"Não comemos proteína há cinco meses. O meu filho mais novo tem quatro anos de idade, não sabe o que são ou a que sabem frutas e vegetais", disse à BBC Reem Tawfiq Khader, um mãe de 41 anos de idade, natural de Gaza. “A declaração de fome vem demasiado tarde, mas continua a ser importante”.
Estas declarações são noticiadas pouco depois de o Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC, em inglês), um organismo da ONU com sede em Roma, ter confirmado que há fome em curso em Gaza. É a primeira declaração de fome a atingir o Médio Oriente, depois de os especialistas terem alertado que 500.000 pessoas se encontravam numa situação catastrófica.
Rida Hijeh, de 29 anos de idade, relata que a filha de 5 anos passou de 19 quilos para 10,5 quilos desde que a guerra começou, e esclarece que a menina era saudável, sem doenças anteriores: “Isto só aconteceu por causa da fome. Não há nada para as crianças comerem. Não há vegetais, não há frutas”.
A menina, Lamia, tem agora inchaço nas pernas, cabelo enfraquecido e problemas no sistema nervoso. “Não consegue andar. Fui a muitas clínicas e médicos e hospitais. Todos me dizem que a minha filha está malnutrida, mas ninguém me deu nada, nem tratamento nem apoio”.
A ONU, na mesma declaração, estima que a fome deverá estender-se às províncias de Deir el-Balah (centro) e Khan Yunis (sul) até ao final de setembro.
A província de Gaza representa cerca de 20% da área da Faixa de Gaza.
O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, porém, reagiu ao relatório falando numa "mentira descarada" e atribuiu a responsabilidade pela escassez ao Hamas. "Israel não tem uma política de fome. Israel tem uma política de prevenção da fome", afirmou.
Israel continua a negar a existência de fome, ainda que seja desmentido por mais de uma centena de grupos humanitários, testemunhas no local e diversos órgãos das Nações Unidas.
Aseel, uma outra mulher que mora na cidade de Gaza, disse à BBC que passou de 56 quilos, há cinco meses, para 46 quilos, atualmente. Diz que não come fruta ou carne há meses e que gastou quase a totalidade das suas poupanças para comprar ingredientes básicos. A sua cunhada, com quem vive, tem um bebé de um ano. “Ela tem andado desesperada à procura de fórmula a um preço razoável”, diz, explicando que o preço pode chegar a 180 shekels israelitas (cerca de 45 euros) por lata.
“Não tenho qualquer reserva de comida, nem sequer tenho o suficiente para durar uma semana ou duas. Vivemos um dia de cada vez, como milhares de pessoas”, disse Aseel.
Uma enfermeira britânica a trabalhar com a organização de caridade UK-Med, em Gaza, disse à publicação que 70% das grávidas que consulta sofrem de má-nutrição. “Os bebés estão a nascer mais pequenos e mais vulneráveis”, disse Mandy Blackman.
Quando é que há fome em curso?
De acordo com especialistas da ONU, mais de meio milhão de pessoas em Gaza enfrentam condições catastróficas, o nível mais elevado de privação alimentar do IPC, caracterizado pela fome e pela morte.
O número, baseado em informações recolhidas até 15 de agosto, deverá subir para quase 641.000 até ao final de setembro, disse a AFP.
De acordo com o IPC, trata-se da deterioração mais grave da situação desde o início das suas análises na Faixa de Gaza.
Para o IPC, uma fome está em curso quando três elementos estão reunidos: pelo menos 20% dos lares (um em cada cinco) enfrentam uma escassez extrema de alimentos, pelo menos 30% das crianças com menos de 5 anos (uma em cada três) sofrem de desnutrição aguda e pelo menos duas pessoas em cada 10.000 morrem de fome todos os dias.
A situação é o resultado da escalada do conflito nos últimos meses, que provocou deslocações maciças da população, combinadas com o acesso restrito aos abastecimentos alimentares causado por Israel.
No início de março, Israel proibiu totalmente a entrada de ajuda humanitária em Gaza, antes de autorizar, no final de maio, o transporte de quantidades limitadas, provocando graves carências de alimentos, medicamentos e combustível.
Israel, que controla todos os acessos a Gaza, acusa o Hamas de saquear a ajuda humanitária, o que o grupo nega, e as organizações humanitárias de não a distribuírem.
As organizações humanitárias afirmaram que Israel impôs restrições excessivas e considerou muito perigoso distribuir a ajuda em plena guerra.
Mais de 62 mil pessoas morreram na Faixa de Gaza desde o início da campanha militar de Israel em resposta ao ataque levado a cabo pelo Hamas a 7 de outubro de 2023, onde morreram cerca de 1.200 pessoas e cerca de 250 foram feitas reféns.
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