"Eu estava lá nessa última missa. Ele disse-me 'vou a Roma e volto'. Eu respondi-lhe 'merecemos que sejas o Papa'. Ele sorriu como algo impossível e não queria ser Papa. Mas foi como lhe dissemos: tornou-se Papa", recorda à Lusa Eduardo Bordón, de 49 anos, responsável por um refeitório comunitário.
"Bergoglio queria, além do refeitório, que construíssemos um abrigo para crianças em situação de rua. Queria construir isso ao regressar de Roma, mas não regressou", conta Eduardo.
No dia 11 de fevereiro de 2013, às 18 horas, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, deu uma missa na pequena paróquia de Nossa Senhora Imaculada de Lourdes, no bairro de Flores, em Buenos Aires. Devido ao pequeno tamanho da capela, um palco foi armado na rua. Bergoglio podia ter feito a missa na Catedral Metropolitana, a dez quilómetros daqui, mas não seria Bergoglio se não se deslocasse até os bairros, geralmente carentes, da cidade.
Durante a homilia, como de costume, Bergoglio criticou o então governo da ex-Presidente Cristina Kirchner (2007-2015) "pela expansão das drogas, do tráfico de pessoas, da violência e da corrupção". Paralelamente, o então Papa Bento XVI tinha anunciado a sua renúncia a partir daquele dia 28 de fevereiro.
Jorge Bergoglio tinha sido o segundo cardeal mais votado no conclave anterior, mas quase ninguém acreditava que realmente pudesse haver um Papa latino-americano. Mesmo assim, entre os fiéis, alguém gritou "Que Deus e Nossa Senhora façam-te Papa, Bergoglio!". Em seguida formou-se um coro: Papa! Papa! Papa!". Parecia mais uma expressão de desejo remoto do que uma visão. Porém, 30 dias depois, na praça São Pedro, ecoava o anúncio: "Habemus Papam".
No dia 26 de fevereiro de 2023, o cardeal Bergoglio pegou o voo a Roma. Três dias antes, em 23 de fevereiro, proferiu uma missa privada para um pequeno grupo de sacerdotes, prometendo voltar uma semana depois.
"A marca dele sempre foi a humildade. Foi assim do começo ao fim. Mesmo tendo poder, manteve os princípios, nunca perdeu os valores. Quando vinha para o seu bairro, não era um cardeal. Era um pai protetor, um vizinho. Parava para tomar chimarrão connosco (infusão popular a base de erva). Mesmo com direito a um carro particular, preferia usar transporte público", relembra Eduardo Bordón.
Ao assumir como arcebispo, Bergoglio doou o automóvel e recolocou o motorista em outro posto. Era comum vê-lo na linha A do metro de Buenos Aires entre a Praça de Maio, onde fica a Catedral Metropolitana, e o bairro de Flores, em torno dos sete quarteirões onde nasceu, cresceu, jogou bola, estudou e até deu os seus primeiros passos como sacerdote na Basílica de São José.
"Aqui, as pessoas queixam-se porque ele não voltou à Argentina, mas isso não me parece um problema nem motivo para lamentos. Entendo que muitos quisessem que ele voltasse, mas ele fez muitas coisas pelos pobres daqui, mesmo à distância. Acredito que ele tenha feito muito mais coisas boas, com ações concretas contra a guerra da Rússia contra a Ucrânia, contra o genocídio na Palestina ou contra o acúmulo de riquezas nas mãos de poucos. Ele não veio à Argentina? Não veio, mas tudo o que ele fez foi muito mais importante", pondera à Lusa a locutora Abril Veccoli Pereyra, de 28 anos, moradora de Flores.
"Eu hoje venho à Igreja porque ele aproximou as novas gerações. Ele convidou-nos a todos ao incluir todas as minorias. Como argentina e moradora de Flores, sinto-me muito orgulhosa por termos tido alguém que pensasse em nós, por ser um de nós", descreve, emocionada, Abril.
"Eu não choro por tê-lo perdido. Eu agradeço aos céus por tê-lo tido", conclui Eduardo.
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