"O fator 'Estados Unidos' na política da América Latina deve ser sempre considerado, principalmente em época eleitoral, na qual há uma certa polarização política. Governos de direita na América Latina tendem alinhar-se mais com os interesses dos EUA, enquanto os de esquerda tomam uma posição mais pragmática, não de distanciamento total na maioria das vezes, mas com maiores cálculos ao lidar com a superpotência", afirmou à Lusa Giuliano Braga, investigador do Centro de Investigação em Ciência Política na Universidade do Minho (CICP-UMINHO).
A Bolívia, com 12 milhões de habitantes, elege a 17 de agosto os membros do Senado, da Câmara dos Deputados e os próximos Presidente e Vice-Presidente do país. Caso seja necessário, a segunda volta das presidenciais pode acontecer a 19 de outubro.
Para Giuliano Braga, não há prova de interferência direta dos EUA no processo eleitoral, por isso "não é algo que deva ser afirmado". No entanto, o Presidente norte-americano, Donald Trump, emite opiniões sobre todos os assuntos políticos mundias, ampliadas pelas redes sociais, as quais podem ter impacto significativo na opinião pública.
"Não há evidências concretas até o momento de que os Estados Unidos estejam a intervir na política boliviana, mas também é verdade que Washington tem um longo histórico de intervencionismos diretos e indiretos na região, como foi o caso da política do 'Big Stick' de [Presidente norte-americano Theodore] Roosevelt e, posteriormente, do apoio às ditaduras latino-americanas nos anos 1960 e 1970", afirmou Suhayla Viana de Castro, professora auxiliar no departamento de Direito e coordenadora da licenciatura de Relações Internacionais da Universidade Portucalense.
Entretanto, a professora universitária afirmou que Governo Trump "tem pressionado de forma muito ostensiva alguns países da região, impondo-lhes medidas como a taxação de produtos".
"No entanto, é preciso notar que a Bolívia não parece ser uma prioridade para Trump por enquanto. Ao mesmo tempo, do lado boliviano, as relações externas estão muito mais voltadas para a China e a Rússia e as relações com os Estados Unidos esfriaram desde 2008, não constituindo uma prioridade", indicou Viana de Castro.
Já o historiador e investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC-UNL) Cristiano Pinheiro de Paula Couto referiu que os Estados Unidos têm muitos interesses económicos na Bolívia, nomeadamente no gás e nas gigantescas reservas de lítio.
"Mesmo que não houvesse ações encobertas, ou mesmo aparentes, a serem realizadas no terreno, o que é muito plausível, por intermédio da embaixada e de outros canais, a própria virulência verborrágica do atual Presidente norte-americano produz ondas sísmicas em todo o mundo, e a América Latina não é exceção", avaliou o historiador.
"De um jeito ou de outro, os Estados Unidos sempre interferem, e não é preciso fazer grande esforço de memória para que sejam identificados exemplos, basta ter-se em conta o que aconteceu no turbulento processo eleitoral na Bolívia em 2019 (...)", referiu Pinheiro de Paula Couto.
Em 2019, Evo Morales, presidente entre 2006 e 2019] foi "perseguido pelas forças conservadoras alçadas ao poder na sequência de um golpe de Estado" e, agora, mesmo sendo "uma das figuras políticas mais importantes da história da Bolívia e uma referência da esquerda mundial", atravessa "um momento difícil da sua longa carreira política", salientou.
Em 2019, Morales venceu novamente as presidenciais, mas a oposição declarou que houve fraude e um grande movimento de contestação eclodiu na sociedade. Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia, renunciou e refugiou-se na Argentina.
Morales tentou candidatar-se às presidenciais de agosto, mais foi impedido pelos tribunais bolivianos, desencadeando manifestações dos apoiantes, nas quais morreram seis pessoas, em junho.
O líder "cocaleiro" [como Morales é conhecido, por ter sido líder sindical dos agricultores que cultivam a planta da coca], de 65 anos, está recluso desde outubro na região do Chapare, protegido por aliados e alvo de um mandado de prisão por um caso de suposta exploração de menores, o qual negou.
Em julho, o Ministério Público abriu uma investigação contra o ex-presidente, depois de uma denúncia do Governo que acusou Morales de oito crimes, incluindo terrorismo, na sequência das manifestações ocorridas em junho.
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