No dia 11 de março de 2004, Espanha acordava pela última vez sem a ferida que veria essa manhã ser-lhe infligida fundo no peito, em Madrid, a sua capital. Uma dezena de bombas, colocadas estrategicamente em quatro comboios urbanos, na linha de Alcalá de Henares, que terminava na estação da Atocha, explodiram quase em simultâneo, entre as 7h36 e as 7h40 da manhã.
Três bombas explodiram num comboio dentro da estação da Atocha, primeiro. Depois explodiram duas num comboio na estação de El Pozo del Tío Raimundo e uma num comboio na estação de Santa Eugenia. Por último, explodiram quatro bombas dentro de um comboio na rua Téllez, a 500 metros da entrada da Atocha. Morreram 192 pessoas neste dia, espanhóis e imigrantes, provocando ainda, segundo os números oficiais, 1.853 feridos, conforme indicou ao Notícias ao Minuto a Associação 11-M Afetados pelo Terrorismo.
Aquela quinta-feira foi primeiro de confusão, depois de incompreensão, depois de choque. As primeiras notícias davam conta de um atentado. Falava-se em alguns feridos. Em casa de Pablo, um madrileno que tinha na altura nove anos, não se interromperam os preparativos para sair para a escola. “Naquele dia levantei-me às 8h da manhã, como sempre, o meu pai já tinha saído e a minha mãe já estava acordada porque também ia trabalhar, mais tarde. Ela estava a ver televisão e vi que havia um atentado, perguntei-lhe o que se estava a passar e ela respondeu: ‘Nada, um atentado da ETA na Atocha’”.
Pablo indicou, ao Notícias ao Minuto, que naquela altura o país estava habituado a ver noticiados atentados perpetrados pela ETA, o grupo nacionalista basco, recaindo as primeiras suspeitas sobre esta organização independentista.
Francisco, de 54 anos, também residente em Madrid, recorda com mais detalhe. “Lembro-me do governo dizer que tinha sido a ETA a cometer o atentado, ao invés dos radicais islâmicos. Mas eu não acreditava”, referiu.
Recorde-se que o atentando ocorreu a poucos dias de eleições legislativas em Espanha. José Maria Aznar (PP) era chefe de um governo que tinha apoiado as invasões do Iraque e do Afeganistão. Nos primeiros dias, o executivo acusou a ETA de ter sido, “sem dúvida alguma”, autora dos ataques, mesmo tendo sido encontrados versículos do Corão dentro da carrinha onde estavam os detonadores (os críticos atribuem esta posição ao receio de perder as eleições caso se provasse ser uma retaliação muçulmana).
No dia 14 de março, dia de eleições, 25 milhões de espanhóis foram às urnas e o PP acabou por ser derrotado. A investigação policial viria a determinar que os autores do ataque estavam ligados à al-Qaeda, algo que a opinião pública defendia desde o primeiro dia.
Naquele momento senti medo pela primeira vez
A maior parte dos autores do atentado imolou-se com explosivos 23 dias depois, num apartamento na povoação de Leganés, após serem descobertos pela polícia – foi neste dia que morreu a 193.ª vítima do atentado, um agente de autoridade. Outros associados foram detidos e julgados, estando ainda a cumprir penas máximas de prisão.
Pablo morava muito próximo da cidade de Leganés. “Naquele momento senti medo pela primeira vez. (…) Nesse momento, como criança, senti o medo de ser invadido por um grupo de pessoas de países estrangeiros longínquos que nos queriam matar sem razão alguma. Senti medo também pelos muçulmanos que conhecia, vizinhos que até essa altura me pareciam pessoas normais mas que automaticamente associei ao estereotipo de que podiam ser terroristas perigosos”, explicou o jovem, sublinhando que a educação dos pais lhe permitiu conhecer a tolerância e o respeito e que, “com o tempo”, soube “entender que jihadista e muçulmano são coisas completamente diferentes”.
Há a sensação de que, uma vez avaliados pelas autoridades judiciais e paga a indemnização, o dinheiro resolveu todos os problemasO governo espanhol destinou centenas de milhões de euros para indemnizar as vítimas e as suas famílias. No entanto, existem críticas à atuação do Estado espanhol nesta matéria que se estendem à atualidade.
De acordo com Pedro Perez, assistente social da Associação 11-M Afectados pelo Terrorismo, que “atua junto do Ministério do Interior, recorrendo das sentenças que não são favoráveis às vítimas”, muitos sobreviventes reclamam da falta de reconhecimento, por parte do Estado espanhol, do agravamento das suas mazelas.
“Há a sensação de que, uma vez avaliados pelas autoridades judiciais e paga a indemnização, o dinheiro resolveu todos os problemas. E não é assim. Atualmente, há muitas vítimas que viram as suas sequelas agravar-se, tanto a nível físico como psicológico, ou até já apareceram outros sintomas”, indicou o responsável, frisando que “a administração nega sistematicamente a relação entre o atentado com as novas sequelas que possam surgir posteriormente”.
Ir à Atocha de comboio provoca inquietação
Se é verdade que as feridas físicas vão sendo cicatrizadas pelo tempo, há outras que nada pode sanar. A perda de um ente querido, a dor de um ataque inqualificável. “No dia de hoje, vemos o que é o sofrimento diário das pessoas que perderam um ente querido e cuja ausência não se substitui com nada”, referiu Pedro Perez.
“Os sentimentos são sempre os mesmos, de raiva, pelo que aconteceu, de frustração, porque se podia ‘ter evitado’ isto se houvesse uma atenção maior ao terrorismo jihadista. Mas naquela altura estavam tão centrados na política terrorista da ETA que não se prestou muita atenção a este potencial perigo que existia”, criticou o trabalhador social.
Francisco, por seu turno, fala em “insegurança e preocupação” sempre que, ainda ao dia de hoje, “alguém da família tem de apanhar o transporte público”. Um receio que Pablo partilha. “O atentado aparece de forma recorrente na minha cabeça quando viajo de transportes e, por exemplo, um comboio fica parado durante muito tempo”.
“Ir à Atocha de comboio provoca inquietação, mesmo que já tenha passado muito tempo não se esquece”, lamentou Francisco.