanto disc jockey. No capítulo do Luís conto que nasci em Setúbal, vivi em Barcelona e no Porto e depois vim para Lisboa. O Magazino é o artista que nasceu já há muitos anos e que correu o mundo, que começou a ganhar muito mérito... agora nesta fase em que estou, no processo de tentativa de cura, acabei por despir esse ego e agora sou uma mistura de Luís e Magazino.

Antes era mais genuíno, sem me aperceber, enquanto Magazino, comecei a tocar pelo mundo fora e, como é óbvio, estando num meio de egos, há egos que se começam a criar. Ponderava bem o que dizia, o que fazia, agora não. Agora sou uma mistura do Luís genuíno, que nasceu e cresceu em Setúbal, com raízes nos Açores, com o Magazine que ao longo da vida se foi tornando mediático.

Falo de tudo, da experiência que tive com drogas, e do quanto mudou a minha vida, dos namoros, dos problemas na famíliaFoi fácil distinguir estes três capítulos logo à partida?

M - Epá, não. Foi a Ana que sugeriu, ela melhor que eu sabe dizer como é que chegou a esses três capítulos. 

A -  Sem dourar a pílula, era muito fácil fazermos um livro apenas a contar os últimos dois anos da vida do Luís, mas não era isso que queríamos. O que queríamos era contar a vida do Luís até 2021 com os olhos postos em 2034. O Luís e o Magazino são duas entidades diferentes. Achei que seria interessante primeiro apresentarmos quem é a pessoa, depois apresentarmos quem é o profissional e depois então contarmos estes últimos dois anos. O grande desafio era eu conseguir ajudá-lo a mostrar quem ele é em toda a sua plenitude. Foi fácil, acho que foi fácil.

Este é um livro real e cru, onde tudo é contado sem filtros. 

M - Decidi escrever um livro sem filtros porque esta doença trouxe-me o despir da alma. Decidi falar de forma genuína sobre tudo. Falo de tudo, da experiência que tive com drogas e do quanto mudou a minha vida, dos namoros que tive e no quanto essas mulheres mudaram a minha vida, dos problemas na família que me afetaram e que só hoje, ou há relativamente pouco tempo, é que percebi o quanto me afetaram. Falo de colegas, de muitas peripécias de estrada que pouca gente sabe, falo de coisas que, se calhar, só os meus amigos mais íntimos sabem.

Este livro já tinha sido pensado muito antes, mas escrevê-lo nesta fase tornou-se mais simples?

M - Tornou-se mais fácil porque, como estive meses e meses deitado, estava cansado de ver séries, de ver televisão, da Internet. Havia tempo para escrever as minhas memórias. E até foi quase uma catarse, tinha coisas mal resolvidas e nem me tinha apercebido. Quando comecei a escrever sobre elas, especialmente sobre a minha infância, percebi que estava a conseguir ultrapassar esses recalcamentos e traumas do passado.

Notícias ao Minuto Ao Vivo foi apresentado ao público esta quinta-feira© Reprodução Instagram/ Magazino  

Mesmo para quem conhece bem o Luís, e o Magazino, este livro vai ser uma surpresa?

M - Vai, porque há coisas que tenho aí que nunca tinha revelado, nem mesmo à pessoa que esteve mais tempo comigo na estrada, o meu road manager. Contei uma história que se passou connosco e de que ele não se apercebeu, isto já há muitos anos, ele só vai perceber no dia em que ler o livro… e vai ficar meio passado. Há muitas coisas que revelo que até para os meus amigos mais íntimos vai ser uma surpresa.

Sendo da noite já sei que se começasse a faltar a trabalhos iam dizer que estava numa clínica de desintoxicação ou com SIDA. Para evitar esses rumores decidi dizer o que tinhaA totalidade das receitas deste projeto vão ser doadas a duas instituições. O plano era esse desde o início?

M - Não, não era. No período em que fomos escrevendo o livro eu fui tendo a ajuda da APCL [Associação Portuguesa Contra a Leucemia], que me ia sempre dando algum apoio  - e agora sou eu que os apoio, eles recebem muitas chamadas de pessoas que querem falar comigo pela inspiração que vou trazendo e eu ligo para essas pessoas. Eles são muito úteis, estão agora a construir uma casa junto ao IPO com oito quatros para que os familiares de doentes internados, que não são de Lisboa, tenham um local para ficarem.

Decidi ajudar a APCL e depois a HEAL ME, que é uma marca que me está a tratar a nível holístico. Está a dar-me ferramentas para me 'autocurar'. A Patrícia Domingos, responsável pela HEAL ME, tem tido uma influência incrível em mim. Se não aparecesse nenhuma terapia convencional que me pudesse salvar eu não ia resistir, não tinha muito mais meses de vida, perante isso tive de olhar e ver para onde me virar. 

A Patrícia está a construir em Alcoutim um centro onde vai receber varias terapias alternativas e quero muito ajudá-la, porque ela tem-me ajudado imenso. Independentemente dos limites todos que tenho e que esta doença me foi impondo, consigo acordar todos os dias com esperança e feliz… o mínimo que posso fazer é ajudá-la a construir um centro de apoio que vai ajudar muito mais pessoas. 

Tornar pública a doença, a luta, foi uma forma de tentar ajudar quem passava pelo mesmo?

M - Inicialmente, não. Fui diagnosticado a uma segunda-feira, tinha vindo da Áustria, e na terça-feira resolvi comunicar publicamente. Em dezembro tinha uma série de trabalhos marcados, muitos mesmo, sendo da noite já sei que se começasse a faltar a trabalhos ou iam dizer que estava 'agarrado', numa clínica de desintoxicação ou que estava doente com SIDA. Para evitar esses rumores decidi dizer o que tinha e só depois comecei a perceber que com os relatos que ia fazendo estavam a chegar a muitas pessoas e a inspirá-las.

Todos os dias tenho exemplos, não só com mensagens que recebo mas também com pessoas que vão ter comigo na rua ou no IPO para agradecer-me ou dar-me força. Não são só os doentes, mas mesmo médicos do IPO vêm ter comigo e dizem-me: 'Tu és uma inspiração, não só para quem está doente como também para nós. Manteres-te vivo é sinal que o nosso trabalho está a ser bem feito'. Isso vai-me mantendo com esperança e motivado para continuar nesta luta pela vida. 

E a música, que sempre foi a tua vida, tem um papel importante nesta luta?

M - Tenho um problema com a música. A minha vida era basicamente ouvir música, em casa, na discoteca, nos trabalhos, e a música nesta altura não foi muito influente em mim. Não foi algo a que me agarrasse. 

Quando saí do coma [na sequência de ter sido infetado pela Covid-19] queria mesmo ouvir música, mas quando a comecei a ouvir ao fim de cinco ou 10 minutos, no máximo, ficava enjoado, mal disposto. Foi um processo. Tal como tive de reaprender a andar, tive de reaprender a conseguir ouvir música mais do que 10 minutos. Foi um processo que andou junto à minha recuperação física. 

Houve um dia que me deixou de rastos, quando morreram dois dos amigos com quem tinha mais ligaçãoPara um homem que era tão ativo e tinha tantos planos, trabalhos marcados, como foi 'puxar o travão de mão' e parar de repente? 

M - Ao início foi muito difícil, demorei muito tempo a aceitar a doença. Estava revoltado como qualquer pessoa. Agora é muito interessante porque sinto que tenho um novo trabalho, o meu novo trabalho é ir aos hospitais, às clínicas onde faço os tratamentos. Se tenho um dia em que não vou ao IPO ou às clínicas já sinto um vazio. Comecei a encarar esta doença como um trabalho, tenho um trabalho e sou feliz a ir para o trabalho. Já pedi no IPO um cartão de ponto, vou lá tantas vezes, acho que passo lá mais tempo do que alguns médicos [risos]. A partir do momento em que comecei a ver isto como um trabalho, com o objetivo da cura, aí comecei a levar as coisas de uma forma muito mais leve e com maior esperança na cura.

Essa motivação cresce por saberes que no IPO encontras outras pessoas que estão na mesma situação e que de alguma são inspiradas pela tua força?

M - Vou lá e sei que motivo muita gente, sei que passo nos jardins e toda a gente quer falar comigo, tirar uma fotografia. Sei que inspiro muita gente, mas também sou muito inspirado lá. Já vi ali doentes em fases muito críticas. O meu é um cancro no sangue, mas há ali doentes mutilados, sem metade da cabeça, sem orelha, sem nariz e estão vivos e, às vezes, melhores do que eu, felizes.

Apesar de estarmos todos rebentados a fazer quimioterapia, sem cabelo, com febre, com dores em todas as partes do corpo, conseguíamos sempre rirA motivação nunca se perde?

M - Perde-se. Os momentos em que perco mais a motivação é quando morrem colegas que estiveram internados comigo. Infelizmente, todos aqueles com quem tinha melhor relação já faleceram. Houve um dia que me deixou mesmo de rastos, quando morreram dois dos amigos com quem tinha mais ligação. Morreram no mesmo dia, aí passei muito mal, foi terrível. Esse dia mandou-me muito abaixo. 

E nesses momentos onde é que se vai buscar força?

M - Sabes onde fui buscar força? Quando estávamos internados dizíamos sempre, se eu ficar por aqui segue em frente. Não olhes para trás e guarda estes bons momentos que vivemos no internamento. Vivemos ali bons momentos, a fazer tropelias, 'tráfico de comida'... Dissemos sempre uns aos outros para nos agarrarmos à força que partilhámos, e foi a isso que me agarrei... mas no momento em que eles faleceram foi terrível.

Era incrível porque nós, apesar de estarmos todos rebentados a fazer quimioterapia, sem cabelo, com febre, com dores em todas as partes do corpo, conseguíamos sempre rir. Agarro-me mesmo muito a esses momentos que vivi com eles.

Este livro também pode ser essa força, essa esperança para quem passa pelo mesmo?

M - Com o tempo fui percebendo que este livro podia ajudar através das instituições, com as receitas, mas também quem o vai ler. Pode ajudar certamente quem está com o mesmo problema de saúde, ou com um problema parecido, mas também vai ajudar pessoas a relativizarem os problemas que supostamente têm na vida.

A - Não te ajudou a ti também?

M - Então não ajudou! Isto foi uma catarse.

E o lançamento só podia ser no Lux, não é?

M - O Lux é a instituição maior da noite em Portugal, está ligado de certa forma à cultura, faz imensos artistas, e é um sítio onde já fui muitas vezes feliz, não só a tocar mas também como cliente. O Rui Vargas é quem escreve o prefácio e é DJ residente do Lux desde sempre. Lá está, só podia ser no Lux. Talvez consiga levar o meu pai ao Lux, seria épico para conhecer o sítio onde já fui muitas vezes feliz.

[Nota: O lançamento do livro decorreu esta quinta-feira, dia 14 de outubro, um dia depois da realização desta entrevista.] 

Também o teu pai vai ficar surpreendido com este livro?

M - O meu pai, por acaso, já leu o livro, dei-lhe para ler há uma semana e ficou muito surpreendido. Percebeu um trauma e o porquê de numa fase da minha vida, quando era mais jovem, estrar mais desligado dele e agradeceu-me por ter escrito sobre isso. Isso ajudou-o a entender o porquê de eu reagir daquela maneira. Não é nada de que me orgulhe, mas resolvi escrever sobre isso para exorcizar esse trauma que tinha do passado.

Os meus amigos salvam-me a vida todos os dias com pequenos pormenoresDepois de exorcizadas todas estas memórias e olhando para trás, há algum arrependimento?

M - Não me orgulho de tudo o que fiz, escrevi muitas coisas das quais não me orgulho, mas arrependimento, sinceramente, mesmo quando estava muito fora de mim, acho que não. Não me orgulho, mas também não me arrependo. Fez tudo parte.

Os três capítulos que dividem o livro estão depois subdivididos em momentos felizes e momentos tristes. Facilmente identificaste esses momentos em todas as fases da tua vida?

M - Sim. Para dar valor aos momentos felizes tive de passar por momentos muito, muito maus, por isso é que hoje em dia dou muito valor às pequenas coisas. Privilegio muito agora estar com os amigos e com a família, uma coisa que andei anos e anos sem fazer porque andava sempre a viajar e a tocar ao fim de semana. Foi preciso passar momentos tristes para agora dar mais valor ainda a momentos felizes.

Ligaram para a minha família durante o coma a dizer que eu não ia ter hipóteses de sobreviverOs amigos têm uma grande importância na tua vida, chegas mesmo a dizer que são eles a salvar-te. 

M - Os meus amigos salvam-me a vida todos os dias com pequenos pormenores. Ainda ontem tive três amigas que vieram cá cozinhar e uma delas ainda me cortou o cabelo, esses pequenos gestos de carinho e de preocupação comigo salvam-me todos os dias, dão-me motivação. E todos os dias tenho sempre alguém, algum gesto.

A Covid-19 atravessou-se no meio do teu processo de cura de uma forma péssima.

M - Foi terrível mesmo. 

A pandemia pesou muito nesta fase? 

M - Pesou muito porque, primeiro, fui apanhado no surto que houve no IPO. Tive de ser transferido, eu e muitos doentes. Infelizmente, muitos desses doentes morreram, eu sobrevivi…

A - Porque tinhas um livro para escrever!

M - Ligaram para a minha família durante o coma a dizer que eu não ia ter hipóteses de sobreviver. Sobrevivi. Estive um mês em coma e depois o processo de recuperação foi muito dramático, demorei muito tempo a colocar-me de pé, a conseguir andar, comer, voltar a falar, e depois estive muitos meses fechado num quarto sem poder receber visitas. Tinha visitas à janela e conseguia falar através de telefone com os meus amigos.

Foi duro. Apesar de ter as visitas a 10 metros de distância e falar com elas ao telefone, não é a mesma coisa. Estava fechado no quarto sem poder sequer ir ao corredor, mas no fundo essa partilha de quarto com as três pessoas que estavam comigo foi-me mantendo animado. Tive companheiros de luta incríveis, de todas as idades, vindos de todos os sítios, de Portugal e não só. Foram pessoas que ficaram marcadas.

Essas pessoas também estão no livro?

A - Sim, todas. A parte da luta, e todo o livro, tem personagens muito coloridas, quer seja a família do Luís, os amigos e companheiros do Magazino, ou os parceiros da luta. O colorido dessas personagens é o que dá mais cor à vida dele.

Então é um livro 'Ao Vivo' e a cores... 

M - É mesmo [risos]. Durante este processo percebi que preciso de cor na minha vida. Desde que a minha mãe morreu num acidente de automóvel, há 10 anos, andei de luto e o meu guarda roupa começou a ficar muito escuro. Percebi neste processo que preciso de cor na minha vida e estou a renovar o meu guarda roupa aos poucos. Preciso mesmo de cor, traz-me alegria.

Estou há 12 meses a fazer quimioterapia de seguida e há altos e baixosHá espaço para o medo neste processo?

M - Então não há. Há muito espaço para o medo. Quando a minha médica me liga é sempre para dar más notícias, nunca é para dar boas noticias. Ontem ligou-me e disse que tinha recebido o resultado das análises: 'Não passa de hoje, tens mesmo de começar a fazer quimioterapia, os teus glóbulos brancos dispararam e isto não é nada bom sinal'. E eu digo-lhe: 'Doutora, não dá para ligar um dia a dizer para ir beber um copo, são sempre más notícias?'. Consigo reagir sempre desta forma, mas quando ela me liga fico com medo, sinto o frio na barriga... já sei que vem alguma coisa de mal. O momento que tenho mais medo é quando ela me liga.

Esse sentido de humor, que também vemos muito nas publicações nas redes sociais, é uma forma de tornar mais leve este processo ou é mesmo uma característica tua?

M - É uma característica minha de há muitos anos.

E também está no livro?

M - Está. Sempre tive um sentido de humor mais sarcástico ou mordaz. Sempre fui mais atrevido, quebra gelo nas relações com pessoas. Acho que isso vem bem expresso no livro.

A -  Só pode, nesse aspeto nós somos os dois parecidos. Era impossível isso não ter passado no livro. 

Como é que estás neste momento?

M - Estou há 12 meses a fazer quimioterapia de seguida e há altos e baixos. Quando vou muito abaixo, vou muito abaixo e, às vezes, questiono-me; será que vou voltar a estar porreiro?

Ontem comecei um novo ciclo de quimioterapia e é um novo tipo de quimioterapia que nunca fiz, ainda estou a perceber quais são os efeito que vou ter. Supostamente só daqui a 20 dias é que poderei ter um efeito que me pode arrasar.

Esta é uma semana de grandes acontecimentos. Além do lançamento do livro, no dia 16 regressas às cabines. 

M - É verdade. A Bloop também esteve parada, como toda a indústria, e eles resolveram esperar por mim e por uma semana em que estivesse minimamente bem, aparentemente, e montaram uma festa num sítio que para nos é icónico - a piscina olímpica do Belenenses. Conseguirmos a piscina e os artistas que queríamos, todos meus amigos. Vai ser uma festa incrível, vou ter pessoal de toda a parte do país. Vai ser especial, vai ser emotivo. Ainda não sei bem como vou reagir perante aquela gente toda… estou muito expectante.

É um regresso há muito esperado?

M - É um regresso condicionado, não vou estar a 200%, mas vou estar a 100%. Tenho imensos pedidos para tocar mas não posso aceitar porque estou muito condicionado, mas a ideia é mesmo ver como é que me sinto quando estiver a tocar. Se me sentir relativamente bem, estou a ponderar fazer alguns trabalhos que também me ajudem a motivar. Não vou fazer três ou quatro trabalhos como fazia, nem viajar, mas pelo menos em Portugal fazer um trabalho por fim de semana. Estou a pensar nisso seriamente.

Fora das pistas, a missão vai passar por ajudar os outros?

M - Sem dúvida, percebi isso com o decorrer do processo da doença e do tratamento. Passei a ter uma visão mais naïf da vida, mas hoje em dia acredito que tudo se resolve com diálogo e ajudando-nos uns aos outros. 

Vais materializar isso em projetos futuros?

M - Sim, já tive pedidos para fazer palestras e é, talvez, uma das vertentes que vá começar a explorar, como um caso de sucesso, pelo menos até agora, de recuperação. Adoro falar e sinto-me muito bem a falar para pessoas. Vou dar entrevistas à televisão e, às vezes, sinto que os entrevistadores estão mais nervosos do que eu. Percebo que fiquem assim porque estão a falar com uma pessoa que tem uma condenação quase à morte, não é fácil a abordagem, mas eu sinto-me completamente à vontade. Gosto mesmo de partilhar a minha mensagem. 

Sentes que são os outros a lembrarem-te constantemente dessa "quase condenação à morte"?

M - Nunca me esqueço disso, mas são mais as pessoas que me lembram disso do que eu diariamente. Procuro fazer a minha vida de forma normal, fazer algumas marcações, não as faço para três ou quatro meses, mas procuro fazer a minha vida de uma forma aparentemente normal. Essa lembrança vem mais de fora para dentro, sim.

A - As pessoas têm muito cuidado, andam com paninhos quentes.

M - Muito, os meus amigos então se pudessem colocavam-me numa redoma. Eles primeiro eram contra eu sair, estar com mais amigos, mas agora já perceberam que só consigo salvar-me se viver feliz no dia a dia, e só sou feliz se tiver contacto com pessoas. Estar fechado tantos meses num quatro foi terrível para mim, quando saí só queria contacto com pessoas. Quero falar com pessoas, e agora eles perceberam que isso é que me faz feliz. E eu só vou sobreviver se estiver feliz.

E és feliz?

M - Sou feliz, sinceramente, sinto-me um gajo mais feliz agora do que me sentia há dois anos antes de ter sido diagnosticado com leucemia. Eu era um robot da sociedade, tinha o meu trabalho, que era viajar, viajar, hotéis, ressacas. Fazia aquilo que gostava mas não sentia que era feliz por fazer aquilo que gostava. Fazia aquilo que milhares de jovens em Portugal gostavam de fazer, tinha essa possibilidade e somos muito poucos a tê-la, e não dava o valor merecido. Agora sinto-me mesmo feliz, primeiro por estar vivo, já estive a espreitar a morte duas vezes. Sinto-me uma pessoa mais feliz agora do que há dois anos, apesar de ter esta doença terrível em cima de mim. 

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