"A perda de um filho é das experiências humanas mais devastadoras"

Diogo Jota morreu esta quinta-feira, 3 de julho, juntamente com o irmão, André Silva, no seguimento de um acidente de viação. O Lifestyle ao Minuto falou com Patrícia Câmara, psicóloga e presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, para perceber de que forma se lida com a perda repentina de dois filhos. 

Diogo Jota

© Instagram/Diogo Jota

Mariana Moniz
04/07/2025 15:40 ‧ há 5 horas por Mariana Moniz

Lifestyle

Diogo Jota

Esta quinta-feira, 3 de julho, foi marcada pela morte do internacional português Diogo Jota na sequência de um acidente de viação, juntamente com o irmão, André Silva. 

 

Além da mulher e três filhos, Diogo Jota deixa também os pais que agora entram num processo de luto particularmente doloroso. 

O Lifestyle ao Minuto falou com Patrícia Câmara, psicóloga e presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, para perceber de que forma é que se lida com a perda repentina de dois filhos. 

Notícias ao Minuto Patrícia Câmara© Psicóloga e Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática  

Qual o impacto de perder dois filhos de repente?

Seria impossível responder de forma única à pergunta que apresenta. A dor da perda é sempre singular e o seu impacto incomensurável. Pô-lo por palavras seria reduzi-lo. Podemos calcular que a inscrição traumática seja impensável, assim como impensável é pensar que se pode saber a dimensão do impacto que tem. 

A perda de um filho é das experiências humanas mais devastadoras que se pode ter, como pode imaginar. A morte repentina de um filho acresce a esta devastação a dor da brutalidade do desaparecimento sem qualquer hipótese de preparação interna ou despedida. Se o impensável se apresenta diante dos nossos olhos, a curvatura da vida perde sentido e se esse impensável se apresenta sem que houvesse qualquer hipótese de ver falada ou agida alguma continuidade de sentido para depois da perda, pior ainda. O espaço que medeia a presença da ausência não se pode constituir quando a perda é repentina e contraintuitiva, sendo, pelo menos numa primeira instância, enlouquecedora. Assim, claro, a perda repentina de dois filhos é cumulativa e duplamente impossível de ser elaborada e, uma vez mais, apesar de passível de ser compreendida na sua universalidade é devastadora de forma singular. 

Continua a ser mais aceitável que as mulheres expressem a sua dor de forma mais evidente e que os homens a silenciem e racionalizem, dificultando a procura de apoio

O pai e a mãe podem sentir e/ou expressar o luto de forma diferente? Se sim, como e porquê?

Os pais, mães, cuidadores viverão o luto de forma única e individual. Cada um de nós expressa e vive a dor da perda de maneiras diferentes, muitas vezes diferentes até da maneira que teríamos imaginado viver caso algumas destas coisas nos acontecesse. O nosso corpo (psicossomático) tem respostas psicofisiológicas que não temos como antecipar. Fará o melhor que conseguir de acordo com a sua própria bagagem, desde movimentos dissociativos a movimentos aparentemente hiperadaptativos.

O processo de luto é sempre um processo e o seu fim, não é a ausência de dor. Contudo, preconceitos sociais e atribuições de género podem dificultar alguns movimentos internos e externos que podiam amparar ou criar condições para elaborá-lo na medida do possível o melhor possível. Continua a ser mais aceitável que as mulheres expressem a sua dor de forma mais evidente e que os homens a silenciem e racionalizem, dificultando a procura de apoio, por exemplo, psicológico e farmacológico no caso dos homens e criando momentos de ajuizamento sobre as mulheres que não expressem de forma evidente a sua dor. O mesmo acontece para o que é expectável que uma mãe sinta ou que um pai sinta. Assim, para responder à sua pergunta, o ser-se mãe ou pai não confere per si um tipo específico de resposta emocional à perda dos filhos. Mas os preconceitos e as atribuições de condutas e sentires às mães e aos pais já poderão constituir-se como um entrave à vivência do próprio processo de dor e luto. 

A luta interna entre a dor da perda e dor de se estar vivo na ausência do outro, a dimensão traumática que inscreve um corte na temporalidade e na continuidade da vida pode levar a depressões profundas

Quais as consequências físicas e psicológicas que podem ocorrer?

A complexidade da perda, a especificidade da relação entre as pessoas envolvidas e a bagagem psicossomática de resposta aos acontecimentos de vida torna impossível uma resposta fechada. O que podemos saber é que as consequências serão múltiplas e terão expressões físicas e psicológicas diversas, sendo expectável que, dada a espessura destes acontecimentos, corpo e mente vão fazendo movimentos de desintegração e integração extremos para lidar com a própria dor.

A luta interna entre a dor da perda e dor de se estar vivo na ausência do outro, a dimensão traumática que inscreve um corte na temporalidade e na continuidade da vida, poderá trazer, com certeza, alterações do sono, apetite, baixas imunitárias variadas, bem como, pânico, angústia, sentimentos de culpa, alterações da memória e comprometimento na capacidade de pensar e, claro, poderá, no limite, conduzir a depressões profundas. 

A dor intensa da perda e da perda abrupta amplia, e gera risco de luto patológico, isto é, de uma impossibilidade de encontrar sentido que não na ideia da reunião com quem se perdeu, pelo que o acompanhamento psicoterapêutico é, muitas vezes, imperativo.  

O nosso corpo, irá tentar conduzir-nos por movimentos internos e externos para tentar encontrar formas de não se desintegrar por completo

Como é que os pais que perdem os seus únicos filhos lidam com as suas emoções no momento e a longo prazo?

A dimensão universal da perda permite-nos imaginar que, na sua maioria, as mães e pais que sofrem uma perda desta dimensão, ficam, num primeiro momento em estado de choque, sem conseguir processar ou verbalizar essa perda. Uma vez mais, o nosso corpo, irá tentar conduzir-nos por movimentos internos e externos para tentar encontrar formas de não se desintegrar por completo. Desde estados confusionais, a hiperracionalizações, a estados aparentemente maníacos, a dormência psicológica e tantas outras manifestações de luta contra a dor, ou para suportar a dor. 

Da negação, à raiva, à tristeza profunda, à resignação e, em alguns casos, à elaboração, o luto não acontece de forma continua e sem oscilações, é dinâmico e, muitas vezes, inacabado

À medida que o tempo for avançando alguns destes movimentos poderão dar lugar a outros, a agonia permanente da dor passará a ser sentida por ondas que oscilam com momentos de tentativa de integração e elaboração da dor e da perda e da vida em torno dela e, quem sabe, para além dela. 

Da negação, à raiva, à tristeza profunda, à resignação e, em alguns casos, à elaboração, o luto não acontece de forma continua e sem oscilações, é dinâmico e, muitas vezes, inacabado. 

A ausência dos filhos únicos, pode ampliar ainda mais o vazio identitário e existencial. Contudo, todos os filhos e filhas são únicos. E a perda é sempre incomensurável.

O luto pode durar anos ou nunca se encerrar por completo, embora seja possível encontrar formas de viver com a dor

Muitos pais, mães e cuidadores perguntam-se: 'Que razão há para continuar?'. E isso acontece, mesmo quando se tem mais filhos ou filhas. Se é verdade que o ter um outro filho pode conferir algum sentido e 'dar força para continuar', esta ideia tem de ser bem elaborada para que não se torne um peso para o filho que vive. 

O luto pode durar anos ou nunca se encerrar por completo, embora seja possível encontrar formas de viver com a dor. Por outras palavras, a perda de um filho será, mesmo que em cicatriz, uma ferida aberta, o que não significa que a vida fique para sempre imbuída na hemorragia dessa ferida. 

O luto por filhos não é linear, tem altos e baixos intensos. Acarreta habitualmente sentimentos de culpa extrema, fantasias de reunião com os filhos (ideação de morte) e desorganização psíquica persistente

Como é o processo de luto nestes casos?

Como já referi, os processos de luto são sempre processos individuais. A especificidade de ser o filho ou filha única quem se perde pode sempre ampliar o vazio existencial pela perda de continuidade que introduz, mas não necessariamente torna os pais e as mães reféns dela para toda a vida. 

O luto por filhos não é linear, tem altos e baixos intensos. Acarreta habitualmente sentimentos de culpa extrema, fantasias de reunião com os filhos (ideação de morte) e desorganização psíquica persistente, pelo que a presença de apoio emocional, rituais simbólicos e tempo são fatores essenciais para uma possível integração da perda.

Frases como 'o tempo vai ajudar' ou 'agora estão em paz', podem ser bem-intencionadas, mas não são as ideais e devem ser evitadas

De que forma a família e amigos podem ajudar numa tragédia destas?

Estando e sendo presentes, não só no momento do embate, mas a longo prazo também. Uma presença que saiba respeitar os momentos em que as pessoas precisam de estar sozinhas. Garantindo sempre que são um lugar de escuta, de acolhimento e nunca de julgamento. Frases como 'o tempo vai ajudar' ou 'agora estão em paz', podem ser bem-intencionadas, mas não são as ideais e devem ser evitadas, principalmente nos primeiros momentos após o embate com uma situação que é em si mesma um 'desmembramento'.

É natural que a força vital fique muito diminuída, pelo que, muitas vezes, ajudar em tarefas práticas nos primeiros dias ou meses é também uma forma de garantir que quem perdeu não cai na solidão e na tristeza profunda.

Também é natural que possam ocorrer movimentos de aparente 'ingratidão' ou raiva, pelo que é importante que as pessoas à volta compreendam estes movimentos tentando não reagir a eles de forma impulsiva. E, claro, ir incentivando, com tempo e sem imposição imediata, o acompanhamento psicológico e/ou psicoterapêutico. E, ainda, acima de tudo, ser paciente com o luto, mesmo que se tenham passado meses ou anos da perda.

A dissecação dos acontecimentos associados à perda, a exploração emocional e outras formas de invasão de espaço e intimidade são movimentos transgressores que ampliam o impacto traumático

Sendo uma figura pública, como devemos abordar esta questão?

Era muito importante que se respeitasse a dor e o sofrimento, sem qualquer exploração dessa mesma dor e sem mediatização dessa dor. Não só pela família, como por todos nós. A identificação à perda é inequívoca e apoiar mostrando presença, afeto e gratidão são suportes de amparo importantíssimos. Já a dissecação dos acontecimentos associados à perda, a exploração emocional e outras formas de invasão de espaço e intimidade são movimentos transgressores que ampliam o impacto traumático global, impedindo a mentalização da perda e a humanidade empática de acontecer.

Discrição, empatia e respeito profundo, deveriam ser as diretrizes para tratar uma questão destas. Ser com uma figura pública em nada deve mudar o cuidado que devemos todos ter

Só se deve parar quando se vê um acidente, se for para ajudar, caso contrário estaremos apenas a aumentar sensações fisiológicas associadas ao pânico dentro de nós e não acrescentamos nada ao outro. A psicanálise há muito vem alertando para a nossa tendência para voltar uma e outra vez ao lugar dos acidentes, das situações traumáticas nossas e dos outros, talvez na esperança de que não tenham acontecido, mas de cada vez que o fazemos retraumatizarmo-nos. Aproveitar uma situação desta com uma figura pública, só faria sentido se fosse para homenagear e não para descrever pormenorizada as suas circunstâncias privadas. 

Discrição, empatia e respeito profundo, deveriam ser as diretrizes para tratar uma questão destas. Ser com uma figura pública em nada deve mudar o cuidado que devemos todos ter. 

A carga traumática estará presente, mas será possível, a pouco e pouco, na maior parte das vezes, viver com a dor dessa carga e viver para além dela

Trata-se de uma questão de 'síndrome do ninho vazio' permanente? Como é que estes pais conseguirão viver o resto das suas vidas da forma mais saudável possível?

Penso que não é bem a mesma coisa. Mais do que um ninho vazio é um vazio no ninho. A carga traumática estará presente, mas será possível, a pouco e pouco, na maior parte das vezes, viver com a dor dessa carga e viver para além dela. 

Ainda assim, acontece, com alguma frequência, dificuldades na manutenção do casal, pela carga emocional que a perda acarreta, pelo que era prudente ponderar-se recorrer a terapia de casal, para além da terapia individual. Existem também redes de apoio entre pais que perderam os seus filhos e que pode ser fundamental para partilhar e validar a dor.

É importante, também, que os pais e mães possam criar e possibilitar novos vínculos de sentido, que, claramente não substituirão os filhos, mas que podem conferir vida, como ações sociais, envolvimento em ativismo associados às circunstâncias das perdas, atividades de continuidade da memória afetiva dos filhos, atividades outras nunca experimentadas e por aí fora.

É natural que, do ponto de vista psicossomático, o corpo e a mente reajam com angústia, com memórias intrusivas e tristeza aguda

Pais que já passaram por tragédias semelhantes (como Tony Carreira) podem reviver o momento ao ver a notícia? De que forma isso os pode afetar?

Claro que sim. Mais uma razão para que as notícias devam ser dadas de forma cuidadosa. Situações de perdas similares podem sempre reativar intensamente a situação traumática da perda. É natural que, do ponto de vista psicossomático, o corpo e a mente reajam com angústia, com memórias intrusivas, tristeza aguda, insónias, como acontece nos síndromes pós-traumáticos.

Há uma espécie de processo de ressonância empática traumática, pelo que, nestes momentos, o entorno deveria ser mais terapêutico e menos retraumatizante. 

Por mais que no momento da perda e nos que lhe sucedem pareça impossível, é possível viver com dor sem que ela destrua e ocupe completamente a nossa vida

Enquanto profissional de saúde, que conselhos daria a um casal que acabou de perder os filhos dessa forma tão trágica?

Vou só reformular um bocadinho a pergunta na resposta, porque gostaria de reiterar que, quer como profissional de saúde, quer como ser humano, não tenho nenhum conselho direto a dar a quem acabou de perder os filhos, e que ousar fazê-lo seria cair na tentação de dizer qualquer coisa para quebrar um silêncio que nos congela a todos. Contudo, talvez possamos é dizer que é legítimo sentir tudo o que se estiver a sentir e alertar, talvez aqui seja uma espécie de conselho, para que não suportem a dor "para além dos limites do suportável" (célebre frase do psiquiatra José António Barata) procurando ajuda psiquiátrica e psicológica para a tornar menos invasiva de todo o espaço mental. 

O luto, claro, será sempre longo, mas não tem de ser solitário. Por mais que no momento da perda e nos que lhe sucedem pareça impossível, é possível viver com dor sem que ela destrua e ocupe completamente a nossa vida.

Perder um filho é uma ferida que nunca cicatriza completamente, cola-se à existência e à identidade, e os pais e mães aprendem, com o tempo, a viver com ela

É possível superar a dor de perder um filho? Se sim, como?

Mais do que falar em superar a dor, porque a dor não se supera, podemos falar em transformá-la e aprender a viver com ela. Perder um filho é uma ferida que nunca cicatriza completamente, cola-se à existência e à identidade, e os pais e mães aprendem, com o tempo, a viver com ela. Isso não significa que esqueceram, mas sim que foram encontrando novos modos de estar no mundo, mesmo com a ausência, acompanhados também da presença interna dos filhos que perderam.

A aceitação interna da condição existencial de se ser também mortal e finito, torna a infinitude dos momentos de encontro vividos e a viver uma forma de continuidade mais abrangente

A dor, perde a violência inicial incapacitante, mas permanece como uma marca existencial indelével. Com apoio, tempo e cuidado, muitos pais e mães conseguem reencontrar sentido de vida e da vida e aprendem a aceitar vivê-la sem culpa. A aceitação interna da condição existencial de se ser também mortal e finito, torna a infinitude dos momentos de encontro vividos e a viver uma forma de continuidade mais abrangente. Grupos de pais e mães, a rede de suporte, apoio psicológico e psiquiátrico, participação em movimentos sociais associados à circunstância da perda, entre outros exemplos são formas de elaborar a própria perda e de integrá-la na própria resposta de luto.

Como se reconstrói a vida depois desta perda repentina?

Reconstruir a vida após a perda repentina de um filho é, claro, um processo profundamente doloroso, longo e sem caminho predefinido. Vai acontecendo aos poucos e com refluxos, com sensação de aproximação e afastamento do epicentro da dor. O tempo vai trazendo pequenos recomeços.

Reconstruir-se, então, não será voltar ao ponto anterior à perda, mas sim ser-se a pessoa habitada pela ausência. Viver pode ir voltando a ser possível; não apesar da perda, mas com ela

Nos primeiros momentos, tudo pode parecer impossível e há uma perda tremenda de vitalidade, o dia a dia é ditado pela sobrevivência: o corpo enfraquece, o mundo perde o sentido, e a dor é incapacitante. O quotidiano é invadido por uma conversa interna infinita, feita de memórias, perguntas sem resposta e saudade crua. 

A pouco e pouco, preferencialmente com apoio profissional, escuta acolhedora e tempo, alguns espaços internos podem abrir-se e ir criando novas oportunidades para conseguir viver e tirar partido da vida. Reconstruir-se, então, não será voltar ao ponto anterior à perda, mas sim ser-se a pessoa habitada pela ausência, mas também pela possibilidade de sentido. Viver pode ir voltando a ser possível; não apesar da perda, mas com ela.

Diogo Jota evitou viagem de avião devido a pneumotórax. Médico esclarece

Diogo Jota evitou viagem de avião devido a pneumotórax. Médico esclarece

O Lifestyle ao Minuto falou com um médico pneumologista sobre a condição de saúde que levou Diogo Jota a evitar viagem de avião. Tinha sido recentemente operado a um pneumotórax. Quais os riscos que corria.

Adriano Guerreiro | 09:39 - 04/07/2025

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