A reprodução em tribunal de uma escuta entre Sócrates e o ex-administrador da PT Henrique Granadeiro motivou críticas ao Ministério Público (MP) pela decisão de expor uma conversa privada com linguagem que as defesas consideraram indigna do tribunal.
O MP, que pretende provar uma relação de amizade e proximidade entre Henrique Granadeiro e José Sócrates, pediu a reprodução de quatro escutas telefónicas entre ambos, a primeira das quais incluía uma conversa de teor privado, na qual o antigo primeiro-ministro relatava uma conversa com o antigo presidente da República, Mário Soares, e o antigo presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, sobre a eventual relação íntima de António Oliveira Salazar e a sua secretária.
A linguagem e considerações utilizadas levaram as defesas a questionar pertinência daquela reprodução, tendo sido o protesto mais veemente expressado por António José Barreiros, advogado do ex-administrador da PT, Zeinal Bava, a considerar o momento "um exercício de indignidade, de voyeurismo", com "comentários que não abonam nada para ninguém" e que toda a situação "era evitável", podendo o MP cingir-se a reproduzir apenas as partes relevantes para a produção de prova, críticas secundadas por outras defesas.
No entanto, o MP considerou a reprodução integral necessária para demonstrar a relação de proximidade entre ambos, visível pelo tom da conversa.
Pedro Delille, advogado de Sócrates, acabou por requerer ao tribunal a nulidade desta parte do julgamento, considerando a reprodução ilegal e inútil, por não se destinar a provar qualquer crime, dado as relações de amizade não serem criminalizadas.
A juíza, que se mostrou incomodada no momento da reprodução, remeteu para mais tarde a análise dos requerimentos, garantindo que apenas seria considerada a prova que entretanto fosse considerada válida e que tentaria de futuro evitar que fosse passadas escutas que colidissem com a defesa da intimidade e vida privada.
Para o MP aquela reprodução servia também o propósito de contradizer afirmações de Sócrates de que não era amigo de Granadeiro e de que não tinha tido almoços com ele, levou o antigo primeiro-ministro a responder que sempre tinha reconhecido a sua amizade com o antigo administrador da PT e que apenas tinha dito que não tinha almoçado com ele durante o período em análise na acusação, relativo à OPA da Sonae à extinta telecom portuguesa.
José Sócrates, que ainda durante a sessão criticou o MP pela reprodução da escuta e disse que "esperava um pedido de desculpa" do tribunal, à saída para almoço referiu-se a "um ato absolutamente indigno" do MP.
"Nós estamos aqui há duas horas à espera que o MP apresente uma prova, que se concentre em provar aquilo que afirma há dez anos, que me insulta. E o que é que faz o MP? Reproduz uma conversa telefónica entre mim e o dr Henrique Granadeiro para fazer o espetáculo mais indigno de voyeurismo político numa conversa pessoal e para que eu fosse exposto a falar do Mário Soares e do Almeida Santos. Uma coisa horrível. E a minha pergunta é: como é que nos defendemos de um procurador sem escrúpulos?", disse.
"Se houvesse alguma sensatez por parte do MP, tiravam imediatamente este procurador, indigno para a sua profissão e retiravam-no do julgamento", acrescentou ainda o antigo primeiro-ministro, que acusou ainda o MP de inventar declarações suas sobre a amizade com Granadeiro.
Onze anos após a detenção de José Sócrates no aeroporto de Lisboa, arrancou na passada quinta-feira o julgamento da Operação Marquês, que leva a tribunal o ex-primeiro-ministro e mais 20 arguidos e conta com mais de 650 testemunhas.
Estão em causa 117 crimes, incluindo corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, pelos quais serão julgados os 21 arguidos neste processo. Para já, estão marcadas 53 sessões que se estendem até ao final deste ano, devendo no futuro ser feita a marcação das seguintes e, durante este julgamento serão ouvidas 225 testemunhas chamadas pelo Ministério Público e cerca de 20 chamadas pela defesa de cada um dos 21 arguidos.
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