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"Se notícias de violência doméstica motivam réplicas, proíba-se a Bíblia"

Hernâni Carvalho, conhecido jornalista e comentador televisivo, lançou recentemente o livro 'Matadores'. Uma obra que relata a história de 10 assassinos que acabaram nas bocas de Portugal, devido aos horrendos crimes que praticaram. Foi este o ponto de partida para uma conversa que se debruçou sobre o crime, onde foram apontadas críticas à forma como funciona o sistema jurídico português e onde até o caso Maddie mereceu comentário.

"Se notícias de violência doméstica motivam réplicas, proíba-se a Bíblia"

Os casos de violência doméstica poderão ser mais replicados ao serem noticiados? Há um número excessivo de leis na Constituição Portuguesa? Todos podemos matar? Hernâni Carvalho respondeu a estas questões, e a muitas mais, sem filtros como é seu apanágio. 

O conhecido jornalista e comentador televisivo lançou recentemente o livro 'Matadores', que tem como um, de  muitos objetivos, fazer-nos pensar. 

Entre alguns comentários a casos como o de Madeleine McCann, Joana Cipriano, Pedro Dias, e até do Rei Ghob, Hernâni Carvalho confidenciou-nos como começou a sua carreira no jornalismo, tendo relatado até algumas histórias provenientes da sua passagem pelas Guerras da Bósnia, Afeganistão ou Paquistão. 

Já não começa cedo a sua carreira no jornalismo. Como surge a oportunidade de fazer jornalismo?

Começo a minha carreira cedo, mas na rádio. Conseguir entrar para a redação da RTP é que não foi fácil, mas eu já fazia jornalismo na rádio ao mesmo tempo que era funcionário da RTP. Fui tentando até me aceitarem lá.

O jornalismo era uma vontade de sempre?

Era, era.

Então porquê a psicologia?

Na minha geração, o jornalismo não era uma licenciatura. Por um lado, por outro a psicologia era uma tentação ou uma curiosidade que me move desde a adolescência. Eram dois caminhos paralelos, a psicologia era uma vontade de aprender e o jornalismo era uma decorrência de uma vontade, que não era propriamente uma licenciatura. Quando eu chego ao jornalismo, começam as primeiras licenciaturas, mas eu já estava noutro caminho.

Todos os momentos nos marcam. Desde a senhora que me pediu leite em Sarajevo ou nas Honduras onde o meu operador de câmara teve um impulso de oferecer um saco de arroz que custava trocos e que dava para alimentar centenas de pessoasAs reportagens de guerra foram muito marcantes na sua carreira. O que mudaram essas vivências no Hernâni profissional e no Hernâni enquanto pessoa?

No Hernâni profissional mudou porque acrescenta um grande ângulo de olhar a realidade. Na minha vida pessoal ensinou-me muito a relativizar os problemas ‘pindéricos’ que temos no dia a dia e aos quais damos grande valor comparativamente à morte por ausência de medicação ou à morte por ausência de alimentação. Transformam-se em coisas inúteis e fúteis. O Hernâni homem mudou nessa perspetiva. Ajudou-me a relativizar os problemas que vivemos no mundo ocidental cheio de comodidades, apesar de tudo.

Há alguma coisa que o tenha marcado? Aquele episódio que por exemplo pode contar nos almoços de família…

No jornalismo de guerra tudo te marca. A vivência é diferente. Mas deixa-me corrigir-te: nos almoços de família não falo nisso [risos]. Nos almoços de família, falo da família e de coisas interessantes. Não faz muito sentido obrigar a família a reviver esses momentos comigo. É mais fácil entre camaradas pensar nisto ou naquilo. 

Mas há certamente algum episódio que o tenha marcado e que não mais esquecerá.

Por exemplo, há uma foto que corre em que eu estou rodeado de afegãos com uma bola pequenina nas mãos. Essa bola pequenina era um globo terrestre. Eu e o Nuno Patrício estávamos em maus lençóis, não sabíamos o que nos ia acontecer porque eles nos acusaram de ser americanos. Então, eu tive de explicar-lhes onde ficava Portugal, o Afeganistão e os Estados Unidos da América. Acredito ainda hoje que essa explicação tenha sido uma boa safa. Por isso, todos os momentos nos marcam. Desde a senhora que me pediu leite em Sarajevo, ou nas Honduras onde o meu operador de câmara, que era o Pedro Valadouro, teve um impulso de oferecer um saco de arroz que custava trocos e que dava para alimentar centenas de pessoas. Tudo isso nos marca.

Ainda há dias, o Nuno Patrício contou no programa da Júlia [Pinheiro] que quando nós estávamos em Islamabad, no Paquistão, descobrimos que os refugiados afegãos não tinham pão e estavam escondidos na rua da padaria. O homem não lhes dava pão, apenas porque eram afegãos. O Nuno foi lá e ele teve de dar o pão… porque nós o comprámos todo (leve sorriso). Nós quando estamos em reportagem sabemos que vamos voltar ao quentinho da nossa civilização ou da nossa casa, aquela gente só tem aquela vida... não tem mais nenhuma.

E não há medo de não regressar?

Então não há! Os cemitérios estão cheios de heróis. Aprendemos a lidar com o medo. Uns arriscam mais, outros arriscam menos. Ter medo é ter consciência da realidade.

O Hernâni jornalista procura ser isento e o comentador é exatamente o contrário Quando o Hernâni decide seguir jornalismo, pensava já nesse jornalismo de guerra? Foi isso que sempre o moveu?

Não… eu sei que tinha algumas condições que podiam ajudar. Tinha sido militar, tinha sido das Unidades de Socorro da Cruz Vermelha, era filho de um militar… havia várias coisas que podiam ajudar, mas depois o terreno é o terreno. O que queria mesmo era contar histórias às pessoas e denunciar injustiças, o resto foi feito à medida que ia trilhando o meu caminho. A vida não é tudo o que é planeado.

O que distingue o Hernâni jornalista, comentador e escritor?

Primeiro, não sou escritor. Eu sou um escrevedor. Um escritor é um indivíduo com grande capacidade de utilizar a língua e com uma arte própria para a utilizar. Eu não sei se uso bem a técnica, quanto mais a arte. Para ter arte é preciso ter dom e eu não tenho esse dom. Gosto de ler escritores, mas não sou escritor e não tenho essa pretensão. Não é falsa humildade, tenho a consciência que não sou escritor [risos].

O Hernâni jornalista procura ser isento e o comentador é exatamente o contrário. O comentador dá a sua opinião. Quando estou a comentar digo objetivamente a minha opinião. Quando estou a fazer jornalismo percebe-se até pelo registo, pelo tom e pela forma como as coisas são apresentadas, que estou a dar uma notícia. Uma coisa é antítese da outra. Até posso estar a dar uma notícia com a qual não concordo, mas se estou a dar a notícia tenho de ser o mais isento possível. Se perguntares a minha opinião, depois dou. E aí percebe-se.

Como é que passou do jornalismo para o comentário televisivo?

Foi na SIC, em 2003. Nunca tinha feito comentário televisivo e o Manolo Belo com o Jorge Simões convidaram-me para ir comentar umas peças pequenas de coisas da atualidade criminal ao programa da Fátima. Fui, muito timidamente, e o Jorge Simões – que é um grande mestre – dizia-me: ‘Tu tens de dar é a tua opinião. Quero é que dês a tua opinião’. Foi a partir daí que comecei a dar a minha opinião sobre o que conhecia. E conhecia muito… todos nós que trabalhamos numa área conhecemos muito do que o Estado pode ou não fazer, do que o Estado não faz e deveria fazer. Lembro-me de que, na altura, tinha acabado de dar notícias sobre o facto de os polícias terem de pagar os arranjos dos carros quando têm acidentes em serviço. Isso chocou-me a mim, ao país, e havia pessoas que nem sequer acreditavam.[Falar em entidades com poder] Cria problemas, às vezes processos disciplinares. Cria processos-crime e cria, essencialmente, 35 anos sem nunca ter sido condenado... 

Quando se faz comentário televisivo de um assunto que, muitas vezes, é sensível e que tem um impacto muito grande na sociedade, é preciso ter cuidado com aquilo que dizemos e com a forma como dizemos para não criar alarmismo?

Sim. O bom senso é uma coisa que não se compra no supermercado, mas que existe em todas as profissões. Uma coisa é denunciar, outra coisa é criar alarmismo. Em verdade, há circunstâncias em que podes criar alarmismo ao denunciar. Mas se não denunciares, nunca mais pode ser denunciado. Isso pode ser um pretexto para não te deixarem contar uma história. É preciso ter cuidado…

Ainda não me conseguiram calar, mas há quem tenteO Hernâni sente que tem também alguma responsabilidade social pela forma como o faz e, ao fazê-lo, ter noção de que está a ser visto por bastantes pessoas?

De alguma maneira. Sei que as pessoas ao verem o nosso trabalho, confiam. Tens de ter essa preocupação permanente, mas qualquer jornalista tem uma responsabilidade social que é contar a verdade ao seu leitor. Esse é o contrato que fazes com o leitor no momento em que recebes uma carteira profissional.

O facto de falar muitas vezes em entidades que têm muito poder no nosso país, isso cria-lhe problemas?

Cria. Cria problemas, às vezes processos disciplinares. Cria processos-crime e cria, essencialmente, 35 anos sem nunca ter sido condenado... vai querendo dizer alguma coisa. A melhor maneira de calar um jornalista nos dias que correm é meter-lhe um processo, porque é ele que vai ter de pagar e não o órgão para o qual trabalha. E o jornalista cala-se, ou pensam as pessoas que o jornalista se cala porque lhe meteram um processo. Se ele, no exercício da sua função, deu aquela notícia em consciência, conhecendo a Constituição, o Código Penal e o Código Deontológico, acho que é gastarem dinheiro.

Alguma vez deixou de dizer algo por poder ter consequências?

Ainda não. Ainda não me conseguiram calar, mas há quem tente.

Notícias ao Minuto['Matadores' é o novo livro de Hernâni Carvalho. A obra conta a história de 10 casos de portugueses que mataram mais de três pessoas de uma vez]© Créditos / ©Contraponto/Mário Santos

Acaba de lançar o livro 'Matadores'. Uma obra que relata crimes conhecidos do grande público, com três ou mais mortes envolvidas. Mas o que mais pode esperar um leitor que ainda não o leu?

Escolhi 10 histórias no século XXI. Às vezes pensamos que somos um povo de brandos costumes, mas se eu escolhi 10 histórias é porque existem mais. São histórias de portugueses que mataram mais do que três pessoas, em Portugal. Histórias que comoveram o país, que tiveram grande visibilidade. São todas formas diferentes de matar, por motivos diferentes. A verdade é que todos temos capacidade para matar. E o livro não é só estas 10 histórias, é também como é que as vítimas são figuras de terceira ordem no ordenamento jurídico português, como é que as pessoas pensam que um processo termina quando há um trânsito em julgado e, em verdade, é aí que começa a tortura da vítima, como é que se organiza uma investigação criminal, como é que o Relatório Anual de Segurança Interna continua a ser um elemento de propaganda e podia ser um instrumento de governação ou um instrumento de apuramento técnico e até científico, em alguns casos. Portanto, não é só gente que matou. Este livro reflete a nossa realidade, também. E já agora, mostra como é que funciona a nossa cabeça quando queremos matar.

Tem de haver aqui um mecanismo qualquer que distinga um indivíduo que mata uma pessoa, e que é condenado por isso, de um indivíduo que mata várias pessoas e que tem a mesma pena Homicida, assassino e matador. Esta é uma das distinções que faz no livro. Quer explicar qual a diferença?

Eles distinguem-se entre si pelo motivo pelo qual matam. Nós podemos matar uma pessoa sem querer. Estás numa discussão verbal e o teu interlocutor dá-te um encontrão, bates com a cabeça e morres. Ele não te quis matar, mas não deixa de ser um homicida. Outra coisa é um assassino, um indivíduo que deliberadamente matou. O assassino mata por impulso do momento ou porque preparou a matança, ele tem consciência de que vai matar. Depois, matador é o indivíduo que mata mesmo sem conhecer a sua vítima. Ou seja, o assassino conhece a vítima, tem razões pessoais ou coletivas contra ela, o matador não. Ao matador telefonas e encomendas como quem encomenda um ramo de flores. 

Para aqueles que ficaram chocados quando eu digo que todos nascemos com a capacidade de matar, lembrem-se que fora estas três definições existem tantas outras formas de matar: em legítima defesa, ou o tropa que vai para a guerra para matar.

Em Portugal pensa-se pouco, as pessoas são mais na onda de ir à Costa de Caparica no dia das eleições Em quase todos os crimes que relatou parece deixar uma crítica ao limite máximo de pena de prisão: 25 anos. Está na altura de mudar a lei? Esta é uma das mensagens que tenta passar no seu livro?

Eu acho que é. Se me perguntarem onde quer que seja direi isso. O limite de pena por matar em Portugal vai até aos 25 anos, a verdade é que depois de matar um indivíduo, eu posso matar três ou quatro que a minha pena é a mesma. Portanto, se o legislador não se puser a pau isto é uma má mensagem. Tem de haver aqui um mecanismo qualquer que distinga um indivíduo que mata uma pessoa, e que é condenado por isso, de um indivíduo que mata várias pessoas e que tem a mesma pena. Isto é perigosíssimo.

Este livro serve não só para contar estas 10 histórias, mas também para, de alguma forma, consciencializar as pessoas daquilo que não está correto?

Eu não digo a ninguém para mudar, não sou ninguém para dizer isso. Agora, mostro-lhes a minha opinião e convido as pessoas a pensar. Se as pessoas fizerem esse exercício que vocês acabam de fazer, já valeu a pena ter escrito este livro. Em Portugal pensa-se pouco, as pessoas são mais na onda de ir à Costa de Caparica no dia das eleições.

Manuel Palito, Pedro Dias e Rei Ghob. Todos eles assassinos com histórias muito diferentes… Mas será que é possível reconhecer-lhes algumas semelhanças a nível psicológico?

Todos eles quiseram matar, mas todos eles quiseram matar por motivos diferentes. O Palito quis vingar-se da malandrice que ele considerava que lhe estavam a fazer. A malandrice que ele achava que lhe estavam a fazer era ter de cumprir pena, apenas porque aquilo [a pulseira eletrónica] apitava. No dia em que lhe dizem que teria de cumprir pena, ele decidiu que não ficaria cá ninguém para se rir.

O outro [Pedro Dias], não. O outro mata porque alguém é seu obstáculo. Nós não sabemos que conversa é que teve com os militares da GNR, mas matou-os porque eles eram um obstáculo. Depois, matou os outros porque precisava de um carro.

O terceiro [Rei Ghob] mata por outros motivos, o terceiro mata por diversão pessoal e por prazer. Diversão no sentido de tirar prazer pessoal daquilo, da manipulação e daquilo que ele incute nas pessoas. Ele a dada altura achava que conseguia para aqueles garotos ser uma espécie de ser superior. Todos mataram, mas por razões diferentes. Estas diferenças entre eles não são difíceis de encontrar.

As próprias leis são um atropelo e, às vezes, um obstáculo à penalização dos criminososAo fim ao cabo, as semelhanças eram apenas uma: o instinto assassino.

É a vontade de matar. Não é só o instinto, é a vontade expressa de matar. Nenhum dos três deixou de matar porque... não houve valor nenhum que travasse qualquer um dos três. Se falássemos com eles 10 segundos antes de eles terem cometido a primeira morte, dificilmente os demoveríamos. Eles queriam matar, objetivamente. Nenhum matou por acaso, nem por engano, nem sem querer. Até porque, se algum deles tivesse matado sem querer não teria voltado a matar. A repetição é a prova do querer.

No último capítulo faz menção ao número excessivo de leis que existem e passo a citar: “Depois de vermos como existem e como se atropelam, saber que a criminalidade aumenta significa o quê?”. Quer responder à sua própria questão?

Significa que as leias ajudam a criar impunidade, que as próprias leis são um atropelo e, às vezes, um obstáculo à penalização dos criminosos.

É preciso ter uma lata do tamanho do mundo para dizer que uma notícia de violência doméstica pode dar origem a que ela seja replicada e não proibir a BíbliaO número excessivo de leis acaba por ser também algo difícil de entender para o cidadão comum?

Claro, até para os advogados. Quando podes usar uma lei em detrimento de outra que te mete lá dentro é porque 'a bota não diz com a perdigota'. Isso também significa a mediocridade que graça na Assembleia da República. É preciso que as pessoas saibam que: primeiro, quem faz as leis não são as pessoas da Assembleia da República. Elas têm umas ideias e depois pagam a escritórios de advogados que escrevam as leis. Já está mal, não devia ser assim. Quem escreve as leis não devia ter praça aberta. Porquê? Porque é evidente que se for preciso encontrar um alçapão nessa lei vamos ao escritório de advogados que a escreveu. É perverso. Encomendam-se leis à velocidade da luz e depois atropelam-se umas às outras, é o que isso quer dizer.

A violência doméstica é outro dos temas em destaque em algumas das histórias do seu livro e nos dias que correm, tendo em conta o elevado número de mulheres mortas em Portugal. Acha que, tal como acontece com os suicídios, os crimes de violência doméstica ocorrem com maior frequência depois de serem noticiados outros crimes semelhantes?

Não é verdade. A violência doméstica é uma coisa intrínseca ao desenvolvimento da humanidade. É preciso ter uma lata do tamanho do mundo para dizer que uma notícia de violência doméstica pode dar origem a que ela seja replicada e não proibir a Bíblia. A violência doméstica está escrita na Bíblia com todas as letras. Se achamos que as notícias de violência doméstica são motivadoras de réplicas disso, proíba-se a Bíblia. Mas também já não estamos muito longe de um regresso descarado ao tempo da inquisição.

E por que motivo, a cada dia que passa, somos confrontados com mais crimes relacionados com violência doméstica? A sociedade não está a evoluir neste aspeto ou, de facto, a lei não está a funcionar?

É porque cada vez vemos mais crimes destes. Vemos mais, não quer dizer que ocorram mais. Eles já existiam, não tinham era visibilidade. Eu tenho convicção de que eles ocorrem menos do que há 30/40 anos, só que antes não era noticiado. É preciso não esquecer que há 45 anos um homem que matasse a mulher e alegasse questões de honra era mandado para casa. É preciso não esquecer isto, foi só há 45 anos.

A grande maioria destes crimes, como o do Manuel Palito, de que já falámos, acontecem depois de as autoridades estarem a par de que ali existe uma situação de risco. O que falha afinal para que mesmo estando alerta as autoridades não consigam impedir o crime?

As penas suspensas ajudam a criar impunidade, lamento mas é a minha convicção. Ouves toda a gente falar nisso, mas não ouves ninguém dizer o nome das pessoas que alteraram a lei. É preciso, se calhar, saber quem é que mandou alterar a lei, quais foram os deputados que quiseram vetar essa lei, essa alteração de três para cinco anos. Isto é uma questão, a outra questão tem a ver com a diferença entre a realidade da secretária e a realidade da vida. Uma coisa é tu fazeres uma lei à secretária e mandá-la implementar, outra coisa é imaginar a sua aplicabilidade no terreno.

Ora, se o Palito tinha uma pulseira que apitava na proximidade, era preciso que ele morasse num sítio onde pudesse circular sem se aproximar da mulher. Como eles moravam numa aldeia que tinha duas ruas, era impossível o homem viver ali sem aquilo apitar. O que é que criou? Movimentos psicológicos de habituação nos detetores. Ou seja, os senhores que tinham obrigação de analisar aquilo habituaram-se à ideia de que o Palito tinha passado ali na rua... e uma coisa era ter passado ali na rua, outra era ter-se aproximado e matar a mulher.

E o que é que pode mudar essa realidade?

A lei não pode ser aplicada por uns rapazes que estão fechados numa sala com ar condicionado e que não imaginam a aplicabilidade daquilo que estão a escrever. Isto é: não há falta de leis sobre violência doméstica em Portugal, há ausência de execução do que está escrito. Ausência da aplicabilidade da lei, isso é que há. Há ausência de avaliação, há más metodologias de avaliação. Em Lisboa fazem de uma forma e no Porto fazem de outra. Nunca ninguém contabilizou o número de processos em ambiente de violência doméstica. Quantos processos de violência doméstica foram suspensos e desses quantos na sua suspensão deram origem a outros? Alguém quer estudar isto a sério?

Os números do relatório anual de segurança interna são um caixote de números. Tu não sabes quanto é que o país gastou com polícias em rondas. Não sabes quantos polícias tiveram alocados à violência doméstica. E quanto é que isso custou? Andamos aqui a empurrar com a barriga problemas que sabemos que não têm este tipo de solução, têm outros.

Outra das críticas que lemos no livro é em relação às vítimas, não só de violência doméstica, mas de qualquer crime…

Sim. As coisas estão a mudar um bocadinho, mas vamos dizer a verdade: para que é que conta uma vítima num julgamento? Para nada! A vítima chega e apresenta queixa, o polícia faz um auto de notícia e a partir daí mais ninguém lhe dá satisfações de nada. Então se for um crime público ainda menos. Pode-se constituir assistente? Pode, mas precisa de advogado. Quanto tempo demora um advogado que seja pedido à Segurança Social? Quanto tempo? Ninguém quer saber da vítima. Ouves a vítima na queixa e depois no julgamento... se houver julgamento! As vítimas são figuras de terceira classe. Os velhinhos que são assaltados, mesmo quando os ladrões são apanhados, vivem de quê? Quem é que vai atrás do sol posto dar-lhes os medicamentos?

Nesse caso, mais do que a legislação é preciso aplicar e ter meios para agir. Certo?

É preciso mudar a maneira como a justiça olha para as vítimas e o papel que a vítima tem ao longo do processo. É necessário que a vítima tenha um papel ao nível do impacto que ela própria sofreu. E não tem. Ninguém lhe dá satisfações. Imagina que estás à espera que uma pessoa que te agrediu vá a tribunal, estás à espera e ninguém fala contigo. Ninguém quer saber se estás bem, se estás mal, se precisas disto ou daquilo… Interessa é o teu depoimento e depois vais-te embora.

Se o trabalho do Gonçalo Amaral fosse tão mau quanto isso, essas pessoas tinham sido mandadas para casa O Hernâni fala diariamente de vários casos, atualmente no ‘Programa da Cristina’ ou no seu programa, o ‘Linha Aberta’. Há tantos anos ligado à criminologia, ainda lê alguma notícia e consegue ficar chocado? Ainda tem esse sentimento?

Tenho, claro que tenho. Cada vez que vejo um crime de abuso sexual de menores, choca-me. Cada vez que vejo um crime de agressão a velhos, choca-me. São seres indefesos e a maldade humana tem uma latitude inimaginável. Apesar de estarmos habituados, choca-nos. Mas não sou só eu. Ainda me lembro daquela equipa do INEM que socorreu um bebé que levou com uma faca no peito… não me esqueço que aqueles profissionais, altamente experimentados e preparados, ficaram chocados. Não se criam insensibilidades para isto.

Falando de uma questão fora da história do livro, mas de um caso igualmente marcante: o desaparecimento de Joana Cipriano. Recentemente, no seu programa entrevistaram o irmão de Leonor - João. Há cerca de 15 anos confessou um crime horrendo e agora afirma querer encontrar a sobrinha que no passado disse ter matado. Como explica esta volta de 180 graus no discurso de João Cipriano?

É a desejabilidade social. É o facto de saber que está cá fora e que é politicamente correto dizer que não matou. É baixar guardas para poder regressar à sociedade, senão sabe que tem as portas todas fechadas.

Escrevi um livro sobre a Maddie, andei no terreno e vi muita coisa. Não acredito [que esteja viva]Num recente documentário sobre o desaparecimento da Madeleine McCann também falam neste caso e colocam em causa o trabalho de Gonçalo Amaral, o inspetor que esteve à frente do caso. Acha que todo o trabalho do Gonçalo Amaral foi o melhor ou acredita que tenham existido algumas pontas soltas?

Acredito que podia ter sido feito mais e melhor, mas isso não põe em causa o julgamento. Depois do trabalho do Gonçalo Amaral, estas pessoas foram julgadas [mãe e tio de Joana Cipriano]. Se o trabalho do Gonçalo Amaral fosse tão mau quanto isso, essas pessoas tinham sido mandadas para casa. Mas já que falas nisso, queria dizer o seguinte: Esse documentário aparece nas vésperas de mais um pedido de dinheiro para mais investigação sobre a Maddie. Já vão em mais de 13 milhões de libras [14,7 milhões de euros] gastos à procura de uma menina inglesa. Se tivessem distribuído esse dinheiro por todas as meninas inglesas que desapareceram, se calhar algumas tinham aparecido. É tudo o que tenho a dizer sobre a Maddie.

Acredita que a Maddie possa estar viva?

Não, em circunstância nenhuma. Escrevi um livro sobre a Maddie, andei no terreno e vi muita coisa. Não acredito.

O Hernâni já teve ligado à política. É uma área que pode voltar a fazer parte da sua vida?

Não penso voltar. Fui candidato a presidente de Câmara [Odivelas], perdi por 1% e tirei daí as lições que tinha a tirar. Não está nos meus horizontes. Nos meus horizontes está fazer isto: Partilhar os conhecimentos que vou adquirindo e dar opinião daquilo que me pedem para dar opinião.

Não acha que poderia mudar mais coisas estando ligado à política?

Não. Não mesmo. Nós não sabemos o dia de amanhã, mas não me parece.

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