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Cultura, evolução e montra europeia. O olhar de quem já treinou o Gana

Portugal estreia-se no Mundial'2022, esta quinta-feira, diante do Gana. Em conversa com o Desporto ao Minuto, Mariano Barreto, antigo selecionador do primeiro adversário da equipa das quinas, enalteceu a cultura do povo ganês e realçou a importância da montra europeia para o maior talento da seleção africana. Fatawu, jogador do Sporting, não ficou esquecido na conversa.

Cultura, evolução e montra europeia. O olhar de quem já treinou o Gana
Notícias ao Minuto

08:05 - 23/11/22 por Miguel Simões

Desporto Exclusivo

O Mundial é conhecido por permitir o convívio entre diferentes culturas, estilos de vida, hábitos entre continentes e, a par de tudo isso, espelhar a forma como o futebol pode ser vivido de inúmeras maneiras. O encontro entre Portugal e Gana, agendado para esta quinta-feira, no Stadium 974, no Qatar, traduzirá isso... e muito mais.

Em conversa com o Desporto ao Minuto, Mariano Barreto, ex-selecionador do Gana, enalteceu a cultura do povo ganês e realçou a importância da montra europeia para o crescimento do talento do próximo adversário de Portugal no Mundial'2022, além de ter recordado o seu percurso à frente da seleção africana, entre 2003 e 2004.

Após esse período, o treinador de 65 anos regressou ao futebol ganês, em 2020/21, para orientar o Asante Kotoko e, por isso, foi desafiado a comentar algumas das diferenças na evolução desportiva do país ao longo de quase duas décadas.

O campeonato português fez-se representar, de certa forma, nos convocados de Otto Addo para o Mundial do Qatar, com a presença do sportinguista Abdul Fatawu Issahaku a merecer alguns comentários de Mariano Barreto, pela forma como chegou aos principais eleitos do Gana.

'Calor' dos adeptos e visibilidade na Europa

De continente para continente, o futebol vive-se de diferentes maneiras - todas elas apaixonantes. A alegria do povo africano acaba por ser especial e isso é também notório na cultura e no comportamento de quem apoia o Gana. Desafiado a comentar a influência que esse 'calor' dos adeptos poderia ter no rendimento da seleção ganesa, Mariano Barreto resolveu responder... com uma sugestão.

"A melhor forma de perceber isso é estar atento às bancadas do jogo entre Portugal e Gana. Ver a forma como aqueles adeptos vão estar aos milhares a apoiar a sua seleção. Há algumas contrariedades, obviamente, fruto da capacidade financeira. Mas estamos a falar da paixão e a forma como nos sensibilizamos a ver os adeptos no apoio ao Gana, na forma como os africanos apoiam os seus", começou por dizer, antes de falar de uma "união espiritual" de um povo que torce pelo mesmo. "É indescritível. Há uma união quase espiritual, com a crença e a religião misturadas. Os cristãos e os católicos davam a mão e era uma coisa de outro nível. Uma coisa arrepiante. Há ganeses que já estão pelo Qatar e só não estarão mais porque não há bilhetes".

A verdade é que a seleção do Gana, apesar do apoio, enfrentou algumas contrariedades para poder dizer "presente" no Mundial do Qatar, algo que foi vincado pelo antigo selecionador dos africanos, que salientou a vantagem da montra do futebol europeu para muitos internacionais ganeses.

"Esta seleção do Gana qualificou-se para o Mundial quase por acaso, porque o selecionador que lá estava [Chris Hughton] foi despedido após a CAN, e a qualificação para o Campeonato do Mundo não estava a correr bem. O novo treinador [Otto Addo] foi contratado para os dois jogos do play-off e as expectativas não eram muito altas, nomeadamente frente à Nigéria, que era favorita. Poucos acreditavam, mas o Gana acabou por se qualificar", contou.

O problema do Gana está no tempo de construção da equipa, que não é o ideal, comparativamente à seleção portuguesa, que tem o mesmo treinador há oito anos""Este novo selecionador teve o mérito de ser um profundo conhecedor dos jogadores ganeses da Europa [esteve no Borussia Dortmund, antes], muitos com dupla nacionalidade, o que lhes permitiu representar a seleção de Gana, em detrimento de outros países. Esta equipa, atualmente, não é a mesma da CAN", realçou, antes de enumerar a 'elite europeia' entre os principais eleitos. "Ainda assim, tem três dos defesas jogam na Premier League por exemplo, além do [Thomas] Partey que está no Arsenal... Há mais clubes representados, como o Friburgo, o Ajax, o Gent... É uma seleção que, de repente, tem grandes jogadores de grandes equipas".

Didi Dramani e George Boateng lideraram o percurso do Gana até ao Mundial, ao que se seguiu o contributo de Chris Hughton e, mais recentemente, o de Otto Addo, que não teve o tempo desejado para preparar a seleção do Gana, por comparação a Fernando Santos.

"O problema do Gana está mais no tempo de construção da equipa, que não é ideal, comparativamente à seleção portuguesa, que tem o mesmo treinador há oito anos, com as ideias mais absorvidas pelos jogadores. O selecionador do Gana não teve e nem tem essa disponibilidade", frisou Mariano Barreto.

"Se é mais fraca? Não. Porém, há nuances que a seleção portuguesa poderá aproveitar no plano teórico. Quando o jogo começa, há opções individuais que trazem outro tipo de dificuldades ao jogo. Posso dizer que a minha seleção [entre 2003 e 2004] era fantástica e esta seleção tem jogadores que podem torná-la muito competitiva", comparou o antigo selecionador.

O único representante 'luso' no Gana

Entre os 26 eleitos, um tem jogado na I Liga esta temporada, ao serviço do Sporting. Abdul Fatawu Issahaku mereceu a confiança de Rúben Amorim em seis duelos, dois dos quais na Liga dos Campeões. Contudo, Mariano Barreto confessou que não conhecia o jovem de 18 anos.

"No ano passado, quando estive no Gana, não tinha ouvido falar do Fatawu. Procurei investigar depois. Ele jogava numa academia, que promovia torneios com o objetivo de vender jogadores. Há quem sobressaia. O Fatawu nunca jogou nos escalões de formação [mas antes pelas academias], nem numa equipa da principal divisão, mas depois é contratado pelo Sporting", começou por contextualizar.

Notícias ao Minuto Fatawu já soma 13 internacionalizações pelo Gana, com o registo de um golo apontado.© Getty Images

"Julgo que [o Fatawu] tem bons atributos técnicos, mas não tem a formação de poder compreender o jogo, algo que lhe está a causar problemas no processo de afirmação [na equipa de Rúben Amorim]. Qualidade técnica ele tem, tal como dezenas de jogadores africanos. Será que ele ainda vai a tempo de ser um jogador com grande carreira internacional? Depende dele, dos treinadores que estão associados ao seu acompanhamento, até porque tem jogado por escalões mais abaixo além da equipa principal", considerou Mariano Barreto que relembrou a pressão do tempo para evoluir. "O tempo corre contra ele. O relógio não para. Se ele tiver a humildade suficiente para perceber que o Sporting não é o fim, mas sim o início, ainda estará a tempo de evoluir".

A ausência de uma formação mais rigorosa nos primeiros passos da carreira do jovem de 18 anos levou o técnico de 65 anos a fazer uma comparação... com um indivíduo sem o ensino escolar.

"É quase a mesma coisa que olharmos para um miúdo que não tem ensino básico e ensino secundário que, independentemente da sua cultura geral, terá sempre algumas dificuldades acrescidas. Não ter uma base que o faça pensar o jogo ou saber relacionar-se com a bola ou sem ele não se aprende em dois ou três dias, leva o seu tempo. Foi isto que lhe faltou ao chegar ao Sporting, e, agora, o clube terá de resolver esse problema", vincou.

"Quando falo do Sporting, falo de todos os outros clubes que contratam jovens com estas idades a pensar que vão ser grandes talentos, mas que depois falta o tal resto... A história tem-nos mostrado inúmeros jogadores que são apontados como futuros Messis e Ronaldos, mas depois desaparecem", esclareceu.

De 2003 para 2021. O percurso e a evolução

Convidado a relatar um pouco do percurso no futebol ganês, Mariano Barreto recordou alguns dos feitos históricos na sua passagem pela seleção do Gana "para surpresa de toda a África", perante várias adversidades na luta pelos Jogos Olímpicos de Atenas (2004) e um lugar no Mundial da Alemanha (2006)

"O Ministro do Desporto convidou-me para orientar a seleção do Gana, em 2003, porque, apesar de terem bons jogadores, não conseguiam ter uma seleção coesa a corresponder à capacidade dos intervenientes. Aceitei tomar conta das seleções, tanto a de sub-23 como a principal", começou por contar.

"Em função dos resultados que começámos a construir, chegámos à última jornada da qualificação para os Jogos Olímpicos, em que poderíamos carimbar o apuramento se derrotássemos a África do Sul, que era só a melhor classificada do ranking da CAF. Ninguém tinha grandes esperanças, mas ganhámos, mesmo a jogar com dez, para surpresa de toda a África. Com base na seleção que foi aos Jogos Olímpicos de 2004, começámos a preparar-nos para a qualificação para o Campeonato do Mundo de 2006 e, aí, voltámos a bater a África do Sul (3-0)", frisou o antigo selecionador do Gana.

Mariano Barreto relembrou ainda não ter ficado satisfeito com a Federação do Gana, e acabou por rumar ao Marítimo, decisão que reconheceu ter sido algo penalizadora. "Mais tarde, fiquei insatisfeito com o comportamento dos responsáveis da Federação do Gana e, com muita pressão do presidente do Marítimo, acabei por trocar o Gana pelo Marítimo, em 2005, algo que penalizou muito a minha carreira. Podia ter ido ao Mundial e não fui. Ainda fui multado [risos]. Considero que podia ter sido tudo diferente".

Apesar do fim de ciclo na seleção, o técnico de 65 anos voltou ao futebol ganês em 2020/21 para orientar o Asante Kotoko e admitiu sentir um "especial carinho" pelo país.

"Fui percebendo a realidade futebolística de um país [em 2003 e 2004] pelo qual tenho grande estima, de tal forma que ainda no ano passado estive a treinar o Asante Kotoko, considerado o maior clube ganês e um dos melhores do continente africano. A equipa estava em sétimo lugar e conseguimos ficar em segundo, a discutir o título praticamente até ao fim", contou, antes de acrescentar que ainda mantém contacto com jogadores ganeses. "Decidi depois voltar, porque estava um pouco cansado, mas posso dizer que, ainda hoje, falo regularmente com as pessoas e tenho um contacto permanente com algumas direções. O Gana é um país pelo qual tenho um especial carinho. Alguns jogadores ganeses ainda vão mantendo contacto comigo (risos). É uma relação de alguma proximidade".

Notícias ao Minuto Mariano Barreto passou também por países como Angola, Etiópia, Lituânia, Arábia Saudita, Chipre e Rússia.© Facebook Mariano Barreto  

Entre uma aventura e a outra, passaram quase 20 anos e a evolução do futebol ganês foi 'escrutinada' por Mariano Barreto, embora tal não tenha acontecido em todas as vertentes.

"Algumas coisas evoluíram muito. O Gana sempre teve treinadores estrangeiros, com uma grande influência externa. Quando estive na seleção, a presença de treinadores alemães era uma constante. Basta ver o histórico da seleção alemã, com jogadores naturais do Gana, como o Jérôme Boateng. E depois o contrário", vincou e acrescentou, ainda, o exemplo neerlandês. "Houve sempre uma grande cumplicidade por parte dos alemães com a qualidade futebolística e o talento do jogador ganês, assim como acontece nos Países Baixos, que tem jogadores com diferentes raízes fora da Europa. A certa altura, nos Países Baixos passou a haver várias escolas do Gana, como o caso do Feyenoord, por exemplo, com jovens ganeses entre os 14 e os 18 anos. Desde muito cedo aprendiam os hábitos alimentares europeus. É algo curioso".

"O futebol do Gana, nestes 20 anos, acompanhou de certa forma alguma da evolução europeia. Contudo, isso não foi feito através de treinadores naturais do Gana, mas antes à custa de estrangeiros, nomeadamente europeus, que iam para o Gana detetar talentos. A preocupação com a formação escolar foi mudando, até para que os jovens não saíssem muito antes dos 18 anos. Com isto, a qualidade de formação de jovens do Gana acabou por ser afetada", acrescentou.

Mariano Barreto alertou, ainda, para a vertente prática do futebol africano no geral, e frisou a relevância das escolinhas de formação para os jovens atletas, alguns dos quais com grande futuro.

"Os padrões do futebol do Gana mantiveram-se em alguns aspetos, altamente tecnicista e com uma componente física muito forte, algo característico e próprio do futebol africano. O aspeto tático é, de facto, o grande problema para as equipas africanas, principalmente porque os treinadores ganeses não têm muita formação. Não há uma linha orientadora. Ainda assim, floresceram algumas escolinhas, mesmo privadas, de antigos jogadores, para a transação de negócios, organizar convívios e arranjar vistos. Uma parte torna-se profissional, outra acaba por procurar empregos para sobreviver", afirmou.

"É um futebol competitivo e apaixonante, mas sem grandes condições a nível de comodidade, por exemplo, sobretudo a nível de instalações, mesmo nos melhores clubes", concluiu.

Seja como for, a seleção do Gana de tudo fará para fintar algumas dificuldades enraizadas e, dessa forma, procurar surpreender Portugal e as restantes seleções - Uruguai e Coreia do Sul - do grupo H do Mundial do Qatar.

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