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"O mar onde se banham é a rota migratória mais mortífera do mundo"

Quando o ano de 2022 terminar, mais de 2.000 pessoas terão morrido no Mar Mediterrâneo. A crise de refugiados às portas da Europa não tem a mesma atenção que em 2015, mas não implica que tenha desaparecido. Perante uma União Europeia relutante em acolher mais refugiados (de fora do continente), Laurence Bondard, porta-voz do organização SOS Mediterranée é a convidada do Vozes ao Minuto desta terça-feira.

"O mar onde se banham é a rota migratória mais mortífera do mundo"
Notícias ao Minuto

08:34 - 20/12/22 por Hélio Carvalho

Mundo SOS Mediterranée

No ano de 2022 assistiu-se a um novo crescimento exponencial no número de migrantes que tentaram fazer a perigosa viagem entre o Norte de África e a Europa. E o uso da palavra perigosa não é pouco factual: a travessia do Mediterrâneo Central é a rota de imigração mais mortífera do mundo. Cerca de 80% das mortes registadas no Mediterrâneo foram nesta travessia e, em 2022, cerca de 124 mil tentaram fazer a viagem. Mais de 1.500 não chegaram à Europa nem voltaram a África vivos.

Segundo os dados da Organização Internacional para as Migrações, tentaram atravessar o Mar Mediterrâneo mais de 197 mil pessoas em 2022. E, desde 2014, morreram mais de 25 mil pessoas nas águas do mar.

As organizações não-governamentais (ONG) que resgatam migrantes em risco no Mediterrâneo passaram por vários desafios. Apesar de o aumento da inflação ter gerado, por consequência, um aumento no número de refugiados, esta nuance não se refletiu numa maior atenção mediática e política. Mesmo depois de, a partir de outubro, um novo governo de extrema-direita e anti-imigração ter tomado conta do poder em Itália.

Em entrevista ao Notícias ao Minuto, Laurence Bondard, diretora de comunicações da SOS Mediterranée - a organização responsável pelo navio Ocean Viking -, faz um balanço ao apoio humanitário no Mediterrâneo Central em 2022 e às principais dificuldades vividas pelas associações e pelos migrantes na rota mais perigosa do mundo.

De que forma foi diferente prestar apoio humanitário no Mediterrâneo em 2022?

Acho que é importante que percebamos que estamos a salvar vidas no mar. Não interessa quem, o seu estatuto, a sua nacionalidade, o porquê ou o como é que as pessoas chegam em risco. Isto é muito importante porque esta zona do mundo, especificamente, não tem quaisquer meios de busca e resgate estatais. Estamos a operar no Mediterrâneo Central, que é a rota de imigração mais mortífera do mundo desde 2014 e, infelizmente, as coisas não têm melhorado.

Desde o início do ano, mais de 1.500 pessoas pereceram no mar - só no Mediterrâneo Central ocorreram cerca de 80% das mortes registadas no Mediterrâneo em geral. E estes são os naufrágios conhecidos - é muito, muito provável que estes números sejam extremamente subestimados.

Há uma especificidade este ano, que é a complexificação da nossa operação nesta parte do mundo e que este ano se tornou maior do que em anos anteriores. Tivemos de explicar e de responder à questão ‘Porque é que resgatam?’ ou ‘Será correto resgatar pessoas no mar’, o que é… inexplicável. É infeliz que tenhamos de explicar que qualquer pessoa em risco no mar deve ser resgatada. Isto segundo as convenções marítimas e as leis humanitárias internacionais. Tivemos de explicar isto ano após ano mas, este ano, especialmente no final do ano, tornou-se muito complicado de o deixar claro.

E então quais foram as maiores dificuldades às operações este ano?

Os nossos desafios dividem-se em dois. O primeiro é que estamos a operar sem coordenação. A coordenação implica que os centros de coordenação marítima competentes podem delegar alertas de socorro a todos os navios nas proximidades, podem coordenar que navio vai para onde e quando, de modo a garantir que é capaz de assistir quem estiver em risco. Isto não está a acontecer no Mediterrâneo Central; não acontece há anos e é por isso que nós próprios começamos a operar em 2016, porque não existem coordenação e meios europeus para operações de busca e resgate.

A falta de coordenação aumentou dramaticamente desde 2018, quando a guarda costeira da Líbia passou a ser responsável por uma área específica de salvamento no Mediterrâneo Central.

E o segundo desafio que enfrentamos é a autorização para desembarcar num local de segurança, para completar o resgate. O resgate é feito a partir do momento em que evacuamos uma pessoa de um local de perigo e trazemos essa pessoa para um local de segurança. E um local de segurança é definido por leis marítimas internacionais como um lugar onde as necessidades básicas são acolhidas e os direitos humanos fundamentais são respeitados.

No entanto, além de não termos uma coordenação para realizar a procura por aqueles que estão em risco, em embarcações sobrelotadas, estamos a enfrentar impasses prolongados no mar, de dias, e por vezes semanas, antes de podermos desembarcar os sobreviventes. Estamos a enfrentar um enorme bloqueio e, desde novembro, que a eleição do governo de extrema-direita em Itália, liderado por Giorgia Meloni, tornou o bloqueio ainda mais forte. Estes bloqueios ocorrem há anos - aliás, enfrentamo-los há três anos - e tivemos de pedir várias vezes por locais de segurança, de pedir assistência e apoio para que os Estados designem locais de desembarque.

Isto tornou-se crítico em novembro quando o nosso navio resgatou 234 pessoas a partir de seis barcos que precisavam de socorro, no espaço de quatro dias em outubro, e tivemos de esperar várias semanas até que eventualmente nos deixassem desembarcar. Tivemos de pedir assistência a três países diferentes . França, Espanha e Grécia - e, eventualmente, a França designou um porto. O que também quis dizer que tivemos de navegar durante horas e horas, com pessoas extremamente vulneráveis a bordo, que já tinham passado por experiências próximas da morte e pelos bloqueios. Isto é o limite do que podemos tolerar e é muito preocupante que tenham chegado a tal.

O que aconteceu no último mês é uma continuação do aumento do desrespeito por leis marítimas e pelas convenções

Referiu a ascensão da extrema-direita em Itália, que sempre protagonizou um sentimento anti-imigração muito forte. Antecipa alguma eventual mudança na forma como a Europa olha para os migrantes no Mediterrâneo, numa altura em que estas políticas parecem estar aí para ficar?

Desde que começamos a operar, em 2016, temos visto uma complexificação do contexto e um aumento da criminalização das operações de busca e resgate no mar. O que aconteceu no último mês é, infelizmente, uma continuação do aumento do desrespeito por leis marítimas e pelas convenções. Portanto, é muito difícil ser otimista e dizer que, em breve, veremos um retorno da responsabilização, um retorno do respeito pela lei e pelas vidas humanas. Não posso dizer que isso vá acontecer, até porque não está nas nossas mãos.

O que posso dizer é que passaram-se anos de criminalização e está a tornar-se cada vez mais complicado que cidadãos dispostos a ajudar possam resgatar pelo menos algumas pessoas, e nós estamos a fazer uma pequena parte do que devia ser feito.

E posso dizer que não vamos parar, não há dificuldades que nos possam parar, a não ser que não tenhamos meios financeiros. Essa é a única forma de nos travar. Na verdade, enfrentamos dificuldades financeiras devido ao aumento dos preços pela inflação, ao aumento dos preços dos combustíveis e de serviços. Mas, de qualquer das formas, vamos continuar, apesar das dificuldades que nos encaram: estaremos, como sempre, a recordar as leis marítimas, a recordar que o que fazemos é legal e moral, a recordar o valor da vida humana, continuaremos a respeitar a solidariedade europeia, a apelar para o regresso de meios de busca e resgate liderados por governos e continuaremos a colocar o foco em algo que tem sido esquecido.

Aliás, esse ponto ainda não tinha mencionado, mas temos assistido a um aumento do desinteresse dos média. Desculpe dizer-lhe isto a si e aos jornalistas que demonstram interesse, mas isso tem um impacto! As pessoas não sabem que, às portas da Europa, o mar onde se banham e onde pescam é a rota migratória mais mortífera do mundo e é difícil ter uma reação.

Mencionou esse desinteresse mediático, que foi diferente relativamente aos refugiados ucranianos. Como é que analisa a diferença de tratamento mediático e social?

Eu podia dar uma opinião pessoal, mas não tenho a certeza se será relevante. A empatia é muito difícil de explicar. Mas o que posso dizer é que a situação mostrou que acolher pessoas em perigo é possível, que a Europa tem essa capacidade. A União Europeia é baseada na solidariedade e esta crise mostrou que a solidariedade europeia existe e, quando é posta em marcha, funciona. Isso é muito bom e é reconfortante para as pessoas que fugiram da guerra na Ucrânia.

Para nós, a questão agora é: porque é que isto não é também possível para outros? Isto não tem a ver com comparações: não fazem sentido, uma vida é uma vida, sem asteriscos. Vamos perceber que a solidariedade é possível.

Além disso, a questão coloca-se também sobre a vontade e a organização. No Mediterrâneo Central, a Itália acolhe sozinha cerca de 90.000 pessoas por ano [por comparação, dados da Comissão Europeia referem que a Itália acolheu 100 mil refugiados ucranianos]. Não são assim tantas pessoas, não é nada relativamente à dimensão da população europeia. E mais, as operações de busca e salvamento não são 100% das chegadas, já que a guarda costeira italiana também resgata pessoas dentro da sua responsabilidade. Eles farão o seu trabalho, mas assim que algo deixa de estar dentro da sua área de operações, isso torna-se um problema.

Não há nada de político em salvar alguém: ninguém vai questionar se alguém cair ao chão e for chamada uma ambulância

Ou seja, veem uma diferença no tratamento do resgate civil.

O que tem sido criminalizado especificamente são as embarcações de organizações não-governamentais (ONG), que ajudam um pequeno número de pessoas de cada vez. Está a ser politizado algo que não é político. Não há nada de político em salvar alguém: ninguém vai questionar se alguém cair ao chão e for chamada uma ambulância. Ninguém vai questionar porque é que aquela pessoa foi salva, quem é ou porque caiu. Ninguém vai depois pedir à ambulância para dar voltas pelo hospital antes de concordamos na entrada da pessoa.

Notícias ao Minuto Laurence Bondard, porta-voz da SOS Mediterranée© SOS Mediterranée  

Desde o início do ano, 15% das pessoas resgatadas no mar são salvas por navios de ONGs. Isto é um número interessante, não são assim tantas pessoas.

O resto é salvo por guardas costeiras?

Sim, se o navio não vira ou se escapa à intercepção pela Líbia, é normalmente salvo pela guarda costeira. Sabemos que naufrágios podem acontecer, mesmo próximo da costa. A costa italiana é muito perigosa.

Isto também demonstra que a criminalização é o foco num símbolo, e não numa realidade. E não podemos esquecer que o facto de sermos bloqueados, enquanto esperamos durante dias e semanas antes de desembarcarmos, é um período de tempo em que não podemos operar e resgatar pessoas em risco.

Introduziu a questão da Líbia que, como sabemos, tem um acordo plurianual com a União Europeia e com o governo italiano, para o apoio no controlo fronteiriço no norte de África - assinado em 2017 por cinco anos e renovado automaticamente em novembro deste ano. Este acordo incluiu o pagamento de milhões de euros ao governo de Tripoli para limitar a passagem de migrantes pelo Mediterrâneo Central. Entretanto, o Frontex continua sob debaixo de muitas críticas devido à forma agressiva como tem vigiado as fronteiras da União Europeia - recentemente, a Human Rights Watch acusou a autoridade de graves violações de direitos humanos e de conluio com a polícia líbia. Como é que avalia a coordenação entre as autoridades europeias e a Líbia para o controlo de fluxos migratórios?

Bem, não posso responder sobre o Frontex, porque o Frontex não tem meios marítimos no Mediterrâneo Central, que é uma especificidade nessa região comparativamente às ações na Grécia. Como referiu, prefiro remeter para as observações da Human Rights Watch.

Mas de facto, a União Europeia está a financiar, a equipar e a treinar guardas costeiros líbios. Por um lado, foram travadas as operações europeias de busca e resgate em 2014 e, por outro, foi adjudicado o controlo fronteiriço. Passou-se a colocar o foco no controlo fronteiriço.

A questão da guarda costeira líbia é realmente trágica, na medida em que desde a implementação em 2018 da responsabilidade da Líbia em operações de busca e salvamento, temos visto intercepções muito perigosas nas quais pessoas em risco acabam por cair ao mar. Eles são treinados pela União Europeia para resgatar mas, no final do dia, eles retornam refugiados à Líbia, que não é considerada pela Organização das Nações Unidas como um local de segurança há muitos anos. Em 2022 foram interceptadas mais de 22 mil pessoas pela polícia líbia.

Os sobreviventes que são salvos pelo Ocean Viking recordam histórias horríveis de violência. Não vou entrar em detalhes, mas eles contam histórias sobre as suas fugas, sobre arriscarem morrer no mar para fugir da Líbia; temos cada vez mais testemunhos de pessoas a explicar as deportações pela guarda costeira líbia, para serem devolvidas a um ciclo de violência para serem imediatamente detidas. São colocadas num círculo no qual ou pagam pela sua liberdade, ou tentam fugir e, como já vimos, a única fuga possível é pela rota mais perigosa do mundo. Há pessoas que são interceptadas três ou quatro vezes, o máximo que ouvimos foi onze vezes.

Portanto está bem documentado que a Líbia está em caos, que as pessoas fogem por enfrentarem violência terrível, abusos e desrespeito pelos direitos humanos. É óbvio que não é um local de segurança e a União Europeia está de facto a financiar este sistema.

Somos cidadãos e isto é 'citizenship'

Perante estas obstáculos, por onde passa o processo de recuperar o interesse pela questão dos refugiados no Mar Mediterrâneo?

Qualquer pessoa que partilhe o valor da vida e que partilhe esta ideia de que é preciso resgatar pessoas em risco no mar, e não só em terra, pode participar. A primeira ação a fazer, diria, é participar financeiramente, com os meios que qualquer um tem. As pequenas doações são extremamente úteis, tal como as grandes. Não há limite. Somos cidadãos e isto é um navio de cidadãos [trocadilho com as palavras ‘citizen’ - cidadão - e ‘ship’ - navio -, que juntas formam ‘citizenship’ - cidadania].

Este tem sido o mote do SOS Mediterranée desde o primeiro dia, em 2016. Este ano, mais do que nunca, precisamos de um grande apoio financeiro por parte dos cidadãos europeus porque precisamos de manter os meios, as equipas profissionais aptas a resgatar, a cuidar e a enfrentar as dificuldades; mas, se não tivermos estes apoios financeiros, não temos forma de pagar pelo navio e não conseguiremos continuar a missão.

E para além disso, para aqueles que querem fazer algo mais ou algo diferente, passa por ser consciente, por fazer voluntariado, por discutir e procurar que, pelo menos, a história seja escrita. Que as pessoas sejam conhecidas, que aqueles que desaparecem não desapareçam discretamente e que aqueles que são salvos continuem a fazer parte dessa história.

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