Foi há cerca de nove meses que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, anunciou a revisão da Cidadania e Desenvolvimento e a intenção de libertar a disciplina de "amarras ideológicas".
As linhas gerais das novas aprendizagens essenciais foram divulgadas no início do mês de julho pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) que, na altura, garantiu que não seriam eliminados temas, mas os detalhes só foram conhecidos há duas semanas, quando o documento entrou em consulta pública.
Eis alguns pontos essenciais sobre o que muda e as reações à proposta do Governo:
O que muda na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento
A partir do próximo ano letivo, Cidadania e Desenvolvimento vai passar a ser regulada por Aprendizagens Essenciais, em linha com uma nova Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, que vão substituir os atuais documentos orientadores da disciplina.
Lançada em 2017 pelo então ministro socialista Tiago Brandão Rodrigues, a Cidadania e Desenvolvimento funciona como área de trabalho transversal no 1.º ciclo, disciplina no 2.º e 3.º ciclos, e como componente de formação no secundário, cabendo às escolas decidir se é lecionada enquanto disciplina autónoma ou de forma multidisciplinar.
Essa organização não vai ser alterada, mas os até agora 17 domínios, alguns obrigatórios e outros facultativos, vão passar a ser integrados em oito dimensões obrigatórias: Direitos Humanos, Democracia e Instituições Políticas, Desenvolvimento Sustentável, Literacia Financeira e Empreendedorismo, Saúde, Media, Risco e Segurança Rodoviária, e Pluralismo e Diversidade Cultural.
O novo guião da disciplina parece, no entanto, dar menos atenção a temas polémicos como a sexualidade, tratada apenas no contexto da saúde e da violação dos direitos humanos, e maior destaque à literacia financeira ou ao empreendedorismo.
Educação Sexual foi tema que mais preocupou associações e especialistas
Sem quaisquer referências às palavras "sexual" ou "sexualidade", a aparente ausência da Educação Sexual nas novas aprendizagens essenciais foi, desde logo, o tema que mais preocupou associações e especialistas.
Durante as duas semanas de consulta pública, multiplicaram-se as posições em defesa da educação sexual, como a Associação Nacional de Estudantes de Medicina, a Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica ou a Associação Portuguesa de Fertilidade, que sublinharam o impacto comprovado na prevenção de comportamentos de risco e da violência de género.
Também a União de Mulheres Alternativa e Resposta e várias outras associações ligadas à defesa dos direitos humanos e das mulheres, como a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, alertaram que excluir aquele tema do currículo enfraquece a formação dos jovens.
Num parecer enviado ao Governo, a Ordem dos Psicólogos Portugueses recomendou a inclusão explícita da educação sexual e da saúde mental no currículo escolar, com aprendizagens progressivas desde o primeiro ciclo e conteúdos e ações adaptados às diferentes idades, considerando que, na proposta do executivo, "a referência à sexualidade nos currículos é restrita, limitada e tecnicamente imprecisa".
Ministério garante que Educação Sexual não vai desaparecer dos currículos
A polémica já estava instalada quando, finalmente, o ministro da Educação assegurou que os conteúdos relacionados com a educação sexual não vão desaparecer dos currículos.
Questionado sobre as criticas apontadas, Fernando Alexandre recordou a lei de 2009 que estabelece o regime de aplicação da educação sexual em meio escolar e explicou que os conteúdos não vão deixar de ser lecionados de forma transversal, nem vão desaparecer das aulas de Cidadania e Desenvolvimento.
Numa nota emitida posteriormente, o MECI esclareceu que o tema está inserido nas aprendizagens essenciais na dimensão "Saúde" e que, ao abrigo do regime de 2009, está igualmente presente noutras disciplinas.
"Seria um retrocesso enorme se a educação para a sexualidade saísse das escolas e da formação dos alunos. E se isso fosse verdade, o clamor que surgiu faria sentido", afirmou o ministro ao terceiro dia da consulta pública, em declarações que não foram suficientes para sossegar a contestação.
Mudanças não agradam à Direita nem à Esquerda
Do lado dos partidos políticos, as alterações à Cidadania e Desenvolvimento propostas pelo executivo não agradaram nem à direita, nem à esquerda.
À direita, a deputada do Chega Rita Matias considerou, durante uma audição do ministro da Educação, que as novas Aprendizagens Essenciais mantêm conteúdos de cariz ideológicos ao fazerem referência a questões de género, nomeadamente no capítulo dos direitos dos alunos, quando se menciona a análise de "casos históricos e atuais de violação dos direitos humanos (incluindo, entre outros, ... violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e expressão de género não normativas)".
À esquerda, os partidos com representação parlamentar foram unânimes nas críticas ao Governo, com acusações de retrocesso e de cedências à extrema-direita.
O PS defendeu que "a ausência de referências claras à educação sexual nos novos documentos propostos não pode ser encarada como uma simples reformulação curricular" e que a educação para estes temas "não é um acessório ideológico", enquanto o Livre entende que as alterações colocam amarras ideológica à disciplina.
O PCP vê "conceções políticas e ideológicas" nos documentos, o PAN acusou o executivo de desproteger os mais jovens num contexto de aumento da violência no namoro e o BE defendeu que "a erradicação quase total da educação sexual do currículo baseia-se num preconceito ideológico que ignora toda a literatura científica sobre o tema".
Escolas preocupadas com falta de formação e tempo para preparar alterações
Nas escolas, as alterações são vistas sobretudo com preocupação devido à falta de tempo para preparar a implementação de novos guias de uma disciplina para a qual os professores não recebem, sequer, formação específica.
A pouco mais de um mês do início do ano letivo, a Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (Andaep) pediu urgência na comunicação das novas orientações e lamentou a entrada em vigor sem que fosse antes assegurada formação aos docentes.
Também o ministro Fernando Alexandre levantou preocupações quanto à formação dos docentes para lecionar aquelas aulas, que são dadas por professores de outras disciplinas.
O ministro reconheceu que o docente de uma disciplina não poderá ensinar todos os conteúdos previstos, mas sugeriu que as direções de turma façam a gestão para que cada tema seja lecionado por professores com a formação mais adequada ou até por parceiros da sociedade civil, como instituições de ensino superior ou associações.
Entre os docentes, a maioria das organizações sindicais escusou-se a comentar, mas a Federação Nacional dos Professores (Fenprof) acusou o executivo de ceder à direita conservadora e defendeu que os professores sempre estiveram preparados para lecionar sobre "todas as questões intrínsecas ao ser humano".
Consulta pública prolongada devido a falhas informáticas nos primeiros dias
Inicialmente prevista para ficar concluída a 01 agosto, a consulta pública acabou por ser prolongada até 05 de agosto na sequência de constrangimentos registados durante os primeiros dois dias na página da Direção-Geral da Educação, onde o processo está a decorrer.
A página chegou a estar em baixo durante várias horas e o elevado número de tentativas de acesso acabou por afetar também vários outros serviços do Ministério da Educação que registaram constrangimentos durante esse período.
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