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"Invocar o referendo à Eutanásia é uma mera manobra política, uma jogada"

José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Invocar o referendo à Eutanásia é uma mera manobra política, uma jogada"
Notícias ao Minuto

20/02/20 por Melissa Lopes

Política José Manuel Pureza

Dois anos depois, o Parlamento volta esta quinta-feira a debater e votar a despenalização da eutanásia, regressando o tema à casa da Democracia com projetos-lei de cinco partidos (PS, Bloco de Esquerda,  PAN, PEV e Iniciativa Liberal) que, no essencial, estão alinhados na matéria. Apesar de a configuração da Assembleia da República ser agora, em teoria, mais favorável à despenalização da eutanásia, o desfecho da votação é incerto. E caso, pelo menos um dos projetos seja hoje aprovado, o processo ainda será longo. Seguir-se-ão a discussão na especialidade e a votação final global de um texto comum que será enviado para Belém

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda e vice-presidente da Assembleia da República, critica aqueles que defendem agora um referendo sobre a despenalização da eutanásia, sobretudo quando em 2018 não o fizeram. O bloquista acusa vozes como Manuela Ferreira Leite, Passos Coelho, Cavaco Silva (e outras) de estarem a querer usar a consulta popular para travar um processo legislativo que julgam ter maioria parlamentar para ser aprovado. E isso configura uma "instrumentalização" que "desvirtua" o referendo e a democracia parlamentar, alerta. 

Militante do Bloco de Esquerda e católico, José Manuel Pureza defende que este não é um debate religioso, é antes "um debate sobre direitos, liberdades, garantias e tolerância”. Por isso, frisa ser inaceitável que, "por força de uma determinada crença, não só se tenha uma posição como se queira impor essa posição aos outros". "Muito menos sou capaz de aceitar que se queira impor a sua posição aos outros através do Código Penal".  

O deputado diz ainda ter ficado "surpreendido" e, ao mesmo tempo, "esperançado" pelo facto de a Igreja ter decidido apoiar o referendo e atira:  "Afinal, a Igreja quando quer pode-se mobilizar. Espero que seja capaz de se mobilizar, com a mesma intensidade, com o mesmo fervor, com a mesma garra, em muitos outros assuntos da sociedade portuguesa onde há injustiça, opressão, onde há maus-tratos quotidianos das pessoas mais pobres". 

Todas as pessoas que aparecem a apoiar o referendo, foram, há dois anos e meio, totalmente silenciosas

A poucos dias de os projetos sobre a despenalização da eutanásia serem discutidos no Parlamento, começou a ganhar força a ideia de um referendo, através de uma petição e com várias personalidades a darem voz a essa possibilidade como Manuela Ferreira Leite, Passos Coelho, Cavaco Silva, entre outros. Por que razões esta não é uma matéria que deva ser referendada?

Por três razões principais. Primeiro lugar, direitos fundamentais, como o direito dos jornalistas à liberdade de informação, ou como o direito de qualquer pessoa a não ser presa sem culpa formada, ou o direito de liberdade religiosa, ou o direito de as mulheres votarem, ou o direito de não haver pena de morte. Os direitos fundamentais não podem ser referendados, são de reserva de lei.

A segunda razão é de política conjuntural. Todas as pessoas que agora referiu, e todas as outras que agora aparecem a apoiar o referendo, foram, há dois anos e meio, totalmente silenciosas à hipótese de referendo. Não disseram um ai a respeito da hipótese de referendo. Não falaram uma única vez do respeito pelo povo, da necessidade de consultar o povo, não disseram nada sobre esse assunto. E a razão é muito simples: havia (em 2018) no Parlamento uma maioria que os satisfaria do ponto de vista dos resultados das votações dos vários projetos. O que agora acontece é que encaram a possibilidade, que é uma mera possibilidade, de a maioria dos deputados votarem contra a sua vontade. E portanto fazem uma utilização absolutamente e exclusivamente instrumental do referendo.

Quando a maioria parlamentar lhes é favorável, não falam do referendo, quando a maioria parlamentar lhes é desfavorável, invocam o referendo. Isso é desvirtuar o referendo, é desvirtuar a democracia parlamentar. É uma mera manobra política, uma mera jogada política, não tem outro efeito.

O que está a dizer é que é uma tentativa de última hora para travar os projetos que acreditam vir a ser aprovados?

Exatamente. Não querem utilizar o referendo para consultar o povo. Querem fazer um referendo para travar um processo legislativo. Esse é efetivamente o seu objetivo.

E, finalmente, uma terceira questão que é talvez a mais séria de todas. O que está em causa neste debate não é algo a preto e branco. Não é algo de 'sim' ou de 'não'. É algo que envolve uma ponderação muito rigorosa, muito prudente, muito equilibrada, de variadíssimas coisas: quem é que tem direito a solicitar a antecipação da morte e quem é que não tem?; quais são os caos em que é admissível e os casos em que não é?; quais são os direitos e os deveres dos profissionais de saúde?; quais são os mecanismos de controlo e de garantia de que tudo será cumprido conforme a lei?; onde é que se pode praticar a antecipação da morte? Etc.

A delimitação de todo um conjunto de elementos não cabe, evidentemente, numa pergunta de ‘sim’ ou ‘não’. Só uma lei do Parlamento é que está em condições de acautelar e acomodar todos estes elementos com um trabalho muito rigoroso e sério que é, aliás, aquilo que fazem os vários projetos que estão em discussão na Assembleia da República. É responsabilidade do Parlamento de, meticulosamente, rigorosamente, prever aquilo que tem de ser previsto, regulamentar aquilo que tem de ser regulamentado, e não cair na tentação fácil de utilizar um referendo só porque dá jeito do ponto de vista político.

Ainda assim, a maioria dos portugueses, de acordo com uma sondagem divulgada muito recentemente, é favorável à eutanásia. 

Exatamente. Do ponto de vista da previsão do resultado político, até podia dizer que, muito provavelmente, se houvesse referendo, a despenalização ganharia. Mas não é esse o meu ponto. É que eu acho que não deve haver referendo por uma questão de princípio, de prudência e de seriedade política.

Em maio de 2018 foi apenas por cinco votos que a despenalização da morte assistida não passou. Agora, com a atual constituição do Parlamento, o que é que pode impedir que seja aprovada?

Cada deputado e deputada votará de acordo com a sua consciência. Naturalmente que até ao momento da votação se verificará. Neste momento, ninguém tem nenhuma certeza sobre qual vai ser o desfecho desta votação. Temos toda a determinação que os projetos sejam aprovados mas cada deputado votará. O que é que pode impedir a aprovação? É a decisão dos deputados que é soberana nessa matéria.

Quais são as principais diferenças entre os vários projetos em discussão?

São todos muito próximos. Todos eles se preocupam em despenalizar a eutanásia. Ou seja, deixar de considerar que o profissional de saúde que ajuda alguém a antecipar a sua morte, a pedido do próprio e por vontade do doente, deixe de ser considerado como criminoso e que deixe de estar sujeito a pena de prisão que vai até três anos. Depois, todos os projetos preveem - de maneira muito rigorosa - quais são as circunstâncias em que os pedidos podem ser atendíveis; quais são as aquelas situações excecionais nas quais a ajuda na antecipação da morte não é considerada crime. Todos estabelecem com clareza que isto só se verifica para pessoas que estão em situações de doença incurável, fatal, que provoca um sofrimento insuportável, irreversível. Todos preveem que a vontade do doente tenha de ser reiterada, afirmada diante de dois ou mais médicos. Todos preveem que só podem solicitar a antecipação da morte pessoas que estejam no pleno uso das suas faculdades mentais. Não é admissível qualquer pedido de uma pessoa da qual se suspeite que tem problemas de natureza psíquica. Só poderão fazê-lo pessoas maiores de idade, só a pedido da pessoa, e não por imposição de terceiros.

E depois há um conjunto de outras regras que todos os projetos preveem que diz respeito aos direitos e deveres dos profissionais de saúde, designadamente o direito à objeção de consciência. E ainda, todos os projetos preveem o estabelecimento de uma equipa, de uma comissão, que fiscalize o cumprimento escrupuloso das regras legais. Há pequenas diferenças, mas são diferenças de pormenor, porque no essencial todos os projetos convergem para isto que acabei de dizer.

Não terá havido outro tema que tenha sido tão longamente e intensamente discutido como o da despenalização da morte assistida. (...)Dizer que não há debate suficiente é uma falácia

Um dos argumentos usados por quem se manifesta contra a eutanásia é de que o assunto não foi suficientemente e seriamente debatido no país. Reconhece essa fragilidade?

Por aquilo que eu conheço da história da democracia portuguesa, não terá havido outro tema que tenha sido tão longamente e intensamente discutido como o da despenalização da morte assistida. Este tema é discutido na sociedade portuguesa há muito tempo. Tivemos toda uma legislatura de intensa discussão desta matéria. Essa discussão passou-se, desde logo, na sociedade, com os órgãos de comunicação, com muitas associações, com muitas autarquias, com muitas comunidades religiosas, com universidades, ordens profissionais, academias, enfim, todos a promoverem debates.

Participei em dezenas e dezenas de debates por todo o país. E todas as outras pessoas mais ou menos envolvidas no processo o fizeram. Na própria Assembleia da República houve um debate intensíssimo. Houve dois grupos de trabalho. Um criado por causa de uma petição a favor da despenalização da morte assistida, que desencadeou todo o processo. Isso deu lugar a audição de constitucionalistas, de penalistas, de médicos, de filósofos, de especialistas em ética das ciências da vida. Houve depois outro grupo de trabalho, criado à volta de uma petição de sentido contrário. E tudo isto voltou a acontecer. E no momento em que, em 2018, foram votados os projetos, todo este debate se tornou ainda mais intenso.

Dizer que não há debate suficiente é uma falácia. Na verdade, as pessoas que evocam isso, nunca ficarão satisfeitas com nenhum debate que venha a acontecer. Só quando o ‘não’ prevalecer definitivamente é que ficarão satisfeitas. É um mero pretexto, não há seriedade nesse argumento de que não há debate na sociedade portuguesa, bem pelo contrário.

Na Bélgica, cerca de 74% das pessoas que solicitaram a antecipação da sua morte recorrendo à eutanásia estavam em cuidados paliativos

Outro dos argumentos utilizados é o dos cuidados paliativos. Jerónimo de Sousa, por exemplo, apelou “não matem, cuidem”. A despenalização da eutanásia não invalida a aposta que tem de ser feita nos cuidados paliativos?

De todo. Na Bélgica, um dos países que é sempre referenciado como um caso de estudo, cerca de 74% das pessoas que solicitaram a antecipação da sua morte recorrendo à eutanásia estavam em cuidados paliativos. E a Bélgica é um dos países da Europa onde o sistema de cuidados paliativos é mais qualificado e com maior cobertura da população. É verdade que, em Portugal, a cobertura de cuidados paliativos no Sistema Nacional de Saúde (SNS) é muito escassa. É verdade. Tem de haver um investimento muito sério no reforço da oferta de cuidados paliativos no SNS, é verdade. Não é verdade que uma coisa seja alternativa à outra.

A estas pessoas que não querem morrer em agonia, e que não querem morrer adormecidas em cuidados paliativos, qual é a resposta que se lhes dá? 

Há muitas pessoas que estão em situação terminal e que não querem, por razões das suas visões da vida, ser submetidas a cuidados paliativos. Querem manter um nível de consciência, de autonomia, de relacionamento com familiares e amigos, que os cuidados paliativos intensos não permitem. A estas pessoas que não querem morrer em agonia, e que não querem morrer adormecidas em cuidados paliativos, qual é a resposta que se lhes dá? Neste momento, é a resposta da lei do Código Penal, segundo o qual não podem ver a sua morte antecipada porque isso considerado um crime. É por isso mesmo que me bato pela despenalização.

E, já agora, ainda outro argumento. Às pessoas que dizem que enquanto não houver cobertura total de cuidados paliativos não deve haver despenalização da morte assistida, vale a pena perguntar-lhes se houvesse essa cobertura se seriam favoráveis à despenalização. Certamente que não. É um pretexto argumentativo, não é um um argumento para levar a sério nesta matéria.

Por que é que uma pessoa que se quer despedir da sua vida, de uma situação de sofrimento e de degradação física irreversível, com um clima de relacionamento o mais normal possível, deve ser impedida de ter essa vontade respeitada?

E os cuidados paliativos significam a eliminação total da dor?

Tem havido um progresso muito significativo dos cuidados paliativos no sentido de diminuir significativamente o sofrimento físico das pessoas. Tem havido, ainda bem que é assim, deve continuar a haver. O Estado deve assumir uma responsabilidade grande para que os cuidados paliativos de última geração sejam o mais possível para a generalidade das pessoas. Mas é verdade que, em muitos casos, a possibilidade de eliminar o sofrimento físico insuportável não é conseguido. Muitas vezes, como disse anteriormente, o preço a pagar pela eliminação da dor é o adormecimento, é a perda de capacidade de estar ativo para se relacionar com as pessoas. Por que é que uma pessoa que se quer despedir da sua vida, de uma situação de sofrimento e de degradação física irreversível, com um clima de relacionamento o mais normal possível deve ser impedida de ter essa vontade respeitada? Não vejo nenhuma razão para isso.

Encontra neste debate alguma hipocrisia da parte de quem se manifesta contra a eutanásia ao querer impedir uma decisão que é pessoal e que apenas ao próprio diz respeito?

Não faço nenhum juízo de intenções. Egoísmos e altruísmos há em toda a sociedade. Não acho que seja uma questão de má vontade. É uma questão de visão das coisas. Pessoalmente entendo que não há nenhuma razão do ponto de vista criminal para manter a penalidade que consta hoje do Código Penal que é a de sujeitar um médico que vai até ao fim no apoio ao seu doente e que considera, em consciência, que aquela pessoa não tem nenhuma alternativa efetiva nos meios de saúde que existem, e ajuda essa pessoa a por fim a uma existência que já é violenta, não deve ser sujeito a pena de prisão. É tão simples quanto isso. Há pessoas que acham que sim, por razões de diversas, desde razões religiosas, até filosóficas ou políticas. Respeito esses pontos de vista, mas não estou de acordo com eles.

Como vê a tomada de posição do grupo Mello Saúde que afirmou, caso a despenalização da eutanásia venha a ser aprovada, que não será praticada nos seus hospitais?

Não é a primeira vez que isso acontece. No que diz respeito à Introdução Voluntária da Gravidez (IGV), houve entidades privadas que disseram a mesma coisa. E esse processo acabou por motivar decisões judiciais no sentido de mandar aplicar a lei. No mínimo, é de duvidosa legalidade que uma entidade privada que trabalha no âmbito do sistema de saúde e que está licenciada pelas autoridades competentes para praticar atos clínicos se ponha de fora. Outra coisa diferente é os médicos, individualmente, terem objeção de consciência. Podem ter, claro. Isso é uma decisão individual. Que um hospital se negue a cumprir a lei, mesmo havendo médicos disponíveis para a aplicar, é de duvidosa legalidade. Mas há uma outra questão: é que aqueles que vêm dizer que a despenalização da morte assistida poderia fomentar o negócio da morte têm nesta posição dos hospitais da CUF um desmentido absoluto.

Afinal de contas, aqueles que aparentemente mais querem ter uma política de lucro na área da saúde são os primeiros a dizer que não vão praticar estes atos. Tudo isto é bastante contraditório. Não se deve, para já, dar muita atenção a isso porque uma vez que uma lei venha a ser aprovada ela tem que se aplicar a todo o território nacional.

 Este não é um debate religioso. Este é um debate sobre direitos, liberdades e garantias

O José Manuel Pureza é a prova de que é possível ser católico e defender visões que não são propriamente a posição oficial da Igreja, como é o caso da eutanásia. É uma raridade ou há muitos mais católicos a pensar da mesma forma?

Felizmente a Igreja em Portugal, como em muitos países, é uma realidade plural. Há, em Portugal como no resto do mundo, neste debate, posições de católicos e de pessoas crentes das outras religiões, que são diversas. Este não é um debate religioso. Este é um debate sobre direitos, liberdades e garantias. É um debate sobre tolerância. É nesse plano que nós nos devemos colocar. Naturalmente que há pessoas que, em virtude da sua crença, entendem que devem ter uma posição. Pior é quando, por força de uma determinada crença, não só se tem uma posição como se quer impor essa posição aos outros. Isso é que eu não sou capaz de aceitar. Muito menos capaz de aceitar que se queira impor a sua posição aos outros através do Código Penal. Felizmente há pluralidade de posições e quero sublinhar justamente o bom que é haver uma comunidade de pessoas crentes onde há várias posições.

Ainda assim, a Igreja decidiu fazer campanha a favor do referendo. Como se sente ao ver a Igreja a mobilizar-se desta forma?

Fico bastante surpreendido, por um lado, esperançado, por outro. Surpreendido porque a Igreja, através da sua conferência episcopal, declarou sempre, mas sempre, que a vida não é referendável. Ao dar este passo, no sentido de apoiar a pretensão de alguns movimentos que defendem o referendo, está a negar, na prática aquilo que foi dizendo ao longo de muitos anos. O que uma causa esperança é que afinal de contas quando a Igreja quer pode-se mobilizar. Espero que seja capaz de se mobilizar, com a mesma intensidade, com o mesmo fervor, com a mesma garra, em muitos outros assuntos da sociedade portuguesa onde há injustiça, opressão, onde há maus-tratos quotidianos das pessoas mais pobres.

Estou convencido de que se a Igreja quiser pode mobilizar-se. E este momento pode ser um momento de evidência disso. E eu cá estarei, naturalmente, como membro da Igreja para também mostrar que quando a Igreja quer se mobiliza. É preciso é saber para que é que se mobiliza.

O João Semedo foi um testemunho marcante na mobilização e defesa pela despenalização da morte assistida. Quão presente está João Semedo no combate que agora se faz sem ele fisicamente?

Essa é uma pergunta mais de natureza pessoal… Evidentemente que este movimento pela despenalização é um movimento de muita gente, de muitas idades, convicções e trajetórias pessoais. Mas é também evidente que tem rostos mais significativos. João Semedo foi até ao último momento da sua vida um combatente de grande força, convicção, entusiasmo e de diálogo no sentido da despenalização. A título pessoal, e também no Bloco de Esquerda, o testemunho do João está evidentemente muitíssimo presente. A maneira como se entregou à defesa inteligente, dialogante, aberta, séria, rigorosa, como médico, como pessoa e como político, a esta causa é evidentemente um testemunho que nunca pode ser esquecido.

E o José Manuel Pureza alguma vez teve dúvidas relativamente à sua posição sobre a eutanásia?

Na verdade, não. Dúvidas nunca as tive. Porque creio que a decisão no essencial relativa ao respeito pelas posições, pelo clamor de quem entende que a sua morte deve ser antecipada para que a sua dignidade seja plenamente respeitada… essa dúvida nunca tive. Evidentemente que dizer isto não é dizer que é uma decisão simples. Não é dizer que esta é uma decisão sem sombras. Ninguém, quando discute as questões da vida ou da morte, deve ter uma tranquilidade absoluta porque esta é uma questão complexa. O que eu tenho procurado, e vou continuar a procurar, no meu posicionamento nesta matéria, é respeitar o mais possível o bom que é termos uma sociedade pluralista, legislar para todas as perspetivas, respeitando-as. É o meu desígnio principal e nesse espírito não tenho dúvidas.

Mas é evidente que é uma questão complexa, que é muito desafiante, exige muito estudo, muito conhecimento e, sobretudo, uma grande capacidade de ouvir as pessoas que experimentam este drama na sua vida concreta. Essa é que é grande questão. Qual é capacidade de quem toma estas decisões legislativas de ouvir as pessoas que estão envolvidas, atravessadas por experiências desta natureza. 

No fundo, colocar-se na pele do outro.

Exatamente. É sempre impossível, porque a experiência do limite da vida, só quem a tem é que a tem. Mas ter a abertura de espírito para respeitar essas circunstâncias escrupulosamente é uma exigência de grande intensidade.

Ser católico nunca interferiu com a militância no Bloco de Esquerda (BE)? Pergunto não só pela questão da eutanásia, mas também por outras questões como seja o casamento e a adoção por casais homossexuais.

De todo. Nunca. O princípio tem sido sempre o mesmo. Sou uma pessoa crente, que tem a experiência da fé, faz parte da minha identidade e não me consigo ver sem essa dimensão. Isso para os meus camaradas nunca constituiu qualquer tipo de problema e a minha militância política tem procurado os instrumentos, os veículos, as intermediações para, diante de cada problema concreto, aplicar aquilo que aprendi do Evangelho, de Jesus. São essas as minhas convicções. Não tenho tido nenhum problema de conflito entre a minha fé e a minha experiência política.

Notícias ao MinutoJosé Manuel Pureza © Global Imagens

Mudando a agulha para o panorama político atual. As eleições ditaram um Parlamento novo. Entraram três novas forças políticas, por um lado. Por outro lado, não há um acordo escrito que dava ‘corpo’ à Geringonça na legislatura passada. É agora mais difícil negociar com o PS?

O BE, no próprio dia das eleições diante dos resultados, manifestou-se totalmente disponível para negociar com o PS um acordo escrito porque entendemos que a experiência dos quatro anos anteriores tinha sido positiva. Isto é, havia clareza sobre quais é que eram os propósitos de uma negociação, havia vinculação de ambas as partes no cumprimento daquilo que tinha sido acordado. O PS não quis assinar esse acordo escrito e tem toda a legitimidade para não querer, foi o partido mais votado. Mas isso torna as negociações caso a caso muito mais incertas e muito menos vinculadas a um programa de quatro anos. Hoje em dia, quaisquer negociações pontuais não têm qualquer amarra a um acordo, e isso acho que é bastante negativo.

E assim sendo, o BE também será mais exigente nas negociações?

O grau de exigência é o mesmo. Veja-se o que aconteceu no último Orçamento [do Estado]. O grau de exigência é o mesmo, mas o caminho gradual que se vai traçando de quatro anos, esse é que não existe. Porque não há nenhum acordo para quatro anos. Cada negociação vale por si. Pode haver avanços, pode haver retrocessos. O PS neste momento tomou a decisão de não fazer esse caminho.

O debate do Orçamento do Estado aqueceu, digamos assim, com a redução do IVA da eletricidade. Como é que havendo uma maioria que queria, no essencial, o mesmo, não se conseguiu entender?

O BE está muito à vontade nessa questão porque foi um partido que apresentou uma proposta mais recuada do que aquela que fazia parte do seu programa eleitoral. O nosso compromisso era de baixar para os 6%, a taxa mínima, porque entendemos que a eletricidade é um bem essencial. Sendo um bem essencial, não há nenhuma razão para não ter a taxa mínima.

A verdade é que apresentámos uma proposta mais recuada, justamente para potenciar as hipóteses de negociação com o PS. O PS nunca quis negociar essa proposta e teimou na manutenção do IVA nos 23%, tal como a Troika e o governo de Passos Coelho estabeleceram. Quis manter aquilo que tinha herdado da Troika. Nós, apesar de tudo isso, que estaríamos perfeitamente disponíveis para votar a favor de todas as propostas da descida do IVA, viessem de onde viesse. E foi o que fizémos. As outras forças políticas não o fizeram. Lá saberão.

Cada força política saberá a razão pela qual não quis aceitar as condições das outras forças políticas. De todo o espectro parlamentar, o BE foi a única força que votou todas as propostas de descida do IVA e não colocou nenhum obstáculo a que nenhuma proposta pudesse vingar.

O PCP acusa o PSD de ter protagonizado uma farsa neste assunto e o Bloco de Esquerda nela ter participado. O PSD, por sua vez, diz que foi sempre coerente.

O PCP dirá o que dirá. O PSD dirá o que dirá.

E no final o IVA continua nos 23%…

Volto a dizer, o BE, de todas as forças políticas, foi a única força que votou a favor de todas as propostas de descida do IVA da eletricidade e foi a única força que não criou quaisquer obstáculos a que nenhuma proposta fosse aprovada. Os outros poderão dizer o que quiserem mas esta é a verdade dos factos.

É uma batalha que o Bloco de Esquerda não abandonará?

Certamente que não. Faz parte do nosso compromisso eleitoral. É uma questão de justiça, estamos com uma das eletricidades mais caras da Europa. E não me venham dizer, por favor, que é uma questão ambiental porque a eletricidade pode ser produzida de muitas maneiras. O IVA da eletricidade não tem nada a ver com o peso relativo das renováveis na produção de eletricidade. Mal seria se fizéssemos pagar as pessoas mais pobres de uma maneira desproporcionada sobre aquilo que são as necessidades de correção ambiental em Portugal. Não se impõem obrigações vinculativas a entidades que têm mundos e fundos e aos pobres é que se vai impor? São argumentos que não valem. Por todas razões e mais alguma acho que devemos manter essa proposta e vamos, naturalmente, continuar a batalhar por ela.

Que outros pontos de tensão com o PS antevê no decorrer desta legislatura?

Há um tema principal que vem da legislatura passada que é o da legislação laboral. O BE tem-se batido por uma alteração significativa das leis do trabalho no que diz respeito a todas as normas que foram introduzidas pela troika durante o governo PSD/CDS. Não vemos nenhuma razão para que um governo do PS não adote esse prioridade. Até agora o Governo tem querido manter essa situação (trabalho por turnos, contratação coletiva,…). O Governo tem querido manter as regras que decorreram da Troika. E faz isso cedendo o mais possível, de uma forma muito pouco avisada, às confederações das entidades patronais. Talvez seja esse o ponto de discórdia principal entre o BE e o PS.

Acredita que a legislatura vai chegar ao fim?

Não se trata de acreditar ou deixar de acreditar. Sei lá o que vai acontecer no dia de amanhã. Não é uma questão de fé. É uma questão de determinação. A legislatura durará aquilo que for determinado pela inter-relação entre as várias forças. Da nossa parte, o que posso dizer é que estamos totalmente determinados, em cada dia da legislatura até ao seu fim (logo se verá qual é o seu fim) estarmos plenamente determinados na construção dos nossos compromissos e dialogar com todas as forças políticas à esquerda para que esses compromissos possam ser efetivados. Demos lição nos últimos quatro anos, na legislatura anterior, de que não desistiríamos de nenhum compromisso nem de nenhuma forma de diálogo. E vamos continuar a manter assim até ao último minuto.

As eleições de outubro ditaram a entrada de três forças políticas a um Parlamento que é, indiscutivelmente novo, e com novos desafios. Como é que o Parlamento deve lidar com novos desafios, nomeadamente com o crescimento de declarações populistas, racistas e xenófobas de um deputado em particular?

O Parlamento tem uma enorme responsabilidade de defender a democracia diante daqueles que a querem diminuir ou desqualificar. Deve-o fazer com inteligência, com muita determinação e deve-o fazer sendo escrupuloso no cumprimento daquilo que são os seus deveres como órgão de representação populares. O crescimento da extrema-direita é talvez o maior desafio que se coloca à democracia portuguesa. Creio que o Parlamento tem que saber honrar as suas responsabilidades. Desde que o Parlamento seja capaz de ser inteligente na maneira como aborda declarações incendiárias por parte de dirigentes de extrema-direita e desde que seja capaz de criar condições para que as pessoas nas suas vidas tenham, não apenas rendimento mas direitos que as dignifiquem. Creio que assim estaremos a cortar o caminho à extrema-direita.

A extrema-direita alimenta-se de ressentimento, de desilusão, de manipulação da realidade e o Parlamento tem de ser capaz de ter isso tudo em atenção e dar resposta certa em termos de políticas e direitos sociais, de qualidade de vida das pessoas, de respeito pela vida das pessoas. Isso é a resposta que o Parlamento tem de dar. E, ao mesmo tempo, tem de ser capaz de não cair nas armadilhas de declarações falsas e incendiárias por parte de pessoas cujo o único propósito é desqualificar o Parlamento e a democracia.

Por exemplo, quem agora vem dizer que a despenalização da morte assistida ser decida no Parlamento não pode ser aceite porque isso é feito por um conjunto de deputados, está a a utilizar a linguagem da extrema-direita, está a desqualificar o Parlamento. A linguagem da extrema-direita não vem só dos líderes assumidos da extrema-direita. Vem de muito mais gente. E o Parlamento tem de saber ser firme na defesa daquilo que é a sua centralidade numa democracia representativa como é a nossa.

E foi uma decisão inteligente deixar cair o voto de condenação a André Ventura aquando das afirmações sobre a deputada Joacine Katar Moreira?

Não se deixou cair nenhum voto, isso não é verdade. O que aconteceu foi puramente o seguinte: no momento em que a questão se colocou, a sessão plenária seguinte em que havia lugar à apresentação de votos era dali a uma semana e meia. O BE tomou a iniciativa de colocar a questão no primeiro momento em que os grupos parlamentares e deputados estiveram reunidos em conferência de líderes. E nesse momento houve uma condenação inequívoca daquilo que tinham sido as declarações inqualificáveis sobre a deputada Joacine Katar Moreira. Seria errado estar à espera uma semana e meia para então colocar a questão. A questão era da natureza imediata da reação e uma reação que fosse clara de condenação. Isso tudo foi conseguido.

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