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Tatuadoras portuguesas: A discriminação de género sentida na pele

Há cada vez mais mulheres a tatuarem em Portugal, mas, para ganharem o seu espaço nos estúdios, muitas tatuadoras tiveram de lutar contra a discriminação de género. Hoje, há artistas que já só ouviram histórias. Contudo, não existe igualdade enquanto ainda houver quem as viva. Conheça os quatro testemunhos de tatuadoras portuguesas.

Tatuadoras portuguesas: A discriminação de género sentida na pele
Notícias ao Minuto

09:06 - 15/05/21 por Mafalda Tello Silva

País Tatuadoras

Desde os anos 90, tem-se assistido à democratização das tatuagens em Portugal, mas também à democratização das mulheres enquanto profissionais nesta área. 

O percurso e a experiência de cada tatuadora é diferente, mas a discriminação de género foi, e em alguns casos ainda é, uma realidade vivida por uma grande parte destas mulheres portuguesas.  

Ao Notícias ao Minuto, quatro tatuadoras, com idades entre os 30 e os 37 anos, contaram como é estar num mundo que, ainda há pouco tempo, era dominado por homens. 

No final do dia, há a recordar histórias de discriminação, memórias de preconceitos subtis, relatos de colegas de profissão ou momentos de desconforto com o género masculino dentro das quatro paredes do estúdio, ainda que nem todas estas tatuadoras tenham sido diretamente alvo das consequências da desigualdade de género.

Num momento em que há cada vez mais mulheres a tatuarem, parece estar "tudo melhor", mas, para chegarmos aqui, foi "preciso existir muita mulher", como disse a tatuadora Susana Susboom, do estúdio Minimal Ink, no Porto, em conversa com o Notícias ao Minuto. 

Aos 36 anos, a artista portuguesa, conhecida internacionalmente pelas suas criações 'Avanguard' e 'Minimal/geométrico', contou que a primeira vez que se sentiu discriminada por ser mulher foi logo quando procurava formação, por volta de 2010.  

"Até encontrar o meu mestre, que me ajudou a aprender e sempre me apoiou, foi claro que estava num mundo de homens. Houve, inclusive, um que me disse que era 'mesmo uma coisa de gaja' [querer ser tatuadora], porque 'quando uma coisa está na moda, as gajas vão todas atrás'. Foi super arrogante e mesmo machista. Foi horrível. Houve pessoas que me disseram que não podiam e agradeceram, mas havia ali uma atitude arrogante", recordou a tatuadora, que trocou a ilustração e animação digital de histórias infantis para a televisão pelas agulhas, após ter-se "apaixonado" pela atividade quando procurava inspiração para o seu trabalho.  

Contudo, para Susana Susboom, o momento em que se sentiu mais discriminada por ser uma mulher que tatuava foi quando participou, pela primeira vez, numa convenção de tatuagens, em Lisboa. De acordo com a artista, na altura, além de si, havia mais três tatuadoras, num universo de cerca de 100 tatuadores.

"Notavam-se nitidamente olhares, uma arrogância, um desprezo, não me senti bem-vinda. Ninguém me atacou nem me ofendeu, mas eu e aquelas raparigas parecíamos uma espécie de nódoa. Lembro-me que, na altura, aquilo me magoou muito. Senti-me rejeitada e só por ser mulher, não era pelo facto de se sabia ou não o que estava a fazer ou por não ter talento. O meu trabalho nunca foi posto em causa, o que era posto em causa era eu ser mulher. O que ainda é mais grave", explicou a artista, ressalvando que, contudo, é preciso ter "cuidado com generalizações", pois nem todos os homens com quem se deparou, no início da carreira, eram machistas, nem pode afirmar que o eram fora do ambiente laboral. 

Ainda assim, na altura, Susana Susboom sentiu que não podia deixar de enfrentar aquela expressão de desigualdade sem levar a cabo "uma espécie de tomada de posição" e resolveu fazê-lo de cor de rosa. 

"Comprei tudo para o meu stand na convenção cor de rosa e eu nem sequer uso essa cor. Mas ao estar a ser destacada de forma negativa por ser mulher, pensei que devia chamar mais a atenção e comprar para o meu 'stand' coisas cor de rosa super florescentes, um 'girl power' mesmo. Sim, sou mulher. Sim, estou aqui e sim, uso cor de rosa, era esta a posição que quis passar", justificou, recordando que muitas das suas colegas de profissão também partilharam consigo, ao longo dos anos, histórias de discriminação de género no mundo das tatuagens. 

No entanto, passados cerca de 10 anos desde que começou a tatuar, a artista sublinhou que, em 2019, quando voltou a participar na mesma convenção na capital, o cenário com que se deparou já era outro. 

"Está tudo muito melhor. Nessa convenção, estavam mais mulheres do que homens. E estavam mulheres e homens a partilhar o 'stand'. O ambiente era muito humano e foi aí que percebi que as coisas atingiram um ponto de igualdade. Havia muito a ideia de que o homem é que fazia bem, é que tatuava bem, perdeu-se isso e a mulher ganhou o seu destaque na área", comentou. 

Susana Susboom, que se assume como humanista e não como feminista por considerar um movimento extremado, referiu ainda que a chegada das mulheres à tatuagem foi também algo benéfico para o próprio mercado e clientes: "Quando apareci, senti da parte de todas as clientes mulheres que era uma lufada de ar fresco. E a verdade é que comecei a ter muitas mulheres para tatuar, porque os homens, segundo o que me contavam, eram muito brutos, ou até tentavam seduzir, o que levava muitas mulheres a não se sentirem à vontade para fazer uma tatuagem".

"Tive clientes que não queriam ser tatuados por mim só por ser mulher"

Já a artista MuRaSaKi, tatuadora na Bullet BG Tattoo Shop, em Cascais, contou ao Notícias ao Minuto que, ao longo da sua carreira já de 11 anos, foi e ainda continua a ser vítima de discriminação de género, não por colegas, mas por clientes. 

"Tive clientes que não queriam ser tatuados por mim só por ser mulher e alguns foram menos discretos do que outros. O pior caso que recordo foi quando estava sozinha no estúdio e chegou um cliente estrangeiro. Perguntei-lhe no que podia ajudar e ele perguntou se não estava ali ninguém. Disse-lhe que estava eu e que me podia dizer o que queria. Ele continuou: 'Não, eu quero falar com alguém aqui do estúdio!". Voltei a insistir e disse que eu estava ali e ele respondeu-me que queria 'falar com o tatuador'. Quando referi que era eu, ele simplesmente olhou para mim, deu meia volta e saiu… nem quis ver os trabalhos", recordou a tatuadora, de 37 anos. 

Entre vários episódios, noutros estúdios, MuRaSaKi recordou também que teve casos de clientes que, para tirar alguma dúvida, falavam apenas com o "homem que estivesse mais perto" na loja, ignorando a sua presença ou mesmo as suas respostas, ou que chegaram a preferir ser tatuados por "aprendizes" do que por si "só porque eram homens".

"Muitas vezes as pessoas nem chegam a ver o nosso trabalho. [Os clientes] Querem que seja o homem a fazer o trabalho porque pensam à partida que sou apenas a rececionista ou a 'body piercer', como se não pudesse ser tatuadora por ser mulher, ou também porque acreditam que o homem vai fazer um trabalho melhor só por ser homem. Até já me aconteceu, em trabalhos que eram muito mais a minha área [tatuagem de 'Linework' e em aguarela] do que a dos meus colegas, o cliente, podendo escolher, optar pelo tatuador, mesmo com os meus colegas a referirem que eu era mais adequada para aquele trabalho.  O que mais me choca é que há muitas mulheres a pensar assim, em cada quatro casos destes, com que me deparo, três são mulheres", lamentou. 

Ainda que garantindo que nunca foi assediada sexualmente no local de trabalho e que sempre contou com colegas do sexo masculino "cinco estrelas", a tatuadora e também 'body piercer' algarvia admitiu que tem "algum cuidado para não ser mal interpretada", seja através da forma como se veste ou da "simpatia" que transparece, e contou que já se sentiu "mais vulnerável" quando ficou também sozinha no estúdio e um cliente insistiu para que "visse os seus órgãos genitais" por causa de um piercing: "Dei toda a informação [sobre piercings genitais] e a pessoa insistia demasiado que me queria mostrar os genitais só para ver se era possível. Respondi de forma um pouco mais ríspida, disse que, para fazer, era necessário marcação, que certamente seria possível e que eu não precisava de ver nada. Fui andando para junto da porta, para se fosse preciso chamar alguém, e a pessoa acabou por sair e nunca mais voltar".

Sobre se o mundo das tatuagens ainda é hoje dominado por homens em Portugal, MuRaSaKi afirmou que, apesar de achar que ainda há mais homens do que mulheres a tatuar, é uma questão de tempo até a balança ficar equilibrada. "Conheço cada vez mais mulheres nesta área e muitas são mesmo muito boas profissionais!", denotou, acrescentando que, mesmo entre homens tatuadores, atualmente, "já se vê maior união e partilha", o que "também contribuiu para uma grande evolução artística na área". 

Como tatuadora, a artista, que chegou a frequentar os cursos superiores de Antropologia e Engenharia Elétrica e Eletrónica, referiu ainda que também "é cada vez mais natural" a presença de uma mulher para quem chega a um estúdio, mas que, ainda assim, há pessoas que, "apesar de terem várias tatuagens", ainda lhe dizem, "com um sorriso", que é a primeira mulher que os tatua.

"Já me senti desconfortável com clientes que passaram um pouco os limites"

Atualmente a viver e a trabalhar em Londres, Nouvelle Rita, de 33 anos, garantiu ao Notícias ao Minuto que nunca sentiu que fosse discriminada com base no género "no mundo da tatuagem". "Sinto que sempre tive bastante sorte nesse aspeto", referiu a tatuadora que adotou o estilo 'Nouvelle' e de 'Linework'. 

"Para dizer a verdade, desde o início da minha carreira como tatuadora que tenho vivido um pouco à parte da esfera da tatuagem no geral. Nunca senti que fosse discriminada pelo meu género, mas também não sei qual é a opinião de grande parte das pessoas que formam o núcleo do mundo da tatuagem, especialmente em Portugal. A única coisa que se aproxima disso é quando tenho pessoas no meu Instagram que assumem que sou homem", afirmou. 

No entanto, a artista, que começou a tatuar aos 25 anos em Portugal e que assentou na capital britânica depois de ter passado um ano a viajar e a tatuar pelo Sudeste Asiático, Austrália e Nova Zelândia, assumiu que já foi assediada no local de trabalho. 

"Sim, já me senti desconfortável algumas vezes com clientes que passaram um pouco os limites do que é apropriado numa relação cliente-tatuador", disse. 

Nouvelle Rita, que se identifica com o feminismo interseccional, considerou também que a sua atividade está em "constante mudança" e que, "felizmente, há cada vez mais gente que não é machista a tatuar": "Sem dúvida que consigo ver diferenças no mundo da tatuagem em geral".

"Está é a minha experiência pessoal, com certeza há outras pessoas que têm tido uma experiência diferente, mas tento sempre ouvir o meu instinto e não cultivar esse tipo de energia na minha vida", explicou. 

Quanto à diferença de mentalidade entre Inglaterra e Portugal, a artista sublinhou que em Londres a experiência social, étnica e cultural é extramente rica e que "há um sentimento geral de pertença e de haver espaço para toda a gente", o que "passa também para o mundo da tatuagem". Ou seja, para a tatuadora, no Reino Unido "há uma elevação do artista e do trabalho que o artista produz acima do estúdio de tatuagem" e "há mais respeito mútuo", situação que nem sempre é uma realidade em Portugal, segundo dinâmicas que presenciou de colegas de outros estúdios. 

"Felizmente, trabalhei num estúdio [Big Boys Tattoo] em que o respeito era mútuo e completo entre mim e os meus colegas/donos do estúdio", acrescentou. 

"Muitas mulheres sentiram-se discriminadas, mas, eu, que estava a ouvi-las, não me consegui identificar"

Também a já reconhecida tatuadora Mariza Seita, que abriu o seu estúdio Ink & Wheels, em 2015, no centro do capital, garantiu ao Notícias ao Minuto que nunca foi "alvo de discriminação por ser mulher". Porém, voltando aos dias em que andava a bater à porta de estúdios para obter formação, a artista, de 30 anos, confessou que o género pode ter influenciado o início da sua carreira.

"O que às vezes sinto, é que quando andava à procura de um estúdio para aprender, o facto de ser mulher, se calhar não foi um voto a meu favor. Nunca foi evidente, ninguém me o disse na cara. Mas, quando comecei a tatuar havia muito poucas mulheres na área em Portugal. Agora já há muitas, felizmente", avaliou a artista, que começou aprender a tatuar ao mesmo tempo que frequentava o curso de Escultura na Faculdade de Belas Artes. 

Mesmo assim, ainda que não possa dizer que vivenciou diretamente esse tipo de tratamento, a tatuadora mencionou que faz parte de um grupo de WhatsApp de tatuadoras em Portugal e que as primeiras conversas "foram exatamente sobre discriminação de género". 

"Muitas destas mulheres sofreram muita discriminação, sem dúvida. Acho que muitas mulheres sentiram-se discriminadas, mas, eu, que estava a ouvi-las, não me consegui identificar", vincou. 

Mas ouvir e apoiar outras mulheres é um lema de vida para Mariza Seita. De acordo com a tatuadora, nos dias de hoje, 90% dos seus clientes são mulheres, fenómeno que atribui ao tipo de tatuagem que cria [do estilo 'Traditional Tattoo' com "um 'twist' mais colorido e 'girly'"] e também por ser uma pessoa 'body positive', que gosta de "estar lá" para as outras mulheres.

"Quero contribuir para que gostemos de nós próprias. O corpo é a casa da alma", afirmou a artista, que começou há cerca de seis anos a realizar reconstruções de mamilos através da tatuagem, de forma gratuita, para todas as mulheres que sofreram cancro da mama.

Mariza Seita, que se assume como feminista e é autora de um texto publicado no livro 'As Feministas Também Usam Soutien', quis ainda ressalvar que o preconceito de que as "mulheres são más umas para as outras", na sua realidade não existe, antes pelo contrário.  

"No Instagram, plataforma na qual promovo muito o meu trabalho, cerca de 80% dos meus seguidores são mulheres e nunca recebi uma mensagem de 'hate' de uma mulher, até hoje, nas redes sociais", rematou. 

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