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Vozes ao Minuto: "Os negacionistas deviam dedicar-se mais à religião do que à ciência"

Vozes ao Minuto: O geofísico Pedro Matos Soares é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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Melissa Lopes
22/10/2019 09:40 ‧ 22/10/2019 por Melissa Lopes

País

Alterações Climáticas

O aquecimento global e as alterações climáticas estão longe (a décadas) de ser novidade. Apesar disso, só agora, e de uma forma abrupta, penetraram na agenda dos partidos políticos.

Para Pedro Matos Soares, ainda que isso tenha acontecido de uma forma oportunista, é positivo que se esteja a debater as alterações climáticas e formas de as mitigar. Contudo, faltam medidas concretas. "Precisamos de ver o que é que os políticos preconizam para a mitigação e adaptação às alterações climáticas", diz, em entrevista ao Notícias ao Minuto, publicada num dia em que um estudo dá conta de que centenas de cidades, nomeadamente portuguesas, já sentem as alterações climáticas mas faltam medidas.

A conversa passeou-se, então, pela estrada das alterações climáticas, as suas consequências já visíveis, as que se projetam, contado ainda com um desvio para colocar os negacionistas no seu lugar, o lugar da religião, que nunca se pode cruzar com o caminho da ciência. 

Outro desvio na conversa deu-se para abordar a desinformação potenciada pelas redes sociais, espaço de democratização do conhecimento, não fossem as pessoas mal intencionadas e as campanhas de manipulação. E a encruzilhada dos media? Outro trilho percorrido. 

No final, todos os caminhos vão dar a uma certeza: o clima está em mudança  e isso ameaça a nossa sociedade. 

O que podemos fazer, em primeiro lugar, é verdadeiramente descarbonizar a sociedade

Recentemente a ONU confirmou o pior cenário possível no que diz respeito às alterações climáticas, Portugal incluído. Chegados aqui, o que é podemos fazer face às previsões?

A reunião da ONU é precisamente para urgir uma tomada de decisões políticas muito prementes, no sentido de reduzir esta taxa de emissões de gases de estufa. O que podemos fazer, em primeiro lugar, é verdadeiramente descarbonizar a sociedade. Ou seja, transformar a nossa sociedade, do ponto de vista das fontes de produção de energia das indústrias que são mais poluentes. É essa a transformação que precisamos urgentemente - transformar uma sociedade não emissora de gases de estufa para podermos, primeiro, mitigar este problema, não deixar que ele continue e que agrave.

No contexto português, somos um pequeno contribuinte para as emissões de gases de estufa, mas também somos um contribuinte. Além disso, somos um país que tem a capacidade de ter negociação política na arena geopolítica internacional e estamos no Mediterrâneo. E sendo o Mediterrâneo uma das áreas mais vulneráveis às alterações climáticas no sul da Europa, existe uma premência de levarmos para a UE, para Comissão Europeia, uma força de negociação para mudarmos radicalmente e muito mais depressa o que são as emissões da Europa. E depois contagiar este movimento de redução de emissões para o resto do mundo. A UE é um bloco económico muito importante e tem a sua influência no mundo. Isto do ponto de vista político.

E do ponto de vistas das ações concretas?

Devemos transformar o nosso setor energético – que é o que contribui mais para as emissões – e o setor dos transportes. Temos de descarbonizar. O Governo português tem – e bem – um roteiro de descarbonização até 2050. Ou seja, [o objetivo] de sermos uma sociedade de carbono zero, emitirmos tantos gases de estufa (neste caso dióxido de carbono) como absorvemos. Devíamos acelerar esse processo. Devido a todas estas evidências que este processo de aquecimento e da ocorrência de fenómenos extremos que nos estão a assustar. Os portugueses hoje em dia estão muito mais conscientes de que algo está a mudar. Ainda agora tivemos este furacão [Lorenzo] nos Açores que esteve na categoria 5.

O mais forte alguma vez registado nos Açores.

Este furacão que passou ao largo das Flores foi o furacão mais forte que tivemos nas nossas proximidades. Nunca um furacão tinha chegado à categoria 5 tão a leste no Atlântico. No ano passado o Leslie. Temos tido ondas de calor, secas... Estes fenómenos estão a mostrar às pessoas que estamos de facto num clima em mudança e que esse clima ameaça a nossa sociedade. Desse ponto de vista, temos de acelerar o processo de transição energética. Temos de encerrar as centrais a carvão, implementar mais ferrovia, mas uma ferrovia que tem de ser alimentada a energia de fontes renováveis e não por fontes convencionais a combustíveis fósseis.

Temos agora evidências de que esta subida do nível médio do mar, no seu extremo, pode ultrapassar os 2 metros até ao final do século

No que diz respeito às consequências que já são visíveis e às que se preveem, podemos dizer que Portugal vai ficar debaixo de água?

Não, isso é um grande exagero. Percebo que exista alguma polémica em relação a essa questão. Nós somos um país costeiro e 80% da população está nessas zonas. Obviamente que tudo o que tem a ver com consequências costeiras atinge uma grande parte da nossa população e da nossa sociedade. A subida do nível médio do mar é muito preocupante porque as projeções apontavam para uma subida de 80 centímetros. Mas estes 80 centímetros não podem ser vistos como apenas 80 centímetros. É uma subida e depois temos mais tempestades. Tendo mais tempestades, temos mais o que se chama sobrelevação marítima. Ou seja, podemos ter mais inundações costeiras. E depois temos a ondulação também. Se tivermos mais fenómenos extremos, temos mais vento e temos mais ondulação. A subida média do nível do mar tem que ser vista neste contexto. Para além da subida do nível, vamos ter mais extremos. Tudo isto acarreta mais consequências de erosão costeira, vai obrigar a termos medidas de proteção costeira mais resilientes. Vamos estar aqui a combinar uma subida do nível médio do mar com uma expectável subida da frequência e intensidade de fenómenos extremos.

Recentemente saiu um special report do IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas] sobre os oceanos e a criosfera. Uma coisa que se reviu foi a magnitude da subida do nível médio do mar. Os 80 cm que referi anteriormente era a projeção do último relatório do IPCC, mas estudos mais recentes estão a mostrar que existe uma aceleração de alguns dos processos que levam à subida do nível médio do mar, nomeadamente uma aceleração da fusão da Antártida, da Gronelândia e dos glaciares. Ora, se esses processos de fusão são mais rápidos, podemos esperar uma subida do nível médio do mar superior. Se tivermos um aquecimento mais forte dos oceanos, também temos mais expansão térmica.

Construir um aeroporto ao lado de uma das reservas mais importantes de migrações de aves parece-me, de base, um erroE isso quer dizer que a subida média do nível médio do mar poderá ser superior aos tais 80 cm?

Temos agora evidências de que esta subida do nível médio do mar, no seu extremo, pode ultrapassar os 2 metros até ao final do século. Mas é no seu extremo, a probabilidade é reduzida. Estes 2 metros, com depois uma sobrelevação marítima quando vem uma tempestade de 2 ou 3 metros, depois vem uma ondulação de 10 metros, repare. Estamos a falar de muitos metros e de fatores muito danosos e de grande impacto na nossa costa, onde temos muitas infraestruturas. Se tivermos essa subida de 2 metros, temos áreas importantes que serão inundadas. Basta pensar no aeroporto do Montijo. É este o contexto do alarmismo relativamente à subida do nível médio do ar.

Aeroporto que ainda não existe. Que opinião tem da eventual construção do aeroporto do Montijo?

Construir um aeroporto ao lado de uma das reservas mais importantes de migrações de aves parece-me, de base, um erro. Mas não sou especialista nem em aviação nem em migração de aves. Do ponto de vista das alterações climáticas, o que me parece é que as cotas a que se vai ser construído o aeroporto do Montijo não acautelam suficientemente a questão da subida do nível médio do mar e dos fenómenos extremos que podem provar grandes sobrelevações marítimas, a questão dos tsunamis. Há uma série de factores que podem levar a que, digamos, o tempo de retorno de inundações do eventual aeroporto seja muito mais curto do que o estudo de impacte ambiental indicou. E por isso, tenho bastantes reservas em relação à localização desse mesmo aeroporto.

Não podemos projetar barragens para o futuro a pensar que elas vão resolver os problemas

Outra das consequências das alterações climáticas que Portugal já está a sentir é a seca. Como é que a sociedade se pode preparar para o prolongamento desse cenário ao longo das próximas décadas?

Nos últimos 30 anos tínhamos mais ou menos uma seca por década em Portugal. E agora, vamos ver, parece que vamos ter duas ou três. As projeções dos modelos físicos, dos modelos climáticos, que são baseados nas equações da física e do clima e através das quais projetamos o futuro do clima, dizem que podemos ter três, quatro anos de seca por década. E isto é muito significativo. Porquê? Porque as projeções mostram que vamos ter perdas de precipitação muito substanciais.

As projeções para o século XXI são de perdas de precipitação anual de 40 % no sul de Portugal, 20% no Centro, e menos 10% no Norte. Ora, e tivermos perdas de precipitação, se tivermos temperaturas mais elevadas, temos mais evaporação, quer dizer que vamos ter um défice de água no solo muito maior. Quer dizer que vamos ter muito menos água no futuro. E já temos dificuldade de abastecimento de água de algumas regiões, as nossas albufeiras estão em quotas relativamente baixas. Imagine num futuro em que vamos ter mais persistentemente seca, mais calor, mais necessidade de arrefecimento … O nosso sistema de gestão de água tem de ser redesenhado para estas despenalidades que vamos começar a sentir nas próximas décadas.

E as barragens, afinal, são ou não são um problema?

As barragens são importantes. Precisamos delas tanto para o recurso energético hídrico, uma boa fatia da nossa produção energética é hidroelétrica. Se queremos descarbonizar a nossa sociedade, não podemos fechar as nossas barragens. Não são per si não são um problema. O que se passa é que não podemos projetar barragens para o futuro a pensar que elas vão resolver os problemas. Temos que estudar as soluções, a criação ou não de novas barragens mediante os recursos de água que vamos ter no futuro e a sua boa gestão. Não podemos dizer que vamos resolver os problemas retendo mais água em barragens. Não. Porque depois podemos não ter água para essas mesmas barragens, temos uma evaporação que vai criar sempre perdas. E temos os ecossistemas. Temos um país que já tem imensas barragens, as alterações climáticas vão ser muito danosas para os nossos próprios ecossistemas. Não podemos construir barragens, se não ficamos sem nada. Ficamos com um país que é só barragens e só problemas.

Os políticos agora de repente, entre estas duas eleições, perceberam que se podia ganhar votos com estas declarações de preocupação em relação às alterações climáticasConsidera que têm faltado políticas concretas de combate às alterações climáticas? Agora todos os partidos políticos falam no assunto, está na moda, mas há uns anos não, e no entanto os alarmes já soavam …

[Os alarmes] já soavam há muito tempo. Trabalho nesta área há muito tempo, há muito tempo que faço conferências, seminários, mostro os resultados dos nossos estudos feitos na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, há muito tempo que temos estes modelos físicos do clima global e do clima regional e há muito tempo que a comunidade científica alerta para este problema. Tanto em Portugal como em muitas partes do mundo, foi muito tardiamente que os políticos começaram a preocupar-se com estas questões. Depois das eleições europeias, vimos que todos os partidos começaram a falar de alterações climáticas. E, infelizmente, é pelas más razões. Foi um game changer, foi uma coisa súbita. E o aquecimento global não foi uma coisa súbita ou abrupta. Desde os anos 90 que se fala desta questão. Desde o século XIX que se fala de aquecimento global.

Os políticos agora de repente, entre estas duas eleições, perceberam que se podia ganhar votos com estas declarações de preocupação em relação às alterações climáticas. Do ponto de vista político, parece um pouco oportunístico, mas do ponto de vista da minha preocupação, ainda bem que os políticos estão a começar a falar disto, ainda bem que estão a começar a ser questionados pela sociedade e pelos media. Ainda bem que, pelo menos no debate político, começa a surgir esta discussão. Mas precisamos de medidas concretas, precisamos de ver o que é que os políticos preconizam para a mitigação e adaptação às alterações climáticas. Tanto do ponto de vista nacional como do ponto de vista da nossa inserção na UE. Infelizmente não temos visto muito. Tenho seguido o debate político e não tem sido assim tão esclarecedor em relação a essas medidas necessárias.

Gostava que os partidos tivessem a preocupação de elaborar prioridades e tivessem uma visão da nossa sociedade que tem de verdadeiramente incorporar na decisão política a mitigação e a adaptação a este processo de aquecimento global. Têm de ter essa mesma prioridade na ação política, mas com estudos científicos sérios, que nós possamos pôr os nossos melhores investigadores, cientistas na arena internacional para estudar soluções. Era isso que eu gostava, que houvesse estudos cientificamente criteriosos, até do ponto de vista económico. Que possamos, quando se diz que vamos construir uma barragem num determinado local, estudar os benefícios do ponto de vista ambiental, os prejuízos, e também do ponto de vista económico.

A medida da Universidade de Coimbra [de eliminar carne de vaca das cantinas] parece-me uma medida simbólica que eu não acho que seja muito consequente e muito eficaz. Este tipo de medidas abruptas tem um efeito imediato que às vezes prejudica a própria intençãoComo olha para o sinal que a Universidade de Coimbra deu ao eliminar o consumo de carne de vaca das suas cantinas? É algo que devia ser tido como exemplo? 

A pecuária, em termos globais, tem um impacto relevante nas alterações climáticas. Não há dúvida sobre isso. A pecuária tem associada a toda a sua cadeia de produção (porque a pecuária não é só ter animais, é muito mais do que isso) emissões que são relevantes. Se queremos mitigar as emissões, temos de atuar em todos os setores. O setor da pecuária também tem de se adaptar de modo a emitir menos gases. Não tenho qualquer dúvida. Essa medida da Universidade de Coimbra parece-me uma medida simbólica que eu não acho que seja muito consequente e muito eficaz. Este tipo de medidas abruptas tem um efeito imediato que às vezes prejudica a própria intenção.

Porque geram polémica?

Geram polémica e, às vezes, extremam-se mais as pessoas com visões diferentes. As pessoas que são muito a favor do consumo de carne e as pessoas que estão pouco preocupadas com as alterações climáticas ainda se desvinculam mais dessa necessidade porque sentem que é um ataque pessoal.

E isso foi notório neste caso concreto.

Pois. E, por outro lado, as pessoas que são vegetarianas, que não consomem carne, e outro grupo (não estou a dizer que são coincidentes), as pessoas que estão preocupadas com as alterações climáticas mas que, às vezes, não conseguem projetar bem as consequências de medidas isoladas, têm a tendência a extremar-se ainda mais, a aplaudir vivamente sem fazer uma análise fria dessa tomada de ação. No contexto em que nós vivemos, extremarmos posições, criarmos uma clivagem na sociedade, às vezes é mais prejudicial para o bem comum, que é conseguirmos ter um mundo habitável para as próximas gerações.

Esta conversa dos negacionistas, das pessoas contra as alterações climáticas, é um absurdo

E de repente o debate é esse, uns contra os outros?

Exatamente. A medida em si até pode ter um impacto pequenino positivo, que é infinitamente pequeno, mas, por outro lado, pode ter um impacto na articulação da sociedade que vai prejudicar mais. Não estou a dizer que, em concreto, é o que acontece. Eu só teria cuidado com este tipo de medidas. Tem de haver uma visão mais geral e com alguma capacidade de conciliação. Caso contrário, as pessoas desinteressam-se. Neste momento temos tanta urgência em coligir as pessoas para termos uma tomada de ação política desde individual à coletiva, não podemos andar a criar mais clivagens. Esta conversa dos negacionistas, das pessoas contra as alterações climáticas, é um absurdo. Não há aqui o ser contra ou ser a favor. É simplesmente ter a capacidade de ler um texto científico e perceber que as alterações climáticas é um processo que estamos a viver e que se projeta muito nefasto para a sociedade do século XXI.

As alterações climáticas não têm nada a ver com fé. Não têm nada a ver com acreditar ou desacreditar. Os negacionistas deviam dedicar-se mais a religião do que à ciência Falou dos negacionistas. Há pouco tempo ficámos a conhecer que uma climatologista (Judith Curry) lançou um livro em que coloca em causa a ação humana nas alterações climáticas. 

As alterações climáticas não são uma questão de fé. As pessoas que ainda tentam ter algum protagonismo na sociedade dizendo-se contra uma coisa que é um consenso infelizmente continuam a ter atenção. As alterações climáticas não têm nada a ver com fé. Não têm nada a ver com acreditar ou desacreditar. As pessoas têm de formar a sua opinião com sentido crítico e capacidade de estudo. Têm de ler um texto e ter a capacidade de destilar informação que é produzida por milhares e milhares de cientistas que trabalham nesta área há muitas décadas e têm que se afastar um bocadinho das suas crenças.

O efeito de estufa está conhecido desde o século XIX. Do ponto de vista físico, não sobejam quaisquer dúvidas que, infelizmente, depois da revolução industrial, com a queima dos combustíveis fósseis, fomos aumentando a uma taxa inacreditável as emissões de gases de estufa e que hoje temos concentrações de CO2 nunca vistas numa série de um milhão de anos na Terra - e o Homem está aqui há 200 mil anos, não está há mais. O homo sapiens tem 200 mil anos. Neste momento temos cerca de 413 partes por milhão de CO2 na atmosfera. Olhamos para uma série de um milhão de anos, nunca passámos dos 300. Estamos muito para lá do que é são as variações de CO2 na atmosfera normais. E quando olhamos para a subida do nível médio do mar, o aquecimento global, o aquecimento dos oceanos, da atmosfera, verificamos que tudo está  a ocorrer a uma taxa nunca vista e que não se encerra na variabilidade climática normal. Os negacionistas deviam dedicar-se mais a religião do que à ciência.

Então não faz qualquer sentido o argumento dos negacionistas de que o aquecimento global é natural e cíclico?

Não, claro que não. Quando estamos a falar de aquecimento global estamos a falar de aquecimento global antropogénico. Sempre houve momentos em que, à escala geológica, a temperatura climática cresceu e diminuiu. O que se passa é que atualmente estamos a viver um processo muito mais acelerado do que alguma vez foi monitorizado na Terra.

Para lá do que seria natural ... 

Exatamente. Para lá do que a tal variabilidade natural do sistema climático. A única maneira de explicarmos esta taxa de aquecimento é precisamente introduzindo os gases estufa de origem humana. É a única explicação para esta variabilidade climática. Os modelos climáticos mostram isso muito bem. Integramos os modelos climáticos sem a atividade humana (sem as emissões depois da revolução industrial até aos dias de hoje), os modelos dão uma estabilização da temperatura, até uma ligeira diminuição. Se introduzirmos o efeito de estufa de origem humana, vimos que os modelos reproduzem muito bem esta aceleração na temperatura média global.

Numa era de fake news, as pessoas têm de preocupar-se em se informar mas também em terem sentido crítico em relação à informação que recebem. Não é só porque uma pessoa qualquer dá uma opinião que a devemos levar em conta. Há pessoas que dizem muita parvoíce Mas esta desinformação que existe sobre as alterações climáticas resulta em que, hoje em dia, o cidadão comum já não saiba o que é que é verdade ou mentira.

Sim, é verdade. Temos alguns negacionistas em Portugal, ainda, mas são muito pouco sólidos do ponto de vista científico. São pessoas que nunca trabalharam na área e que não têm provas dadas. Dizem o contrário de 99% dos cientistas. Qual é a base? Numa era de fake news, as pessoas têm de preocupar-se em se informar mas também em terem sentido crítico em relação à informação que recebem. Não é só porque uma pessoa qualquer dá uma opinião que a devemos levar em conta. Há pessoas que dizem muita parvoíce.

Se tivesse 10 minutos com Donald Trump, talvez o negacionista mais conhecido do Planeta, o que lhe diria para tentar convencê-lo de que o aquecimento global e as alterações climáticas são uma realidade?

Seria um enorme desprazer estar com o senhor Trump, mas se assim fosse, a minha capacidade de o convencer fosse do que fosse era imensamente diminuta. Porém, em face da gravidade, quer das alterações climáticas, quer das responsabilidades que Trump tem no impasse que se vive na ação política global necessária, dir-lhe-ia que muito do desenvolvimento de que os EUA desfrutam se deve ao conhecimento científico e tecnológico, o mesmo que não tem quaisquer dúvidas de que o aquecimento global é uma realidade e cuja origem é a atividade humana. E mostrar-lhe-ia essas mesmas evidências científicas. 

As redes sociais vieram baralhar um bocadinho, são teorias da conspiração por todo o lado, nomeadamente sobre o aquecimento global. 

Há uns anos, pensávamos que agora é que ia ser a grande democracia porque as pessoas poderiam exprimir-se livremente e poderiam tornar todo o processo do conhecimento mais democrático. Mas isso era se as pessoas fossem bem intencionadas. As redes sociais, e a internet num todo, podem ser manipuladas. Temos grandes movimentos de manipulação de opinião, seja para fins eleitorais, seja para fins religiosos, seja para consumo. Estamos numa contigência muito complicada desse ponto de vista, porque as pessoas também não têm tempo para estar a ver qual é o crédito de toda a informação, mas têm que desenvolver esse espírito crítico. Hoje em dia, todas as pessoas estão sujeitas a receber informação o mais disparatada possível que às vezes, parece de fontes relativamente credíveis. Isso é uma ameaça também para os media. Os media estão numa encruzilhada: têm que reagir às redes sociais mas não podem sucumbir à tentação de serem uma rede social.

Se os media não conseguirem mostrar a diferença entre a qualidade [da informação] nas redes sociais, estamos perdidos

Os media deixam-se capturar pelas redes sociais, também.

Sim, eu tenho sentido isso. As redes sociais são um meio de disseminação da própria informação muito importantes. É um pouco complicado. Se os media não conseguirem mostrar a diferença entre a qualidade [da informação] nas redes sociais, estamos perdidos.

A Greta tem um estilo bastante particular. Não há dúvida de que o movimento que ela iniciou - se foi mais ou menos instrumentalizado, não sei, se foi sincero, não procuro muito saber - teve uma importância enorme na consciencialização do problemaComo olha para o fenómeno associado à ativista Greta Thunberg? Muitos têm criticado o histerismo e o alarmismo representado por ela. Em princípio, estes críticos serão os tais negacionistas, não?

E não só. Maioritariamente são os negacionistas, são as pessoas que estão menos consciencializadas para o problema. Mas também há pessoas que veem que as alterações climáticas são uma realidade e que também não gostam do estilo dela. É legítimo gostar mais ou menos de um estilo de atuação. E a Greta ao expor-se desta maneira em termos globais obviamente que também fica vulnerável a todo o tipo de visões. E ainda bem, porque estamos, felizmente, em Estados democráticos.

A Greta tem um estilo bastante particular. Não há dúvida de que o movimento que ela iniciou - se foi mais ou menos instrumentalizado, não sei, se foi sincero, não procuro muito saber - teve uma importância enorme na consciencialização do problema. E teve o mérito de coligir, de forçar a atenção de uma camada juvenil que de outro modo poderia não ter acontecido. Isso é muito importante, vejo-o com muito bons olhos. Se não fizermos o mais possível agora, as gerações que vão sofrer mais com as alterações climáticas são os adolescentes de hoje. Não tenho dúvidas em fazer esse balanço da Greta. Depois, é uma questão de estilo. Isto também é uma opinião pessoal: não gostei muito do estilo com que ela falou nas Nações Unidas, mas isso é uma coisa de menor importância.

O estilo poderá estar, por ventura, relacionado com o facto de ter uma forma de autismo.

Tem a tal Síndrome de Asperger. Acho que deve estar imensamente pressionada, deve estar com uma vida horrível, mesmo, e não é por causa das alterações climáticas, é por causa da luta que está a encabeçar.

Esteve recentemente em Cabo Verde num encontro sobre alterações climáticas.

Sim, e por acaso o furacão Lorenzo passou a sul de Cabo Verde quando lá estive [antes de chegar aos Açores].

Quais foram as principais conclusões retiradas desse encontro?

Foi uma conferência científica, aberta aos países de língua oficial portuguesa, e que também tem que ver um consórcio apadrinhado pela CPLP e que pretende relevar a importância das alterações climáticas para os PALOP e fundamentalmente os países africanos. São países muitíssimos vulneráveis. O continente africano, infelizmente, não sendo um grande contribuinte para a emissão dos gases estufa, é talvez o continente mais afetado. Nos países de língua oficial portuguesa estamos a falar de ilhas que são especialmente vulneráveis às alterações climáticas (subida do nível médio do mar, tempestades).

Cabo Verde, por exemplo, tem secas recorrentes. Esta oscilação entre extremos é muito difícil de gerir numa sociedade como a cobo-verdiana, que não é rica. Temos também São Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola. Angola está sob uma seca muito forte no sul, é um país com um clima mediterrânico que também é muito vulnerável. Fizemos as projeções para os PALOP com os melhores modelos do mundo para o século XXI e fomos lá apresentá-las. De facto, do ponto de vista da frequência de extremos, da intensidade, o cenário é aquele que retratei: mais seca, mais precipitação intensa. Neste conjunto de países, o cenário é bastante grave.

 

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