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Vacina? "Europa limitou-se a criar cooperativa de compradores inocentes"

Constantino Sakellarides, atual membro do Conselho Nacional de Saúde Pública e antigo diretor-geral da Saúde, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

Vacina? "Europa limitou-se a criar cooperativa de compradores inocentes"
Notícias ao Minuto

09:40 - 22/04/21 por Filipa Matias Pereira

País Covid-19

Ao longo do seu percurso profissional, Constantino Sakellarides tem-se destacado como um nome sonante no domínio da Saúde Pública. Detentor de um nível de conhecimento ímpar, o epidemiologista é um dos atuais membros do Conselho Nacional de Saúde Pública. 

Do seu (longo) currículo destaca-se ainda o facto de ter sido presidente do Conselho de Administração da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, antigo diretor-geral de Saúde e consultor do anterior ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes. 

Ora, o conhecimento em Saúde Pública que, ao longo de décadas, foi granjeando permite-lhe, agora, ter uma posição crítica quanto à estratégia adotada pela União Europeia quanto à compra de vacinas contra a Covid-19. Essa posição foi, aliás, manifestada, juntamente com outras personalidades, no manifesto ‘Vacinas como bem comum'.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o também professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa recorda que a “Europa é, de longe, a região com maior capacidade de produzir vacina”. Porém, não aproveitando a capacidade produtiva, “as autoridades europeias limitaram-se a criar uma cooperativa de compradores inocentes, quando é óbvio que a sua preocupação deveria estar centrada no planeamento da produção e na intervenção que permitisse uma cobertura satisfatória e a tempo da população europeia”. 

Não sendo anti-Europa, Constantino Sakellarides assume-se como um “europeísta frustrado” e advoga que “não podemos fechar os olhos a estas disfunções tão graves, tão previsíveis e em relação às quais é preciso levantar a voz”. 

A posição da Agência Europeia do Medicamentos quanto à vacina da AstraZeneca, a terceira fase de desconfinamento em que Portugal se encontra, bem como os critérios definidos pelos especialistas para conter a pandemia de Covid-19 foram também aspetos que marcaram esta conversa. 

A Europa é, de longe, a região com maior capacidade de produzir vacina

Através do manifesto ‘Vacinas como bem comum’, dezenas de personalidades lançaram um apelo para que as vacinas contra a covid-19 sejam consideradas um bem de interesse comum e para que a Europa não submeta este processo às leis de mercado. Sendo um dos impulsionadores deste manifesto, como surgiu a ideia de o levar a cabo?

Há cerca de um mês não havia nenhuma revista internacional que não manifestasse o seu espanto pelo tremendo atraso da Europa em relação aos EUA e à Grã-Bretanha na vacinação contra a Covid-19.

A Europa é, de longe, a região com maior capacidade de produzir vacinas, sendo que os números a que tivemos acesso dizem que 75% da capacidade de produção das vacinas está na Europa. Ora, como é que um continente com esta capacidade de produção se atrasa desta forma em relação aos EUA e Grã-Bretanha, sem falar de outros pequenos países? Essa é a grande pergunta. E este atraso é evitável porque as pessoas morrem por não estarem vacinadas. É algo de enorme responsabilidade. 

A vacina, apesar de não ser perfeita no sentido de evitar a transmissão da infeção, é muito boa no sentido de prevenir a doença grave e a mortalidade. Por isso, um bem desta importância não pode ser escasso porque, se o é, é mal distribuído. É óbvio que alguma coisa correu mal.

As autoridades europeias limitaram-se a criar uma cooperativa de compradores inocentes

E o que é que, no seu entendimento, correu mal?

Há seis meses, todos sabíamos o que ia acontecer. Sabíamos que tipo de vacinas estavam a ser preparadas, quem estava a prepará-las, quem ia produzi-las, qual era a expectativa em relação às vacinas. E, sabendo isso tudo, as autoridades europeias limitaram-se a criar uma cooperativa de compradores inocentes, quando é óbvio que a sua preocupação deveria estar centrada no planeamento da produção e na intervenção que permitisse uma cobertura satisfatória e a tempo da população europeia. 

Mas, em vez de as instituições europeias se incomodarem e porventura incomodarem a sua indústria, resolveram simplesmente ter o papel passivo de compradoras, fazendo contratos que, para além de serem pouco transparentes, não permitiram que a Europa conseguisse pelo menos o mesmo ritmo de vacinação dos EUA e da Grã-Bretanha.

Fiquei admirado pelas palavras do primeiro-ministro, após o último Conselho de Ministros, quando disse que esta não era uma questão de ser um bem público ou não, que era uma questão de produção. Quando a produção não é satisfatória, as autoridades têm todo o direito de evocar a vacina como bem público e de intervir na produção e isso não quer dizer necessariamente entrar pelo caminho das patentes. 

Basta as autoridades se interessarem precocemente pelo planeamento da produção. E se esse planeamento da produção não for aquilo que precisamos, então podem intervir de forma mais musculada. Agora não podem é, sabendo com seis meses de antecedência o que ia acontecer, ficar passivamente na posição de compradoras inocentes. Essa foi a razão que levou algumas pessoas a pensarem que tinham de chamar a atenção para esta realidade. 

Para não nos diluirmos no problema global, focámos a questão na Europa, mas é evidente que, a nível global, o tema é ainda mais grave e afeta-nos também. Enquanto houver países como o Brasil e agora mais recentemente a Índia, que têm altíssimas incidências de multiplicação do vírus, temos novas variantes. Isto quer dizer que, mais ou menos a prazo, temos de ajustar as vacinas à nova variante e ser vacinados. Mas a vacinação não está só associada a essa questão, está associada também à duração da imunidade produzida pela vacina que temos neste momento. 

Ou seja, há mais que uma razão para sensibilizar a opinião pública sobre o facto que esta vacina, por ser um bem vital, não pode ser um bem escasso, porque o bem escasso é sempre mal distribuído.

Assegurar um nível de produção, aproveitando todas as oportunidades de produção existentes e multiplicá-las, é uma obrigação moral da saúde pública, independentemente dos interesses particulares que a indústria possa ter. Não temos uma noção maquiavélica da indústria, sabemos que a indústria, como todas as atividades económicas, tem a necessidade de premiar o seu investimento, ninguém é contra isso, mas há limites. E quando se trata de uma pandemia, de um fenómeno global desta gravidade, o limite é ter de se olhar em primeiro lugar às necessidades de saúde pública e depois ao resto. Portanto, em vez de os políticos se irritarem com esta matéria, bem faziam em ter uma palavra de apoio a esta preocupação.

O primeiro-ministro português chegou a classificar como "pouco inteligente" a compra unilateral de vacinas pelos Estados-membros, o que enfraquece a posição negocial da Comissão Europeia. Concorda?

Muitos países fizeram as duas coisas, integraram-se no consórcio europeu, nesta cooperativa europeia, mas tentaram explorar todas as oportunidades existentes para comprar paralelamente a vacina também. É evidente que isto denota a debilidade da coordenação europeia. Se a abordagem europeia fosse pensada mais atempadamente, mais profundamente, mais cuidadosamente, nada disso era necessário. Era bom que a Europa agisse como um bloco, se interessasse pela produção e assegurasse uma produção suficiente para todos, de uma forma equitativa em relação à sua produção.

Quando se faz parte do consórcio e se vai atrás da porta comprar à parte, a compra à parte desconta na viabilidade do conjunto. Por isso, a posição mais decente era assumirem-se os europeus como compradores e, ao mesmo tempo, ir participando no planeamento da produção, no sentido de assegurar que havia vacina para todos. 

Tudo o que for abrir outras portas vai contra este princípio e, portanto, cria um nacionalismo egoísta em relação a um problema em que temos, antes de mais, de ser solidários. Este problema é mais uma enorme deficiência das burocracias europeias, que já no verão passado deram aquele espetáculo triste de cada país, numa chamada União Europeia, abrir e fechar fronteiras de acordo com a sua vontade própria, sem nenhuma coordenação global. 

Sou um europeísta frustrado. Não sou anti-Europa, mas também não podemos fechar os olhos a estas disfunções tão graves, tão previsíveis e em relação às quais é preciso levantar a voz".  

A Europa ainda vai a tempo de contornar a estratégia que adotou?

Já há sinais. Um dos defeitos dos sistemas políticos é que [os responsáveis] nunca reconhecem os erros e eu não tenho nada contra isso, percebo porque é que o fazem. A minha reserva é que o não reconhecimento dos erros esteja associado à não aprendizagem, ou seja, à repetição dos erros no futuro.  Mas é evidente que, neste momento, a Europa se está a mover no sentido de pressionar o aumento da produção, tentando localizar a capacidade produtiva e fazendo com que essa capacidade seja rapidamente mobilizada. Mas isso deveria ter acontecido há seis meses.

Que haja agora um movimento nesse sentido é muito bem-vindo e não pode ser criticado, agora a questão de aprendizagem que deve ser colocada é: porque é que isto não foi feito com seis meses de antecedência? E desses erros de atraso temos uma longa história com a qual temos de aprender. 

Não pode a EMA ser confiável para licenciar vacinas e não ser confiável na perceção dos seus riscos

Em relação à vacina da AstraZeneca, Marta Temido lamentou a falta de consenso europeu sobre a matéria. Faz sentido que os Estados-membros adotem posições unilaterais depois da validação do regulador europeu?

Os países europeus têm uma Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em Inglês) na qual confiam para licenciar as vacinas e dizem, com razão, que outras vacinas desenvolvidas noutros locais - como na Rússia ou na China - serão bem-vindas na Europa, se forem licenciadas pela EMA. Mas isso traz consigo que, sendo a vacina licenciada, e portanto validada a sua utilização, os países também confiem na EMA para a avaliação dos seus riscos. Não pode a EMA ser confiável para licenciar vacinas e não ser confiável na perceção dos seus riscos.

Quando os países europeus consideram a opinião do regulador para umas coisas e não consideram para outras, enfraquecem a imagem pública da EMA, que é um bem inestimável. Temos de acreditar no regulador. Podemos incentivar que este funcione melhor, isso é uma coisa, mas não vamos a parte nenhuma - e vamos estar completamente desorientados - se não depositarmos confiança no nosso regulador. E se este diz que esta vacina é segura nestas condições, esta segurança inclui efeitos colaterais de gravíssima monta, que são habituais em medicamentos numa forma geral. Por isso, quando a EMA diz que um medicamento ou uma vacina são seguros e eficazes, isso tem intervalos de confiança e não exclui o aparecimento de reações adversas. A relação entre os benefícios e os riscos é de tal forma dramática que não oferece dúvidas nenhumas que o medicamento ou a vacina deve ser utilizada.

Vacina licenciada pelo nosso regulador é vacina de confiança. Se abrirmos mão disto, ninguém percebe 

Há, novamente, uma rutura por falta de coordenação europeia de cada vez que um Estado-membro adota uma posição. Uns suspenderam para sempre [a vacina da AstraZeneca], outros suspenderam provisoriamente, outros administram apenas a maiores de 60 anos, outros a maiores de 65 anos, isto de facto só confunde as pessoas.

O que sugerimos às pessoas é que sigam as recomendações das autoridades nacionais, já que a Europa dá-nos esta confusão. Vacina licenciada pelo nosso regulador é vacina de confiança. Se abrirmos mão disto, ninguém percebe. 

O primeiro-ministro português já veio, aliás, defender que deveria haver um reforço de competências do regulador europeu. Partilha da mesma opinião?

A EMA tem vastas competências, como o licenciamento de medicamentos e de vacinas. Se não é licenciado, não é utilizável no espaço europeu. Nós precisamos é de um reforço de competências do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC). Precisamos que o ECDC se transforme numa agência de saúde pública que crie normas de saúde pública que sejam válidas para o espaço europeu e que evite que cada país tenha as suas próprias normas, a sua própria estratégia, o que cria uma enorme confusão entre os países. A questão que está em cima da mesa, e é bom aproveitar esta oportunidade para este efeito, é haver no futuro não só uma Agência Europeia de Medicamentos, mas uma agência de saúde pública que nos faça partilhar estratégias de indicadores uniformemente. 

Não é de excluir que, uma vez que esta questão esteja melhor estudada, essas restrições à AstraZeneca sejam levantadas

Portugal, à semelhança de outros países, decidiu administrar a vacina da AstraZeneca apenas a maiores de 60 anos. Quais as repercussões de uma medida deste género no Plano de Vacinação?

Essa questão depende de como a Europa consegue fomentar a produção de outras vacinas. De qualquer forma, é preciso acentuar que esses impedimentos são provisórios, que estão ainda a ser analisados. Não é de excluir que, uma vez que esta questão esteja melhor estudada, essas restrições à AstraZeneca sejam levantadas. Aliás, os líderes europeus, nos últimos dias, têm insistido em mostrar que se vacinam com a AstraZeneca. Portanto, há uma grande pressão para rever essas limitações impostas atualmente. 

É preciso explicar às pessoas que, quando uma vacina é licenciada pela EMA, ou pelo regulador norte-americano ou inglês, é validada com base em ensaios que abarcam milhares de pessoas. Depois, o seguimento da vacina continua a ser rigoroso em relação aos efeitos, mas agora temos milhões de pessoas e não milhares.

E quando se passa de milhares para milhões, é evidente que vão aparecer pequenos efeitos que não são visíveis quando só com milhares. O facto de haver milhões vacinados e aparecerem cerca de 20 efeitos colaterais tem de ser posto na devida proporção. E essa partilha de conhecimento tem de ser constante e anteceder o fenómeno. Se fizermos isso com antecedência, estaremos mais bem informados quando os problemas surgirem. 

O indicador taxa de incidência por 100 mil habitantes a nível nacional e o rácio de transmissibilidade (Rt) a nível nacional são muito pouco relevantes para estudar uma situação quando esta está restrita a certos concelhos

Na última reunião do Infarmed, os especialistas alertaram que Portugal poderia chegar ao limiar da matriz de risco daí a duas semanas ou um mês. Apesar disso, o Governo decidiu avançar com a terceira fase de desconfinamento na maioria dos concelhos. Faz sentido?

A comunicação tem sido muito imprecisa sobre esta matéria. As autoridades, como outros países, têm de ter um mecanismo seguro, consistente, continuado e transparente de acompanhamento científico. O Governo não pode ouvir uns especialistas e depois outros. Parece que é ‘a la carte’ e não pode ser. Tem de haver um corpo de especialistas com várias competências e que regularmente estude os dados e aconselhe o Governo, independentemente da política. E falamos de competências complementares necessárias para combater este fenómeno, seja no âmbito da saúde pública, no domínio clínico, de virologia, de comportamentos sociais, etc. 

O Governo optou por pedir a duas pessoas que não faziam parte da equipa inicial do Infarmed que gizassem um plano de desconfinamento. Essas pessoas gizaram o plano e fizeram, mais recentemente, declarações à imprensa defendendo que achavam que era bom esperar mais uma semana [para avançar no desconfinamento].

Bom, acho que o primeiro-ministro respondeu bem, dentro do velho defeito de haver um processo de aconselhamento de sentidos que ninguém percebe. O primeiro-ministro disse que as pessoas que desenharam o próprio plano de desconfinamento fizeram-no para que se levasse a cabo uma análise e se tomassem decisões de duas em duas semanas. Portanto, não nos podem agora pedir, quando desenhamos isto desta forma e a sociedade criou expectativas, que de repente se diga que não são duas, que são três [semanas]. O chefe de Governo cingiu-se ao que foi aconselhado. 

No entanto, há uma questão fundamental que foi omissa no ‘briefing’ do Conselho de Ministros e que é muito importante. Aquela matriz de risco nacional, quando a incidência é baixa e os surtos se limitam a certos concelhos, tem muito pouco significado. Portanto, o indicador taxa de incidência por 100 mil habitantes a nível nacional e o rácio de transmissibilidade (Rt) a nível nacional são muito pouco relevantes para estudar uma situação quando esta está restrita a certos concelhos. Quando a incidência baixa muito, como baixou, o Rt flutua muito e não é um bom indicador para seguir a situação. E a taxa de incidência por 100 mil habitantes é uma média nacional que diz pouco quando a distribuição é deste tipo. Nesta fase, estes dois indicadores não são muito interessantes porque importa mais a situação local.  

Quais deveriam, então, ser os indicadores a adotar?

Em relação à situação local, um aspeto fundamental é a estratégia de testagem e os seus resultados. Ora, a estratégia de testagem deveria neste momento ter quatro níveis: testar os contactos das pessoas infetadas para as poder isolar, testar aquelas populações que são mais suscetíveis a infeções por estarem mais expostas, testar por amostragem para saber onde o vírus anda e, por fim, a alta testagem que é importante para as pessoas poderem desenhar o seu comportamento. Ora bem, esses quatro níveis de testagem são fundamentais para entender o fenómeno neste momento. 

É importante não só a aplicação de uma estratégia de testagem, mas também a partilha dos seus resultados e é este resultado que nos dá a fotografia dinâmica de onde andará o vírus. Não é o Rt nem a incidência de doença a nível nacional, que têm pouca história para contar. O problema é que não se falou disso depois do Conselho de Ministros. 

Não tendo uma estratégia de testagem decente, e não tendo resultados concretos da positividade dos testes a vários níveis, estamos menos habilitados a compreender bem a situação

E porque é que não se falou? 

Óbvio que estou a inferir, mas será porque o Governo, tardiamente, nomeou uma Task Force, mais uma, para elaborar uma estratégia de testagem. O coordenador dessa estratégia de testagem deu uma entrevista a um semanário onde disse que a equipa está a trabalhar nisso, quando a boa prática é não desconfinar sem uma estratégia de testagem.

Não é que os níveis de incidência não aconselhassem que se desconfinasse quando se desconfinou. Estou a dizer, sim, que antes disso deveríamos ter desenhado, testado e implementado uma estratégia de testagem decente. Não tendo uma estratégia de testagem decente, e não tendo resultados concretos da positividade dos testes a vários níveis, estamos menos habilitados a compreender bem a situação. E não podemos substituir esta compreensão detalhada pelos indicadores nacionais, nem sequer pelas taxas de incidência local. 

Vamos imaginar que, num determinado concelho pequeno, temos uma taxa de incidência de 120 [por 100 mil habitantes]. Uma coisa é 120 resultarem de um surto numa empresa, outra coisa é resultarem do vírus estar na comunidade. Falar da taxa de incidência, mesmo que seja a nível local, é dizer pouco.

Para termos informação partilhada, para podermos discutir isso de forma decente, temos de saber naturalmente a taxa de incidência, o tipo de transmissão (surto controlado ou vírus na comunidade) e o desempenho na rede de saúde pública, nomeadamente até que ponto está a ser capaz de fazer os inquéritos a tempo e isolar e testar a tempo. Temos ainda de saber quantos testes e que nível da estratégia de testagem foi aplicada em cada local e qual é a positividade desses testes. Isso faz toda a diferença. A informação partilhada não permite a discussão que precisamos de ter. Na discussão após Conselho de Ministros, omitir a estratégia de testagem é incompreensível. 

Diretriz para testarmos intensamente e partilhamos os resultados é muito importante para a estratégia de contenção da transmissão. Esta estratégia, juntamente com a vacinação, é a grande arma para evitar uma quarta onda

Nas últimas semanas, como revelaram os especialistas na reunião do Infarmed, verificou-se um aumento da incidência na faixa etária dos 0 aos nove anos. Perante estes dados, o Executivo deveria ter avançado com a reabertura das escolas em todos os concelhos?

Importa esclarecer que a incidência diminuiu brutalmente, mas, apesar de ter descido muito, nesta faixa etária é maior do que nas outras. Ora, a testagem escolar pode contribuir para esse facto e é por isso que precisamos de saber a estratégia de testagem e os seus resultados. Se as crianças que frequentam escolas forem intensamente testadas num determinado local, comparativamente com outras, esperamos resultados com incidência e essa pode ser uma explicação. 

De qualquer forma, o nível de surtos de Covid-19 nas escolas tem sido baixo e, por isso, esse indicador não é um argumento para não abrir as escolas. Uma situação diferente é manter as escolas abertas num local onde o vírus circula na comunidade. Se tivermos um concelho com uma população pequena que tem uma incidência por 100 mil habitantes de 240, mas essa incidência resulta de uma empresa que teve 50 casos, não se vai fechar as escolas. Mas se essa incidência de 240 por 100 mil habitantes resulta de uma transmissão na comunidade, então deve fechar-se as escolas.

Além da política nacional em relação às escolas, é bom que, a nível local, se seja sensível não só em relação à taxa de incidência, mas também à característica dessa incidência. Daí que as informações de desempenho da rede de saúde pública, característica da incidência, nível de incidência e estratégia de testagem sejam absolutamente importantes para fazer uma análise crítica do que está a acontecer e das decisões que estão a ser tomadas. 

É provável que Portugal tenha de enfrentar uma quarta vaga da pandemia antes alcançar a tão desejável imunidade de grupo?

Depende de muita coisa, não se pode dizer sim ou não. Depende, em primeiro lugar, da vacinação e da estratégia de testagem. Depende de testarmos os contactos de pessoas infetadas, de testarmos regularmente as pessoas que têm exposição conhecida, de testar por amostragem para saber onde o vírus anda, de ter informação fidedigna da autotestagem das pessoas nas diferentes circunstâncias em que o fazem.

E essa diretriz para testarmos intensamente e partilhamos os resultados é muito importante para a estratégia de contenção da transmissão. Esta estratégia, juntamente com a vacinação, é a grande arma para evitar uma quarta onda. Além disso, é importante o nosso comportamento, a forma como agimos em relação à proximidade, mas o nosso comportamento só pode ser inteligente se tivermos boa informação. 

*Nota: Esta entrevista foi realizada antes de a EMA e do governo português se terem manifestado em relação à vacina da Johnson & Johnson. 

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