Horror de Wiriyamu continua vivo nos relatos de sobreviventes

Doquiria Gucinho não sabe quantos anos tem, mas uma cicatriz na perna direita lembra-a com nitidez da forma como escapou a um massacre, "banhada de sangue", há 50 anos, em Wiriyamu, centro de Moçambique.

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Lusa
15/12/2022 07:47 ‧ 15/12/2022 por Lusa

País

Wiriyamu,Guerra Colonial

Acabava de ficar noiva e estava sentada no pátio de casa, pouco depois de almoço, quando a aldeia foi cercada por cinco helicópteros e dois jatos de guerra romperam pelo céu, a 16 de dezembro de 1972.

"Quando ouvimos sons de helicópteros e jatos a sobrevoar a aldeia, fugimos para dentro de casa", mas os militares portugueses entraram na aldeia a ordenar que saíssem, ao mesmo tempo que "iam matando as pessoas" e ateavam fogo às palhotas, conta à Lusa.

Os militares portugueses juntaram as pessoas debaixo de uma árvore, separando homens e mulheres, interrogando a população sobre o apoio que fornecia aos "turras", nome dado à guerrilha da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, hoje o partido no poder).

Começaram por matar o seu marido enquanto ela assistia, porque levava uma esferográfica no bolso da camisa, suspeitando-se que podia ser o mobilizador, aquele que alistava jovens para incorporar a guerrilha.

Seguiram-se outros homens, todos em fila, todos mortos a tiro, um por um.

No massacre de Wiriyamu, cerca de 400 civis desarmados terão sido mortos por militares portugueses. "Atiraram uma granada" para onde as mulheres estavam sentadas, recorda hoje, quando passam 50 anos da violência naquela zona da província de Tete.

Notícias ao Minuto Padre Adrian Hastings, que revelou as atrocidades das tropas portuguesas em Wiriyamu, Moçambique, em 1972© Getty Images

"A minha sogra caiu, atingida no peito, enquanto eu fiquei ferida na perna e cai, banhada de sangue" de outras pessoas que foram caindo por cima dela.

"Só à noite percebi que não estava morta. Acordei, comecei a arrastar-me" num "entulho de cadáveres", até que outros sobreviventes a ajudaram e levaram-na para o mato.

Trataram-lhe dos ferimentos com plantas tradicionais até ficar curada, porque não poderia procurar um hospital, sob gestão colonial.

Agora com sete filhos, 38 netos e energia para todas as tarefas domésticas, Doquiria observa que a coragem de não denunciar os "turras" foi crucial para continuar o movimento para a independência.

Mas lamenta que hoje não esteja a receber nenhuma pensão de sobrevivência e que ainda tenha de cultivar a sua própria comida, como a maioria dos moçambicanos, além de ter de ir buscar água para consumo a poço improvisado a dezenas de metros de casa.

Outro sobrevivente, Vinte Gandar, 72 anos, escapou ileso na aldeia Jemusse, a poucos metros de distância de Wiriyamu.

Vinte Gandar conta à Lusa que enquanto uma parte da tropa portuguesa massacrava a população em Wiriyamu, outra tinha descido dos helicópteros por cordas para a sua aldeia.

O método era o mesmo: juntar todos os residentes à volta de uma árvore e interrogá-los, antes de os sujeitar ao horror.

"Dito e feito, começaram a bater nas pessoas, levavam as mulheres, violavam-nas perante as outras", relata Vinte Gandar.

Outras pessoas eram metidas dentro de casas e deitavam-lhes o fogo - quem tentasse fugir era morto com uma arma.

Ele e mais três jovens, que tinham acabado de regressar da atual cidade de Tete, a 25 quilómetros, foram levados para ser mortos por quatro militares portugueses.

"Os três foram mortos e eu a ver", explica Vinte.

Chegara a sua vez. Ele aproximava-se do cano da arma, enquanto o militar português o empurrava para ter uma distância mínima de disparo.

Naquele momento, chegou à aldeia o comandante que tinha operado em Wiriyamu.

Após longo interrogatório, já durante o pôr-do-sol, o comandante português ordenou que fossem mortos os homens e que se juntassem as mulheres. 

Vinte Gandar perdeu, na ocasião, quase toda a família direta, escapando apenas 15 dos seus primos em circunstâncias quase milagrosas, diz.

Após as ordens do comandante, aproveitou um momento: "comecei a correr. Aqueles três soldados disparavam contra mim. Eu só via poeira à minha frente poeira. Nas orelhas, ouvia as balas", até cair, já longe da aldeia.

"Quando caí, pensei que tinha sido atingido. Mas levantei-me, respirei e não senti nenhuma sensação de perder ar. Então tentei fugir ainda mais. Eles diziam, 'olha, escapou o gajo'".

Escapou e escondeu-se no mato com mais residentes até ao cessar-fogo com os Acordos de Lusaka, na Zâmbia, já em 1974.

Jorge Wiriyamu, o líder local e neto do régulo que deu nome à aldeia, herdou o trono para continuar a linhagem.

"Esse meu avô e o resto da família foram mortos já lá no mato, faltando alguns dias para a independência. Morreu Wiriyamu, seis filhos e a terceira esposa, num ataque da tropa portuguesa, em 1973", a uma das bases construídas pela guerrilha da Frelimo.

Um monumento está erguido na aldeia a recordar o massacre de Wiriyamu, no local onde foram descobertas três valas comuns.

O memorial foi reabilitado e inaugurado em 2017, durante as celebrações de 45 anos do massacre.

Severiano Rodolfo, chefe da localidade de Muchenga, à qual pertence Wiriyamu, considera "doloroso" recordar o massacre, mas a história não pode ser esquecida.

Assim, o Governo moçambicano tem feito investimentos para manter a memória daquele massacre, que ocorreu dois dias depois de um comerciante português ter traído a guerrilha, a quem fornecia alimentos.

De acordo com a investigação realizada pelo académico moçambicano Mustafah Dhada, professor de História Mundial e Estudos Africanos radicado nos Estados Unidos, as tropas portuguesas dizimaram um terço dos 1.350 habitantes de cinco povoações da província de Tete, no centro do país.

Os crimes perpetrados despoletaram fortes críticas internacionais e fomentaram a contestação à guerra colonial. 

Passadas cinco décadas, o governo português pediu desculpas pelo período sombrio da história colonial portuguesa.

"Quase decorridos 50 anos sobre esse terrível dia de 16 de Dezembro de 1972, não posso deixar aqui de evocar e de me curvar perante à memória das vítimas do massacre de Wiriyamu, ato indesculpável que desonra a nossa história", afirmou em setembro em Maputo, António Costa, primeiro-ministro português ao pedir desculpas pelo horror.

A aldeia com falta de água potável - as pessoas recorrem a cinco poços - recebeu energia elétrica há poucos anos.

A eletricidade ilumina o quarteirão onde foi erguido o memorial do massacre de Wiriyamu e os poucos candeeiros públicos na principal estrada tentam espantar o densa escuridão depois do cair do sol.

Numa aldeia tranquila e humilde, onde apenas a escola e o hospital são construídos em alvenaria, Doquiria e Vinte circulam pelas ruelas de pó vermelho e pedregulhos, quase sempre debaixo de um sol de 40 graus, repositórios vivos das memórias do massacre.

Leia Também: Costa pede desculpa a Moçambique por massacre de Wiriyamu

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