As substâncias psicadélicas, tão associadas a viagens mentais e alucinações, vivenciam neste momento uma redenção aos olhos da ciência.
Depois de várias décadas a serem consideradas vilãs, estas substâncias assumem agora o papel de heroínas, com o apoio das neurociências, no tratamento de depressões crónicas, stress pós-traumático, obsessões, ansiedade e até vícios. Mas estão longe de serem milagrosas.
O uso deste tipo de drogas para lidar com a doença mental está a ser estudado um pouco por todo o mundo e Portugal não fica atrás. Muito pelo contrário. O país é um dos pioneiros na área da terapia assistida por psicadélicos.
Além dos ensaios que estão a ser realizados, como por exemplo, com psilocibina, o principal princípio ativo dos chamados cogumelos mágicos, na Fundação Champalimaud, há cerca de dois anos foi mesmo implementada, pela primeira vez num hospital público da Europa, a terapia assistida por cetamina para tratar doentes com depressão resistente a tratamento no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures.
"É uma experiência que correu muito bem e que continua", conta ao Notícias ao Minuto João Costa Ribeiro, psiquiatra e um dos impulsionadores da terapia assistida por psicadélicos em Portugal.
O sucesso da terapia foi tanto que, após um ano de experiência com este tratamento no Beatriz Ângelo, o especialista decidiu sair do projeto e abrir a Liminal Minds, "a primeira clínica de terapia assistida por psicadélicos em Portugal".
Tratamento inovador com "efeitos a longo prazo"
Mas afinal o que é a terapia assistida por psicadélicos e para que serve? "A terapia assistida por psicadélicos é um tratamento inovador em saúde mental que tem demonstrado eficácia em problemas de saúde mental como a depressão a que não responderam outros tratamentos", sublinha João Costa Ribeiro, relembrando que este é um "grande problema" que atinge a nossa sociedade, visto que, "cerca de 30% das pessoas com depressão não respondem e são resistentes aos tratamentos antidepressivos".
Além disso, este "é um tratamento inovador pelo método que utiliza. É um tratamento que funciona como uma psicoterapia breve e que conjuga medicação e psicoterapia. O fármaco, ao contrário de um medicamento que se toma todos os dias, é tomado num conjunto pequeno de sessões que têm efeitos a longo prazo, pela transformação psicológica que acontece".
Dessa forma, garante o psiquiatra, "as sessões envolvem a abertura de um estado transformador de consciência, a chamada experiência psicadélica, e a intervenção está centrada em fazer com que a pessoa possa aprender com estas experiências, que podem ter grande valor psicoterapêutico, e em traduzi-las depois em mudanças concretas na vida da pessoa".
Quatro em seis pessoas deixaram de ter stress pós-traumático após tratamento com MDMA
Até agora, a cetamina é o único composto com propriedades psicadélicas que está licenciado. Tal como explica João Costa Ribeiro ao Notícias ao Minuto, este é um fármaco de uso hospitalar, "investigado, originalmente, como anestésico" e "muito seguro". Além disso, há mais de 20 anos que é demonstrado, através de múltiplos ensaios clínicos que tem um "efeito antidepressivo".
"Pela evidência de eficácia, podemos utilizá-lo 'off-label'. Isto significa que não tem indicação formal pelas entidades reguladoras dos medicamentos para perturbações psiquiátricas, mas a evidência é muito sólida e permite o seu uso em segurança. Este é um processo normal. Muitos fármacos são utilizados 'off-label', quando a evidência avança mais rapidamente do que os processos de reapreciação pelas entidades reguladoras", esclarece João Costa Ribeiro.
Apesar de apenas a cetamina estar licenciada, outras substâncias psicadélicas têm revelado também resultados promissores em ensaios clínicos. É o caso do MDMA, também conhecido por ecstasy, e da psilocibina.
"O MDMA tem sido estudado na perturbação de stress pós-traumático (PTSD) e os últimos resultados publicados demonstraram que 2/3 das pessoas deixaram de ter critérios de diagnóstico para PTSD após o tratamento. A psilocibina tem sido maioritariamente estudada para o tratamento da depressão resistente, também com resultados promissores. Entretanto, outros psicadélicos têm sido estudados, como o LSD, a Ayahuasca e a ibogaína, e também outras indicações, tais como as dependências (álcool, heroína, cocaína, tabaco), a ansiedade, a angústia perante a ameaça de uma doença mortal, entre outras", revela o especialista.
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Relação de confiança com o terapeuta é fundamental para o sucesso
Tal como outros tratamentos na área da saúde mental, na terapia assistida por psicadélicos a relação de confiança com o terapeuta é essencial para o sucesso da mesma.
Seguindo-se o processo padrão, o primeiro contacto é feito através de uma consulta de avaliação, onde se verifica se o paciente tem critérios clínicos para o tratamento e se não existe nenhuma contraindicação para se submeter ao mesmo, como é o caso de psicoses em estado ativo, enfartes recentes, assim como estar grávida ou a amamentar.
Posteriormente, seguem-se "três fases de preparação, experiência e integração", como explica João Costa Ribeiro, que é também o diretor da clínica Liminal Minds.
"A preparação consiste em 2 sessões. Na primeira, o objetivo é conhecer a pessoa do ponto de vista psicoterapêutico e estabelecer intenções para a terapia. A segunda é uma sessão mais prática, onde se fala sobre o que a pessoa pode sentir com a experiência da cetamina e experimentamos uma série de técnicas. Esta é também um sessão de quebra-gelo. Um dos aspetos mais fundamentais na preparação para estas terapias é estabelecer uma relação de confiança com o terapeuta. A experiência psicadélica é um estado de vulnerabilidade e grande sensibilidade ao ambiente, o chamado 'setting', e o principal elemento desse ambiente é o terapeuta, a pessoa que está ali a apoiar durante a experiência, é importante ter uma boa relação, de empatia, de confiança e de autenticidade", evidencia o médico.
As fases seguintes acontecem de forma alternada entre sessões de dosagem com a experiência psicadélica e sessões de integração sem cetamina, para dar sentido a essa experiência e acompanhar o processo terapêutico como um todo.
Regra geral não basta um tratamento único de cetamina para a terapia fazer efeito. "Há pessoas que respondem desde o primeiro tratamento, mas essa não é a regra. Nas pessoas que respondem, em média isso requer 3 a 4 sessões de cetamina, e de facto o que observamos é um processo acelerado de transformação, que se dá em poucas semanas, mas que não é imediato", realça João Costa Ribeiro.
Bem-estar corporal e sensações de flutuação
Nas sessões de cetamina, que duram cerca de duas horas e pouco, a pessoa está, normalmente, num quarto individual, sempre acompanhada do terapeuta e sob vigilância médica.
Durante essa fase, segundo o responsável da Liminal Minds, o paciente "está a ouvir música, pode estar de olhos vendados e pode estar imerso na sua experiência ou ir conversando com o terapeuta".
"As experiências mais comuns são de bem-estar corporal e sensações de flutuação, mas pode abrir-se todo o leque de experiências, umas com significados aparentes e outras não, que funcionam um pouco como um sonho", descreve.
Além da experiência, a cetamina ativa também a neuroplasticidade nos dias após a administração, "um dos mecanismos do efeito antidepressivo", ou seja, nos dias que seguem a uma sessão, a pessoa está num modo "mais plástico, mais maleável ou flexível, para pensar de forma diferente e fazer mudanças na sua vida. As sessões de integração servem também para apoiar a pessoa a fazer essas mudanças".
Medos e receios
Um dos receios dos pacientes que se submetem a esta terapia é a possibilidade de ficarem dependentes da cetamina, algo que, João Costa Ribeiro desmitifica.
"Os psicadélicos clássicos (LSD, psilocibina, mescalina, Ayahuasca) são substâncias com baixo potencial de abuso e, sobretudo, com baixo potencial de causar dano quando comparadas com outras substâncias como a cocaína, a heroína, o álcool ou o tabaco. A cetamina, em particular, tem maior potencial de abuso, mas isso não tem sido observado quando ela é utilizada em contexto clínico. Estas são substâncias cujo efeito depende muitíssimo da intenção e do contexto em que são utilizadas. É muito diferente utilizar uma substância com a intenção de prazer ou de fuga, ou utilizá-la com a intenção de ultrapassar dificuldades e enfrentar aquilo de que se está a fugir", afiança.
Outro dos medos de quem procura estas terapias é de não regressar do estado psicadélico. Quanto a isto, João deixa uma mensagem clara e tranquilizadora: "Vai sempre regressar ao seu estado de consciência habitual".
Mas o principal receio de quem recorre a este tratamento é que este não funcione. "Um receio legítimo", segundo o psiquiatra, visto que, "quem procura este tipo de tratamento, em geral, já passou por vários tratamentos que não funcionaram totalmente e têm medo de se desiludir novamente" e que, de facto pode acontecer.
"A terapia com cetamina não funciona em todas as pessoas. Aquilo que tento fazer é dar uma visão realista mas esperançosa: Esta não é de todo a última possibilidade, há sempre caminho", lembra.
Tratamentos são promissores mas não milagrosos
Os compostos psicadélicos foram amplamente investigados nos anos 50 e 60, mas essa investigação foi suspensa nos anos 70 por motivos sobretudo de estigma social, quando começaram também a ser utilizadas recreativamente.
A partir daí, deu-se um período de 'guerra contra as drogas', uma política que, segundo João Costa Ribeiro, "além de ser prejudicial para a sociedade por punir as pessoas em vez de as ajudar e por perseguir certos grupos sociais que fazem mais uso de substâncias, afetou também a ciência ao proibir ou dificultar a investigação".
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Entretanto, a situação inverteu-se e, desde os anos 1990, que a investigação com psicadélicos ganhou força, algo que "tem sido acompanhado de um movimento de maior aceitação social, mas também de algum entusiasmo excessivo, promovido por uma indústria psicadélica lucrativa".
Para o também investigador do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, é por isso necessário "temperar" o discurso e passar a mensagem de que estes tratamentos não são milagrosos, têm também limitações, senão podemos voltar a "prejudicar a investigação".
"Estes são de facto tratamentos inovadores e muito promissores, mas não são uma 'bala mágica', não funcionam em todas as pessoas, há também riscos tanto clínicos (o risco de desestabilizar emocionalmente alguém), como éticos (o estado de vulnerabilidade sob o efeito de um psicadélico). A evidência está ainda numa fase intermédia, os ensaios clínicos existentes ainda só estudaram estas substâncias em poucas centenas de pessoas e há também questões de acesso ao tratamento, pois é um tratamento dispendioso porque envolve largas horas de trabalho por parte dos terapeutas em cada sessão e ao qual muitas pessoas não conseguem aceder", refere.
É por isso importante, defende ainda o psiquiatra, "informar as pessoas sobre os efeitos e riscos" da utilização destas substâncias, visto que, o atual entusiasmo pode levar algumas pessoas a procurarem estes compostos sem "um suporte adequado".
Além disso, "uma verdadeira mudança transformadora em saúde mental requer mudança social, ou seja, mudança nas causas sociais que nos levam a adoecer mentalmente" , assegura o especialista, acrescentando que "temos de olhar para a saúde mental com uma consciência social, e a terapia com psicadélicos não é nenhuma exceção".
"Não basta tratar mais ou ter tratamentos individuais mais eficazes, como a terapia com psicadélicos, não se trata sequer de uma questão de ter mais acesso. É fundamental o acesso a tratamentos eficazes, mas é tão fundamental quanto isso prevenir e cuidarmos do coletivo", atira.
Portugal "é um exemplo a nível mundial"
Desde que a terapia assistida por cetamina foi implementada no Hospital Beatriz Ângelo, outros hospitais iniciaram o processo para fazer o mesmo. O Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa abriu essa valência este ano e outros hospitais estão a tentar fazer o mesmo, como é o caso do Hospital Magalhães Lemos, do Hospital de São João e do Hospital de Faro. E isto, além das clínicas privadas que começam também a nascer pelo país.
Em 2021, foi também criada uma associação científica que promove divulgação e investigação na área da terapia assistida por psicadélicos - a SPACE Portugal. Portugal tem ainda uma plataforma de divulgação ao público sobre psicadélicos, ciência e sociedade, a Safe Journey, e uma organização de redução de riscos do uso não clínico de psicadélicos, a Kosmicare, ou seja, Portugal é, segundo João Costa Ribeiro, "um terreno fértil para caminhar numa boa direção".
"Temos uma política de drogas no paradigma de redução de riscos, antagónico ao paradigma proibicionista, e que é um exemplo a nível mundial. Isto promove a nível institucional e social uma mentalidade de abertura para com o tema e uma análise não demonizada mas sim racional sobre os riscos e os benefícios", assevera.
O que faz falta em Portugal, primariamente, segundo o especialista "é fazermos mais investigação". Até agora, as principais instituições que investigam o uso de psicadélicos são a Fundação Champalimaud e a Faculdade de Motricidade Humana, mas "poderemos crescer bastante, se houver financiamento e mais investigadores nesta área".
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