Querido, agora sou dona de casa. Mulheres domésticas da nova geração
São mulheres, licenciadas, cultas e que escolheram ficar em casa. São mulheres da nova geração que fazem parte do grupo 'domésticas'. São mulheres que decidiram dedicar-se à família. São mulheres que defendem a sua escolha e que pedem a valorização da mesma.
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País Reportagem
"Não tem um emprego? Então deve estar sempre de férias", "Ela não trabalha? Deve ser bom estar em casa sem fazer nada", "Não tem uma carreira? Como é que é capaz de viver às custas do marido?". Estes são comentários familiares a mulheres que escolheram ficar em casa , após terem abdicado da sua carreira profissional.
Ser dona de casa já não tem o mesmo encanto de outros tempos. Pelo contrário. Está fora de moda e... fora de questão para a maioria.
As estatísticas mostram que são cada vez menos as que tomaram esta decisão. Na década de 1980 eram mais de um milhão, em 2019 foram cerca de 354 mil (dados do INE e Pordata).
Mas para todas as maiorias há também as minorias. Falámos com três mulheres que quiseram ficar em casa - muito para lá da realidade do confinamento -, que defendem o direito à (sua) escolha e a necessidade de se valorizar a mesma. De se deixar de considerar a sua ocupação como a falta dela, para um cargo que supera em muito as tradicionais 40 horas semanais.
Maria Inês tem 42 anos e é mãe de Miguel, de 13 anos, de Teresa, de 10, e de Luísa, de dois
Eram cerca de seis da manhã em St. Louis (Missouri, EUA), quando ligou ao Notícias Ao Minuto para nos falar sobre a forma como a maternidade lhe ‘virou do avesso’ os conceitos de mulher e de mãe que tinha até ao nascimento dos filhos. À medida que amanhecia, a antiga coordenadora de formação da Vodafone contava-nos que se formou em Ciência Política e Relações Internacionais e em jovem não tinha o objetivo de ser mãe e construir família, “pelo contrário”.
Casou-se a primeira vez aos 21 anos e o peso da pressão para que tivesse filhos fez com que ganhasse ainda mais resistência à ideia de construir família. Quando se separou, dedicou-se totalmente a "si mesma" e deixou-se seduzir pelo sabor da liberdade. Anos mais tarde, quando se cruzou com o atual marido, sabia que queria um relacionamento sério, mas aumentar a família continuava a não ser um desejo.
Aos 29 anos engravida e a chegada de Miguel não fez adivinhar grandes mudanças, mas "a partir daí foi surpreendida pelo gosto da maternidade". Dois anos e meio depois nasce Teresa e foi aos seis meses da filha que decidiu ‘largar tudo’ para se dedicar a tempo inteiro ao papel de mãe.
Eles eram os primeiros a chegar ao colégio e os últimos a sair. Sentia que estava a falhar em vários níveis da minha vidaO marido recebeu uma proposta de trabalho internacional e “só vinha a casa aos fins de semana”. “Durante a semana estava eu sozinha em casa com dois bebés e com uma profissão muito exigente. Aí as coisas complicaram-se. Eles eram os primeiros a chegar ao colégio e os últimos a sair. Sentia que estava a falhar em vários níveis da minha vida”, conta.
Maria Inês com os três filhos© Maria Inês Gonçalves
O momento de viragem deu-se dentro do consultório da sua médica de família, quando chegou com os dois filhos nos braços e desabou em lágrimas. “Estava à beira de um esgotamento”, afirma, frisando que a “angústia emocional” pesava mais do que o cansaço físico.
Ao conversar com o marido, este deu-lhe toda a liberdade de tomar a decisão “que a deixasse mais calma”.
‘Querido, agora sou dona de casa’
Maria Inês tinha 33 anos quando decidiu deixar o trabalho, as pausas com os colegas, as horas de almoço em que espreitava a montra da Zara, os momentos a sós nas viagens de carro para o escritório e, contra as motivações que a preenchiam na juventude, abraçou uma nova realidade.
“Em Portugal, as mães que estão em casa ou são desempregadas e não têm alternativa ou são ricas e estão em casa porque lhes apetece ir ao ginásio e têm amas. O meu caso não se enquadrava em nenhum desses. No meu caso, foi em 2011, as pessoas estavam a agarrar-se aos empregos [por causa da crise]”, lembra.
Pensam que quando decidimos ser mães a tempo inteiro que vamos entrar numa espiral de estupidificação e que nos anulamosLidou com as questões e o “julgamento” dos mais próximos. “Já lá vão mais de nove anos e esse preconceito durou muito tempo por parte de amigos e família. As pessoas olhavam com alguma suspeita. Pensam que quando decidimos ser mães a tempo inteiro que vamos entrar numa espiral de estupidificação e que nos anulamos [...] Sentia que as pessoas eram condescendentes comigo”.
Mas, pelo contrário, a entrega completa à família é uma tarefa “dura” e sem horários. “É como se morássemos no escritório. Eu durmo, como, moro no meu escritório. Isto faz com que esteja sempre a trabalhar. É muito desgastante e exigente”.
Como sobrevive a individualidade e o amor entre o casal depois de ‘tudo mudar’? “É importante manter o nosso foco como mulheres. Foi algo que ficou claro para mim depois de duas semanas. Preservei a minha individualidade”.
A família mudou-se para os Estados Unidos há três anos e Maria Inês encontrou, no outro lado do oceano, uma cultura mais aberta ao estilo de vida que abraçara anos antes e o reconhecimento pelo qual lutou no país que a viu nascer. “A licença de maternidade nos EUA é de seis semanas por isso é comum as mães deixarem de trabalhar até os miúdos irem para o liceu. Não existe nenhum subsídio [para as mães], mas existe uma dinâmica sociocultural: passeios no parque, imensos ginásios infantis, grupos de mães”.
Dependência financeira? "O que ele recebe é dos dois"
A dependência financeira do marido não é tabu e o pragmatismo do casal levou-o a concordar sempre com este tópico.
O dinheiro que ele recebe é dos dois porque se ele tem progredido na carreira também se deve a mim. Ele também vê as coisas dessas forma“O dinheiro que ele recebe é dos dois porque se ele tem progredido na carreira também se deve a mim. Ele também vê as coisas dessas forma. Ele percebe que este é o meu trabalho, de outra forma teríamos de contratar alguém para cuidar das crianças”, realça.
Depois de uma década dedicada totalmente à família, pretende voltar à vida profissional dentro de um ano e também o regresso a Portugal será para breve.
“Sinto que tudo tem o seu tempo. Vou navegando ao ritmo das necessidades da minha família e do meu bem-estar. Se houver um momento em que fique doida por estar em casa há tantos anos e isso implicar que seja má mãe, temos de mudar de estratégia. Penso em voltar a trabalhar, até porque tenho essa necessidade. Não é por estar em casa que deixei de ter interesses e de querer ser estimulada”, rematou.
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Evelyn Arita, 28 anos, casada e sem filhos. Considera-se uma "jovem moderna à moda antiga"
Evelyn, brasileira, recebeu-nos com um sorriso no rosto através de uma videochamada num dia claramente atarefado. Aos 28 anos mostra-se orgulhosa da grande decisão que mudou para sempre a sua vida, mas nem sempre pensou assim. À semelhança da maioria das mulheres, também sonhava em ser bem sucedida na sua carreira profissional.
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Licenciou-se em Comunicação Social, estudou em Lisboa e começou a trabalhar numa grande empresa onde ascendeu a um cargo superior e foi aqui que sofreu uma "grande deceção profissional", o que a levou a tirar um ano sabático e a ir para os Estados Unidos (em 2017), onde trabalhou como babysitter.
"Trabalhei com uma família em que o pai e a mãe tinham muitas responsabilidades, eu cuidava das crianças e percebia que elas estavam muito tempo sozinhas. Os pais faziam o que podiam mas pensei se era aquilo que queria para a minha vida".
Decisão tomada
Evelyn pensou, ponderou e determinou que tornar-se-ia dona de casa depois do casamento.
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O início do casamento não foi o conto de fadas que Evelyn esperava. Teve de enfrentar vários 'demónios' e de procurar o seu verdadeiro valor, que ia muito além do facto de ter ou não uma carreira profissional.
Alguns meses após o meu casamento tive uma crise existencial. Sentia-me fútil, inútil, incapaz, totalmente dependente"Como vivemos num mundo em que as mulheres 'precisam' de trabalhar, porque senão ficam mal vistas, alguns meses após o meu casamento tive uma crise existencial. Sentia-me fútil, inútil, incapaz, totalmente dependente", confessa-nos, referindo que teve de recorrer a uma especialista comportamental que a ajudou a encontrar o seu "propósito".
Com o tempo percebi que não era algo que me fizesse inferior ao meu maridoEsta ajuda foi essencial para que Evelyn percebesse o seu real valor e o seu lugar no casamento. "Com o tempo percebi que não era algo que me tornasse inferior ao meu marido. Entendi também que estava a querer competir com ele, queria trazer mais dinheiro, ser mais bem vista do que ele, não queria estar do lado dele e sim à frente. O casamento não é uma disputa de egos, mas um sendo a base do outro".
O 'elefante na sala'
Mas havia ainda um elefante na sala: como viver dependente a nível financeiro do marido e não se sentir mal por isso?
Então deixou de existir essa de 'o meu dinheiro e o teu dinheiro'. Seria antes o 'nosso dinheiro'"Quando me casei deparei-me com uma situação que achava o cúmulo: eu, Evelyn, estou aqui a usar o cartão de crédito do meu marido. Para ele estava tudo bem, mas dentro do casamento não estamos lá para dividir as coisas, mas sim para somar. Então deixou de existir essa de 'o meu dinheiro e o teu dinheiro'. Seria antes o 'nosso dinheiro'. Ele teve de ter muita paciência comigo. O meu marido foi o meu maior mentor, a pessoa que mais admiro a seguir ao meu pai".
Uma vida muito, muito, atarefada...
Quem pensa que a vida de Evelyn é simples e sem grandes correrias, engana-se. Ironicamente, ela própria achava isto até se ver nesta situação. "Antes de me casar julgava muito as donas de casa. Dizia que ficavam apenas no sofá a ver televisão. Desde que me tornei dona de casa dá para contar pelos dedos as vezes que eu fiz isso".
Evelyn refere que em casa "trabalha-se três vezes mais do que num escritório", mas que mesmo com as muitas tarefas, tira sempre tempo para investir em si mesma, quer seja para ler, estudar ou tirar um curso.É muito fácil gerir uma empresa, o difícil é administrar a tua casa e família, porque estás a lidar com pessoas. Estás a formar caráterÉ aqui que faz uma reflexão intrigante: "É muito fácil gerir uma empresa, o difícil é administrar a tua casa e família, porque estás a lidar com pessoas. Estás a formar caráter".
Um outro aspeto que faz questão de sublinhar é que a sua casa "não é um hotel". Quer com isto dizer que, pelo facto de a sua ocupação principal ser a de doméstica, tal não significa que o marido não a ajude nas tarefas domésticas, pelo contrário.
Infelizmente há muitos homens que só pelo facto da mulher ficar em casa acham que ela é uma empregada. Não, não tem nada a ver"Aqui ninguém é empregada doméstica. Se faço o almoço, por exemplo, o meu marido lava a louça. Infelizmente há muitos homens que só pelo facto de a mulher ficar em casa acham que ela é uma empregada. Não, não tem nada a ver. É uma questão de ser humano, de cidadão", defende.
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"A mulher não é um capacho do marido, nem dos filhos. Não vai ficar o tempo todo a servir a outra pessoa, porque também se cansa. É uma questão de bom senso, de etiqueta, de amor ao próximo. O homem vê que a mulher esteve todo o dia a limpar a casa e tem empatia. Não é por ficarem em casa que têm de se sujeitar a qualquer tipo de situação", completa.
O preconceito que existe
Feliz com a sua decisão, Evelyn faz saber que não sente falta nenhuma de ter um emprego fora de casa. Hoje, assume-se como a sua própria chefe, notando que é um privilégio trabalhar para a família.
"A mulher tem que ter a escolha de fazer o que quiser, mas acho que ainda há muito preconceito de se fazer estas escolhas. Não é natural, ainda. Olham para nós e pensam: 'mas és tão nova!'. Aos poucos isso não irá ser considerado o anormal, mas como uma escolha", reflete.
Percebi que a minha felicidade é receber o meu marido em casa todos os dias depois do trabalho, com a casa a cheirar bem, de fazermos o que quisermos ao fim de semana"Percebi que a minha felicidade é receber o meu marido em casa todos os dias depois do trabalho, com a casa a cheirar bem, de fazermos o que quisermos ao fim de semana. Respeito muito o meu marido por tudo o que estamos a viver hoje", sublinha.
Neste caminho, que confidencia que ainda não foi bem compreendido pela mãe, Evelyn espera inspirar outras mulheres a tomarem as decisões que as deixam mais felizes, sem pensarem no julgamento alheio.
"Acho que não adianta de nada trabalhar muito e depois não aproveitar o crescimento dos filhos e o melhor da vida, por exemplo. A minha mãe hoje diz-me isso. Ela só se preocupava em ter e esqueceu-se do ser. Por isso sejam mais".
Mafalda Pinto, atriz, 37 anos. Mãe de Mel e Martim
A última vez que Mafalda Rodiles conversou com o Notícias Ao Minuto, em setembro de 2020, mostrou-se radiante com o seu regresso à ficção nacional depois de ter estado dez anos afastada das câmaras. O amor aos filhos falou mais alto e fê-la tomar a decisão de abdicar da carreira na representação para se dedicar ao papel de mãe. Tal como Evelyn e Maria Inês, Mafalda recusava a ideia de esta ser a sua ocupação a longo prazo, mas assim que teve a primeira filha nos braços soube o caminho que queria seguir.
Acho que muitas mães, se tivessem essa possibilidade, iriam preferir ficar com os filhos do que trabalhar
Tinha emigrado para o Brasil, onde conheceu o pai dos filhos, e o apoio do agora ex-companheiro foi o sinal verde para arriscar. "Acho que se dissesse à minha mãe: 'agora vou parar de trabalhar dois anos para ficar com os meus filhos', ela iria achar um disparate. Como estava longe, não havia muita gente para criticar. Acho que muitas mães, se tivessem essa possibilidade, iriam preferir ficar com os filhos do que trabalhar".
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Estar em casa é mais duro e menos valorizado
Apesar de estar em casa a tempo inteiro, Mafalda dedicava-se sobretudo à educação dos filhos e contava com a ajuda de uma empregada três vezes por semana. "O trabalho em casa é um trabalho sem fim", realça.
É muito mais cansativo. É um trabalho não pago e que ninguém valoriza muito
Agora que está de regresso ao ativo, a atriz constata que estar em casa a tempo inteiro é mais exigente do que dividir-se entre a vida profissional e maternidade. "Hoje em dia, o meu dia é muito mais fácil vindo trabalhar, mas é que não haja dúvidas. Estou aqui, almoço, falo com as pessoas, mando mensagens. Com eles, eles estão sempre em cima de mim. Para mim é muito mais cansativo. É um trabalho não pago e que ninguém valoriza muito", frisa.
E por isso, não deixa de elogiar quem, tal como a própria, o fez sem medo do preconceito alheio. Considera "altruísta" a escolha de abdicar da carreira "porque a mulher já sabe que vai ser desvalorizada ao dedicar-se ao filho" e deixa clara a sua posição: o acompanhamento a tempo inteiro é um "enorme benefício para a criança".
Não temos a noção que a maior parte dos nossos traumas, a maior parte daquilo que vivemos enquanto adultos, vem daí, de quando éramos bebés
"Não temos a noção que a maior parte dos nossos traumas, a maior parte daquilo que vivemos enquanto adultos, vem daí, de quando éramos bebés. Tudo isso afeta a nossa personalidade enquanto adultos. Andamos em terapia e seria mais fácil se tivéssemos sido acompanhados. Um bebé não é para ser largado numa creche com dois meses ou com três. Deveria fazer parte das leis, as mães ficarem em casa com os bebés pelo menos até aos nove meses de idade", defende.
Um capítulo bonito que não foi o último
No caso de Mafalda, a dependência financeira do ex-marido assustou-a, uma vez que trabalhava desde os 15 anos e "nunca mais tinha pedido dinheiro aos pais". "Ele estava a sustentar a nossa família e eu estava lá [em casa]. Se tivesse uma babysitter, ele também teria de pagar", explica.
Estava cheia de saudades de voltar a fazer o que gosto. Tem sido tranquiloEsta foi a realidade da atriz durante vários anos, até ter começado a dedicar-se a um projeto relacionado com a alimentação saudável, que aos poucos a trouxe de volta à vida profissional. Em 2017, lançou o livro 'Seja Feliz Sem Dietas', editado pela Oficina do Livro, e em 2019, na sequência do divórcio, muda-se novamente para Portugal e começa as gravações da novela 'Amar Demais', da TVI.
Regressada a Lisboa, Mafalda Rodiles vive uma nova fase com grande serenidade. "Estava cheia de saudades de voltar a fazer o que gosto. Tem sido tranquilo", conta.
Depois da vida a devolver às câmaras, sente que não perdeu nada e não descarta a possibilidade de voltar a largar tudo em prol de oferecer a melhor educação aos filhos. "É um privilégio fazer isso e se o puder fazer, farei", remata.
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