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"Os médicos ucranianos estão exaustos, mas ninguém se queixa"

O médico e deputado português Ricardo Baptista Leite está em missão humanitária no Hospital Regional de Lviv, na Ucrânia, e é o convidado desta quinta-feira do Vozes ao Minuto.

Notícias ao Minuto

07:38 - 28/07/22 por Marta Amorim

Política Ucrânia/Rússia

As sirenes tocam enquanto esta entrevista decorre. O médico e deputado do PSD está há uma semana a fazer voluntariado num hospital regional em Lviv, na Ucrânia, e contou ao Notícias ao Minuto o que tem vivido naquele país em guerra. 

Contabilizam-se já cinco meses de invasão e as sirenes continuam a tocar. Quando assim é, há um rebuliço no Hospital Regional de Lviv. Mulheres em trabalho de parto apressam-se para chegar ao bunker. Já ninguém estranha, é o procedimento normal. 

Ali, naquele sítio de ar saturado, onde o sol não entra por causa dos sacos de areia nas janelas, já nasceram sete bebés desde que a guerra começou. 

O relato é-nos feito por Ricardo Batista Leite que visita a Ucrânia, ajudando de forma simbólica, como médico, mas principalmente dando voz a uma campanha de angariação de fundos para a reconstrução de uma maternidade. 

Os médicos tentam manter as atividades e consultas normais, mas depois soam as sirenes e segue-se para os bunkers

Como surgiu este convite e desde quando está na Ucrânia?

Desde o início da guerra que me mostrei disponível para ajudar enquanto médico e entretanto surgiu o contacto com a Associação dos Ucranianos em Portugal. Viajei, entretanto, a convite do Governo regional de Lviv e estarei numa missão de duas semanas onde, além no apoio simbólico hospital, estou a dar voz a uma campanha de angariação de fundos promovida pela associação para ajudar o hospital a comprar equipamento para a nova maternidade, cujas obras ficaram a meio por força da guerra. 

Em que consiste o seu trabalho nestes dias?

Estou em formato rotativo em várias equipas, o que me permite lidar com várias realidades e ouvir várias necessidades. Tenho estado a trabalhar num hospital regional, onde a realidade é de contrastes. Os médicos tentam manter as atividades e consultas normais, mas depois soam as sirenes e segue-se para os bunkers. Vive-se entre duas realidade paralelas. 

Não há nenhuma equipa onde chegue que não acrescente mais uma necessidade à lista. 

Como são as condições nos bunkers e o que nos pode contar da vivência lá?

O ar é rarefeito, quente, embora o bunker tenha ventilação. Os cuidados intensivos neonatais, de bebés recém-nascidos estão, desde março, em bunkers anti-bombas subterrâneos. No caso deste bunker, onde estão os bebés recém-nascidos em cuidados intensivos, não há possibilidade de deslocar o equipamento, então eles ficam lá o tempo todo. Todo o equipamento e todos os profissionais têm de estar permanentemente neste espaço subterrâneo sem luz natural. As janelas estão tapadas com sacos de areia, para proteger os vidros dos bombardeamentos. É incrível ver como as mulheres já descem normalmente aquando do toque das sirenes, já é um processo automático. 

Notícias ao Minuto Bunker para recém-nascidos em Lviv© D.R.  

As equipas, estes médicos, trabalham ali cerca de 12 horas diárias, às vezes mais. Por vezes ainda vão fazer trabalho de voluntariado noutros locais. 

Nestes locais, temos assistido também a outra situação preocupante, em que nos chegam grávidas de leste com gravidezes de termo em situações muito gravosas, uma vez que passaram os últimos meses sem cuidados médicos. A procura dos cuidados de saúde aumentou tanto que se tornou complicado ou praticamente impossível dar o acompanhamento devido a estas mulheres. 

São situações muito dramáticas e é precisamente para estes casos que estamos a angariar fundos, para preparar o pós guerra com esta nova maternidade.

Pelo que sei, apenas três médicos imigraram para outros países

Como tem sido a interação com os seus colegas médicos? O que lhes contam da vivência em plena guerra?

Eles estão cansados, exaustos, mas na realidade ninguém se queixa. Não fogem e são seres humano de uma enorme resiliência, capacidade e vontade. Mas nota-se que, depois de dois anos de pandemia e de 5 meses de guerra, estas pessoas estão cansadas. Mas no geral há um grande espírito de sacrifício de toda a população, a guerra trouxe novas necessidades e eles aceitam-nas. 

Ninguém vira costas ao que tem de fazer pelo país. Pelo que sei, apenas três médicos imigraram para outros países. 

São tantos casos em que cada pessoa traz uma bagagem emocional, psicológica e física, é impossível não sermos engolidos pela emoção

O que mais o impressionou de tudo o que tem visto na última semana?

Antes de chegar a Lviv, estive na Polónia, num centro de acolhimento, e o que mais me impressionou foi a história de uma mulher polaca, cozinheira voluntária ali, na casa dos 50 anos, que adotou um menino de três anos. O pai morreu na linha da frente e a mãe morreu de cancro. A mulher começou os tratamentos na Ucrânia, mas não resistiu e acabou por morrer, já na Polónia, depois de conseguir atravessar com o filho. Esta criança ficou absolutamente sozinha e agora esta mulher vai adotá-la. São situações muito dramáticas.

Ainda na Polónia, estive numa creche cheia de crianças. As mães, mulheres ucranianas, estavam a trabalhar ou à procura de trabalho. São mulheres que chegam ali, depois de deixar os maridos na guerra, e depois veem-se obrigadas a deixar os filhos para trabalhar.

Há também outra situação, não posso entrar em grandes detalhes, mas o segundo hospital onde já servi, converteu uma parte da sua atividade para serviços de trauma e de reabilitação física e motora, para tratar os mutilados de guerra que chegam diariamente da frente de guerra, no ocidente da Ucrânia. Foi muito impressionante ver este local, com condições minimalistas - comparadas aos nossos centros - mas com necessidades muito maiores do que as nossas em Portugal. 

Agora, a Ucrânia está a aproveitar o facto de, sendo um país candidato à União Europeia, ter acesso e ter direito a candidatar-se a fundos para investir na criação de um centro de reabilitação física, que é determinante e estar a assistir ao esforço dos profissionais a darem resposta a tanta procura. São tantos casos em que cada pessoa traz uma bagagem emocional, psicológica e física, é impossível não sermos engolidos pela emoção. 

Nestes dias, tenho tentado falar com os pacientes - apesar das barreiras linguísticas - e este é outro aspeto que também me tem marcado muito, sobretudo as pessoas que estão aqui deslocadas, vindas do leste da Ucrânia, como emocionalmente estão tão frágeis. É quase impossível que falem da sua experiência. Não querem falar da guerra, há quase uma fuga à realidade. Os problemas de saúde mental são imensos e provavelmente perdurarão para além da guerra. Aliás, há um conjunto de consequências da guerra no ponto de vista da saúde da população, iremos ver por muitos anos, mesmo depois de alcançada a paz. 

Notícias ao Minuto Bunker para adultos em Lviv© D.R.  

Eles têm um sistema de saúde que garante acesso a muita coisa, mas no que concerne a medicação e a tecnologias mais inovadoras, só uma pequena parte da população consegue ter acesso - porque tem de pagar do seu bolso. De facto aqui os vencimentos são muito baixos. Um médico ganha poucas centenas de euros por mês, e já é considerado uma salário alto. 

Por exemplo, conheci um doente que está a fazer um tratamento inovador para diabetes e que gasta, por mês, cerca de 100 euros. Só para aquele medicamento. Há aqui milhões de doentes ou potenciais doentes que vão ver a sua situação de saúde degradar-se. São feridas de guerra para além das armas e bombas.

Para além dos necessidades físicas, as mentais também começam a ser um problema. O que nos pode contar sobre esse lado dos cuidados médicos?

Há sinais claros de um desgaste brutal. Há um crescendo gigantesco de casos de ansiedade, depressão e dissociação, casos em que as pessoas se tentam desligar da realidade. 

Tenho falado com muitos psicólogos clínicos e não há uma conversa que não seja interrompida por doentes, normalmente soldados na linha da frente, que ligam a estes médicos. Soldados que ficaram com este contacto e que, no meio de uma crise, pegam no telefone e têm uma conversa com estes médicos. 

Estão a ser feitos esforços no tema da saúde mental, mas claramente que quando for conseguida a paz, a Ucrânia terá um grande problema em mãos com este tipo de doenças. 

Todos, mas todos, acreditam que esta guerra apenas pode ter um fim, e esse fim é a vitória total da Ucrânia

Como caracteriza as condições dos hospitais por onde tem passado?

Encontramos aqui várias realidades. Posso falar-lhe de um hospital cujo edifício tem cerca de 200 anos. Algumas partes, com donativos, foram sendo renovadas, tem blocos operatórios com relativamente boas condições, mas por exemplo, ainda ontem estive com um cirurgião, que perante uma emergência, usou o único endoscópio funcional do hospital regional, que serve mais de uma milhão de pessoas. É um sistema de saúde preso por arames e, agora, em contexto de guerra, os fundos foram desviados. 

Como é a vida na cidade? Sabemos que as pessoas tentam voltar à normalidade, mesmo com os alertas de perigo constantes...

As pessoas esperam que guerra se prolongue até, pelo menos, à primavera próximo ano. Não sei bem de onde lhes vem esta convicção, mas efetivamente as pessoas saem à rua e tentam viver as suas vidas. As ruas de Lviv estão cheias de pessoas. É a cidade para onde têm rumado grande parte dos ucranianos deslocados pela guerra, vivendo agora mais 300 a 400 mil habitantes do que o normal. Há recolher obrigatório, claro, mas até culturalmente vai voltando ao 'normal'. Se ignorarmos as janelas tapadas, parece uma cidade normal. 

Quando as sirenes tocam, as pessoas escondem-se onde podem. Quem está perto de casa, vai para casa, quem não, abriga-se no edifício mais próximo. 

Mas há algo que tenho que destacar: todos, mas todos, acreditam que esta guerra apenas pode ter um fim, e esse fim é a vitória total da Ucrânia. Para os ucranianos, qualquer cedência que agora fosse feita a Moscovo seria um passo para uma futura tentativa de nova invasão. Nota-se principalmente nos jovens esta crença profunda de que a Ucrânia vai vencer. E para eles, ser médicos ou ajudar como for, é algo que têm mesmo de fazer. 

Mas as pessoas creditam que esta guerra está a ser feita na base do desgaste e, por exemplo, vão se habituando às sirenes, desvalorizando-as. Teme-se que isso seja um problema no futuro,  no prolongar da guerra, em que pessoas morram e que essas mortes pudessem ter sido evitadas caso tivessem recolhido aquando do toque das sirenes. 

Qual a importância destas iniciativas humanitárias e como se desenvolvem em tempos de guerra?

Essa é uma lição que sai deste conflito e que sai desta experiência em particular que estou a viver. Há muita ajuda humanitária na Ucrânia neste momento: Médicos sem Fronteiras, Cruz Vermelha... Estão todos na frente. É o que se verifica nas guerras, há este efeito sugador, das linhas da frente. E as zonas mais longínquas, como Lviv, vão ficando mais esquecidas. Embora, na realidade, esta zona esteja muito necessitada, pois está perto da Polónia e é uma zona para onde viajaram muitas pessoas, muitas delas com necessidades de saúde. 

Chegámos aos 5 meses de guerra e diz-me que em Lviv as pessoas estão preparadas para aguentar até á próxima primavera. Na sua opinião, é isso que vai acontecer?

Não sendo especialista em assuntos militares, não posso especular, mas o que sei é que há uma expectativa por parte das pessoas em como o Ocidente tem de fazer mais para terminar a guerra. Terminar a guerra é só com a vitória absoluta da Ucrânia e isso só se consegue com uma capacidade de armamento que neste momento ainda não existe. 

A primeira-dama ucraniana, a mulher do presidente Zelensky, recebeu a semana passada um grande apoio da população por se ter dirigido ao Congresso dos EUA e ao contrário do que normalmente fazem as primeiras-damas, pedindo apoio humanitário, ela pediu armas.

Eu faço votos para que, de facto, se criem todas as condições para que a Ucrânia possa terminar a guerra o mais depressa possível.

Não há negociação possível nesta fase. Ultrapassaram todos os limites com esta invasão ilegal e acredito mesmo que os ucranianos, neste momento, estão a encetar uma luta e uma guerra em nome de todos nós. Como dizia [Winston] Churchill, noutro contexto: 'Nunca tantos deveram tanto a tão poucos'. Neste caso, os tantos são os ucranianos e os tão poucos somos nós, europeus. Por isso mesmo, espero que a comunidade internacional perceba que quanto mais tarde ajudar a acabar com esta guerra que tem atingido toda a Europa, maiores e mais devastadoras vão ser as consequências humanitárias. Temos a responsabilidade de garantir uma Ucrânia livre e em paz. 

Pessoalmente acho que o Ocidente tem de fazer mais para assumir de uma vez por todas que não negoceia com um estado terrorista - que é aquilo que representa o governo russo liderado por Vladimir Putin

Quem quiser ajudar a reconstruir a maternidade que nos descreve, como o deve fazer? 

Os donativos podem ser feitos no site da Associação dos Ucranianos em Portugal. Encontram vários valores para doar, começando nos 5 euros.

Monitorizaremos essas verbas e assumimos o compromisso de, através das redes sociais, divulgar o investimento feito pelo hospital. Acho que é importante as pessoas sentirem que há transparência e que o dinheiro chega onde é preciso. Tentaremos ser o mais transparentes possível. 

O objetivo desta angariação é chegar aos 170 mil euros para o sistema de oxigenação, ventilação, mais o gerador.  O gerador a diesel vai garantir o fornecimento ininterrupto de energia à maternidade e unidade de cuidados intensivos de recém-nascidos.

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