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Depois do ciclone vem o mar comer um bocadinho de chão todos os anos

Obede Cruz Janeiro tem um armazém feito de madeira e chapa para reconstruir na cidade da Beira por causa do ciclone Idai e diz que, se pudesse, o mudava de sítio, porque há outra ameaça natural à espreita.

Depois do ciclone vem o mar comer um bocadinho de chão todos os anos
Notícias ao Minuto

07:19 - 07/04/19 por Lusa

Mundo Moçambique

Há 16 anos que Obede anda a fugir do mar, que a cada estação das chuvas lhe come mais um bocadinho do chão onde ergue armazéns de pesca, no bairro de lata e caniço da Praia Nova, frente ao oceano Índico, no areal, o bairro que esteve na primeira linha de embate com a tempestade de dia 14 de março.

"Quando cheguei aqui [há 16 anos], a maré estava muito longe", refere, ao apontar para a água.

A Praia Nova nasceu como ponto de encontro de pescadores artesanais e embarcações de transporte para os rios Buzi e Pungué, crescendo com comércio e habitações de centenas de famílias de forma desordenada e precária.

Os anos passaram, o mar avançou e Obede já vai no segundo armazém, porque "o primeiro era onde agora está a água" e em breve vai começar a procurar terreno para o terceiro porque o ciclone deu músculo ao avanço do mar.

Nesse dia, "a água chegou até aqui", ao nível da cintura, aponta Adriano Xavier, um morador que, como outros, encarou o Idai como um aviso sério, mas face ao qual dizem nada poder fazer por falta de rendimentos.

Convivem com marés altas que regularmente lhes inundam as casas - bem como outras zonas baixas da cidade da Beira - e que agravam as deficientes condições sanitárias do bairro, pontuado por latrinas a céu aberto, sem saneamento.

O recuo da Praia Nova, "comida" pelo mar, como diz Adriano, ilustra a vulnerabilidade da urbe.

Várias zonas da cidade, conquistada a pântanos, estão abaixo do nível do mar e a costa está identificada como uma das mais sensíveis à subida das águas causada pelas alterações climáticas - situação agravada pelo roubo de areia e desbastamento de mangais, como os que existiam onde agora está o bairro.

"As nossas casas estavam para lá" onde hoje está o mar, aponta Adriano.

"Para chegar aqui, era preciso passar quase dez armazéns destes. Está a ver a distância que foi comida? E na ponta tinha duas estradas, por onde passavam carros. Há cinco anos", descreve.

Muralhas de proteção foram testadas e um sistema de 11 quilómetros de drenagem de águas da chuva, para enfrentar cheias, foi inaugurado em 2018, entre outros projetos, com financiamento de parceiros internacionais.

A cidade da Beira "fez obras para poder lidar com as cheias", mas a destruição provocada pelo ciclone Idai mostrou que "é preciso fazer mais". "Temos que nos adaptar", disse à Lusa o presidente do conselho municipal, Daviz Simango, poucos dias depois da passagem da tempestade, que provocou 602 mortos.

A realidade é outra: no bairro da Praia Nova já se reconstrói, com a mesma precariedade, sem adaptação, sem sequer se pensar numa mudança para outras paragens, abandonando aquela faixa de areal subjugada pelo oceano.

Uns dizem que não têm meios, não há alternativa.

Adriano Xavier justifica um pouco mais: quem ali mora, alimenta-se "através do mar" e aponta para os amigos que se perfilam encostados às chapas, uma dúzia deles, a ouvir a conversa, a acenar que sim ao que se diz.

"Aqui ninguém tem emprego. Tiramos a nossa alimentação do mar", literalmente e como renda, pois os biscates da pesca são sustento.

"Não podemos sair deste lugar sem ter um outro que nos garante alimentação" e rendimentos.

Formulam antes outro desejo: "gostaríamos que o Governo pedisse uma ajuda ao exterior, viessem aqui ver a situação e depois nos dissessem o que fazer, porque nós não sabemos. Só sabemos que é preciso uma barreira".

Daviz Simango, reeleito nas eleições autárquicas de 2018, prometeu durante a campanha não se esquecer dos problemas dos moradores da Praia Nova.

Anjo Portugal, vendedor na principal rua do bairro de lata e caniço, monta uma pilha de dois palmos de peixe para secar ao sol e reage a tudo o que se diz com um encolher de ombros.

"Fazer o quê? Nós vendemos no sítio em que dá" e se for preciso continuar a recuar, assim será, pois a olho calcula que o mar tenha estado 50 metros mais à frente a apenas quatro ou cinco anos.

"Medo não temos, já estamos habituados", acrescenta.

Alberto Miguel é o carpinteiro de serviço: martela em cima de barrotes de madeira a uns cinco metros do chão, reconstruindo o armazém de Obede.

Reconstrói mesmo adivinhando que "daqui a dois anos" o mar já terá comido aquele pedaço de terra.

"Hei de fugir, vou encontrar outro espaço" ali pelo meio, no tempo que resta, diz Obede, já acostumado a fugir do mar pelo labirinto que é a Praia Nova.

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