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"Se não fosse músico era pescador de alto mar"

Tito Paris voltou aos discos originais. Com ‘Mim Ê Bô’ a chegar às lojas de discos, Tito Paris é o entrevistado desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.

"Se não fosse músico era pescador de alto mar"
Notícias ao Minuto

11:30 - 23/06/17 por Pedro Filipe Pina

Cultura Tito Paris

Passaram-se 15 anos desde o último álbum de originais mas Tito Paris está de volta. O parto musical deste álbum pode ter sido longo mas não doloroso. Foi obra que se foi gravando, entre viagens e aprendizagens. E eis que chegamos ao presente.

‘Mim Ê Bô’ marca o regresso de um cantor que leva Cabo Verde no sangue e na voz mas que há décadas vive em Lisboa. Mais uma vez, Tito Paris mostra a diversidade que há nos sons de Cabo Verde e mistura-os com outras sonoridades, incluindo Boss AC, rapper que Tito conheceu ainda miúdo.

Num dia de sol, na esplanada Rio Maravilha, com vista sobre o Tejo, o Notícias ao Minuto sentou-se à conversa com este homem descontraído e alegre que fala de Portugal e Cabo Verde com a naturalidade do amor.

De boina e sorridente, Tito Paris ainda passeou um pouco pelo espaço, com aquele ar de miúdo que nunca perdeu o fascínio por coisas simples, espreitando o sol e o Tejo. Depois, sentou-se para nos contar o que tem andado a fazer. 

15 anos depois de 'Guilhermina', voltou aos discos de originais. A que é que se deveu esta demora? Foi um álbum difícil de trabalhar?

Não. Tenho tido muito trabalho, pelo mundo fora, em viagens e concertos. Fomos aguardando, ia-se fazendo um bocadinho, gravava-se, depois voltávamos a viajar, tanto para promover a minha música como a de Cabo Verde. Estava também a tentar ir buscar algo novo. Quando estamos com outro povo, temos sempre algo a ganhar. 

O álbum que agora saiu é muito diferente do que tinha imaginado quando começou a trabalhar nele, há 15 anos?

É um bocadinho diferente, tem outra sonoridade, convidados especiais como o Boss AC e o Zeca Baleiro. Tem mais balada, fiz um funaná com orquestra para trazer outra sonoridade ao funaná, e a composição também teve mais de Cabo Verde. 

E este título, 'Mim Ê Bô', o que significa?

Quer dizer “eu sou tu”. 

E de onde é que surgiu?

Tenho uns amigos meus que estavam sempre a perguntar pelo álbum. ‘Quando é que gravas, Tito? Quando é que sai?’. E um dos meus amigos a dada altura disse-me assim: ‘Espero o tempo que você quiser, porque mi ê bô’. Eu sou tu…. E como tinha uma música que falava dessa frase – os cabo-verdianos quando são amigos, têm isto: eu sou teu, se tu tens, eu também tenho, então, ‘mi ê bô’.

Acho que se não fosse músico era um pescador. Tenho muito gosto pelo mar

E este gosto pela música, de onde veio?

O meu avô tinha um grupo com três tias-avós minhas, iam tocar a casamentos. Isso passou para o meu pai e para o meu tio, depois do meu pai para nós [Tito e os irmãos], e eu lá ganhei o gosto pela música

A música era uma inevitabilidade? Havia hipótese de fazer outra carreira que não fosse com a música?

[pausa] Acho que se não fosse músico era um pescador. Tenho muito gosto pelo mar. Tenho muitas músicas sobre o mar e ser pescador é ser um homem de bem. Tenho muita ligação ao mar, seria mesmo pescador a sério, profissional, do alto mar.

Veio para Lisboa com 19 anos. Como foram esses primeiros tempos?

Eu vim do Mindelo diretamente para Lisboa, uma cidade grande, que já tinha muito trânsito, buzinadelas, andava a a correr apanhar o autocarro e tudo aquilo me fazia alguma confusão. Até pensei em voltar para Cabo Verde mas o Luís Morais e o Paulinho Vieira não me deixaram ir. 'Você já está aqui, tem talento, e vai ficar aqui'. E lá fui ficando e gostando. Houve uma vez que fui para Cabo Verde e pensei, 'Não, vou voltar para Lisboa'. E fiquei por cá. Lisboa, neste momento, é a minha cidade.

Ficou surpreendido pela forma como o Tito e a sua música foram recebidos em Portugal e na Europa?

Fiquei muito surpreendido mas Portugal começou a entender a linguagem musical. Quando cheguei cá reparei que o grupo angolano era só angolanos, que o grupo moçambicano era só moçambicanos, os portugueses só portugueses, os cabo-verdianos era só cabo-verdianos, e pensei: 'Assim também não dá, vamos ficar sempre num círculo fechado'. Quando fiz o meu primeiro grupo fui buscar um de cada país. Malta portuguesa, de Angola, da Guiné... e as pessoas começaram a vir aos concertos e a ver que isto dava resultado.

Ao longo dos anos trabalhou e atuou com vários artistas, nomeadamente portugueses. Falo de gente tão diferente como a Mariza, o Paulo de Carvalho, o Rui Veloso, Sérgio Godinho, neste álbum trabalha com o Boss AC. Tudo artistas muito diferentes. Foi uma questão de circunstâncias felizes ou houve sempre esta vontade de partilhar a sua música com outros artistas e sonoridades?

Gosto de partilhar experiências, mesmo que seja com um miúdo mais novo. Há miúdos com 20 anos com muito ainda para dar, por exemplo. E trabalhando com vários artistas, ambas as partes têm de trabalhar.

É professor e aprendiz ao mesmo tempo?

Exatamente. E vamos aprendendo, que nós não somos infinitos, e ainda bem, e que também não somos donos da música.

Estas colaborações mudaram muito a sua música?

Muito e isso foi muito bom porque fazer parcerias com Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Vitorino, com o Roberto Leal do Brasil, o Paulo Flores de Angola, entre outros, isto traz muito mais valia. Quando um membro de um povo traz para outro povo um pouco da sua cultura, o outro povo só tem a ganhar.

Para o próximo disco tenho de fazer uma morna com harpa, cavaquinho e violãoEstas vivências todas, estas colaborações e descobertas. Se tivesse de explicar agora como é a música do Tito, como é a que definiria?

Não está bem definida ainda, que ainda há outras coisas que tenho de ir buscar [risos].

Ainda há outro estilos para ouvir e trabalhar?

Sim, e tenho outras ideias malucas. Quando falei de uma morna sinfónica, ninguém acreditava. ‘Você está maluco’, disseram-me. Mas lá consegui fazer uma morna sinfónica. E também se pode fazer mornas com outros instrumentos e fundir tudo. Para o próximo disco tenho de fazer uma morna com harpa, cavaquinho e violão. 

E entre os novos artistas portugueses, há algum com quem queira trabalhar e ainda não tenha havido oportunidade?

Portugal está recheado de bons artistas, jovens e menos jovens, gente com capacidade e talento. Ainda há pouco ganhámos a toda a gente na Eurovisão. Uma coisa que nunca tinha acontecido.

Há que dar os parabéns ao Salvador, que ele merece, e nós todos estamos de parabéns, vê-se que Portugal está na primeira linha em tudoE o que é que achou da música do Salvador e da Luísa Sobral?

Achei fantástico. Não estava cá, estava no Brasil, vi na televisão e fiquei contente, como se fosse eu a cantar aquela canção e emocionado com as palavras do Salvador no final. Há que dar os parabéns a ele, que ele merece, e nós todos estamos de parabéns, vê-se que Portugal está na primeira linha em tudo. Somos dos melhores no futebol, temos grandes políticos, temos o secretário-geral das Nações Unidas, já tivemos o presidente da Comissão Europeia, estamos à frente na medicina, Portugal tem uma das melhores cidades do mundo, Lisboa, Portugal está em tudo e isto dá iniciativa às crianças que aparecem e que querem fazer algo, nomeadamente na música. Há cá grandes artistas.

Está em Portugal há muitos anos e continua a aproveitar para ir a Cabo Verde. Que significado têm os dois países para si?

Sinto-me português e cabo-verdiano. Agora já tenho mais anos de Portugal do que de Cabo Verde mas nasci lá, ainda tenho lá os meus amigos de infância. Às vezes vou lá e vamos pescar, tocar violão. Às vezes olho para o Mindelo e sinto que também é Portugal, no sentido em que é uma cidade muito bonita, com vestígios da passagem dos portugueses. Está lá a estátua do Camões, está lá a arquitetura portuguesa, não sinto grandes diferenças em mim entre estar em Portugal ou Cabo Verde.

E como vê Cabo Verde hoje em dia, sempre que volta ao país?

Cabo Verde está muito diferente. Quando saí de lá o país tinha cerca de cinco anos de independência. Hoje tem 40, vamos fazer 41. É um Cabo Verde diferente, mais à frente, de jovens que já olham para Portugal só pelo lado da história e do país como irmão, quem vêm para Portugal para estudar e trabalhar.

Foi recentemente condecorado por Marcelo, antes da visita de Estado a Cabo Verde. Como é que foi esse reconhecimento?

Apanhou-me de surpresa. Fiquei um pouco à rasca, que não sou homem de falar ao microfone, com aqueles discursos de palavras bonitas. Mas é uma grande responsabilidade um imigrante ser reconhecido por um povo irmão que o acolheu bem. É uma grande responsabilidade mas não mudei. Sou assim. Mas foi com muita alegria e muito amor e agradeço ao povo português e a Marcelo pelo reconhecimento do meu trabalho.

Agora já tenho mais anos de Portugal do que de Cabo Verde mas nasci lá, ainda tenho lá os meus amigos de infânciaSempre foi bem recebido em Portugal, cantando muitas vezes em crioulo. É a tal universalidade da música, que ultrapassa a língua?

Considero o crioulo um português mal falado, bonito, com musicalidade. Mas tenho a certeza que a maioria dos portugueses entende crioulo. Conheço portugueses que falam bom crioulo, sem sotaque. Isso é muito bom, é um luxo. Falar línguas de qualquer país é um luxo. 

Andou em tournée pelo mundo. Disse-me que do crioulo para o português a diferença não é muita. Mas quando atua em França, na Holanda, na Alemanha, países com línguas diferentes, como o recebem?

Eu costumo tentar falar um pouco de inglês mas com a música é tudo normal. A língua não é uma barreira. As pessoas gostam, se calhar já me ouviram nalguma rádio ou assim, e as coisas vão acontecendo. 

No passado criticou o poder em Cabo Verde pela falta de atenção à cultura. Aconteceu por exemplo quando criticou o [agora antigo] presidente José Maria Neves por Cesária Évora não ter sido homenageada.

Eu e ele andávamos sempre à guerra [risos].

Mas sente isso hoje em dia, de a música não ser devidamente valorizada?

Cabo Verde não é um país rico mas é um país rico em valores, em humanismo. Sempre defendi em Cabo Verde que, a seguir ao primeiro-ministro, o ministro mais importante deveria ser o da cultura. Tem de ser alguém conhecedor do mundo, das várias culturas das ilhas. Alguém como a Cesária Évora ser galardoada e toda a gente fica parada? Não pode ser.

Marcelo fez questão de dizer que o condecorava também para dar valor à cultura.

Recebi felicitações de Angola, de Moçambique, de vários ex-governantes portugueses, gente boa de diferentes partidos, e esperava uma satisfação do ministro da Cultura de Cabo Verde, mas não aconteceu.

E agora quando vai a Cabo Verde como é recebido?

Sou sempre muito bem recebido e faço questão de ser um cabo-verdiano normal. Ando na rua, cumprimento as pessoas.

Os jovens, alguns, não todos, estão mais virados para a música eletrónicaMas acontece-lhe andar pela rua e ser reconhecido pelas pessoas, certo?

Sim, toda a gente, às vezes entro num bar e bebo um grogue na companhia de um grupo, outra vez partilho um polvo numa tasquinha, isso faz parte de mim e é isso que me faz sentir incansável a divulgar a minha música e cultura de Cabo Verde.

O Tito Paris integra uma lista de artistas de Cabo Verde cujo sucesso foi muito além do arquipélago. Falámos da Cesária Évora. No meu caso os meus pais ainda têm lá por casa discos d’Os Tubarões. A minha pergunta é se há já uma geração nova a despontar na musica de Cabo Verde?

Está um pouco complicado, porque os jovens, alguns, não todos, estão mais virados para a música eletrónica. Não vou dizer que não, mas pode-se fazer música de eletrónica e de Cabo Verde. No outro dia dei uma palestra em Cabo Verde e perguntava aos jovens se sabiam qual é a minha preocupação? [citando-se] 'É que qualquer um de vocês pode um dia ser ministro da Cultura de Cabo Verde e têm de estar preparados. Têm de conhecer a história, a música de Cabo Verde'. Não vou pedir a um jovem para tocar ou cantar como eu. Mas nós não podemos mexer muito na raiz.

O primeiro álbum que lançou ainda era instrumental. Foi ainda baixista e baterista antes de ser cantor. Como foi esta evolução?

Quando saí de Cabo Verde foi o Luís Morais quem me trouxe porque o Bana lhe pediu um músico polivalente. E o Luís escolheu-me e trouxe-me. Em Cabo Verde era baixista, chego cá e o Paulinho Vieira diz-me: 'Olha, Tito, tu aqui vais tocar bateria'.

Foi apanhado de surpresa?

Andei um ano e meio a tocar bateria mas não era um instrumento que me chamasse. Lá mandaram vir o meu irmão e fiquei mais de um ano sem tocar, que o grupo tinha um baixista. Certa vez fomos atuar à Holanda e o baixista decidiu ficar lá a viver. Foi a minha sorte.

E depois há um dia em que começa a cantar. Como foi essa passagem?

No grupo a voz de Cabo Verde o Paulinho Vieira pedia-me sempre para cantar e eu dizia-lhe que não sabia cantar. 'Mas tens voz para cantar', dizia-me ele.

Mas costumava cantar nos ensaios?

Não. Às vezes ele cantava uma música e depois dizia-me: 'agora canta um bocadinho'. Certa vez, na Holanda, lá cantei e a dada altura tinha toda a gente a olhar para mim.

E depois há um dia em que volta a Cabo Verde já como cantor.

A primeira vez que eu cantei num concerto em Cabo Verde, na ilha do Sal, tivemos nove pessoas a assistir [risos].

E nessa altura até já tinha atuado para plateias maiores.

Sim, acompanhado por outras pessoas. Mas não me conheciam a cantar ainda. Depois gravei o primeiro disco em que cantava, foi um sucesso, e a dada altura era preciso polícia para passar. Havia multidão. E correu muito bem desde então até hoje.

Já estou a pensar num ou noutro jovem para o próximo álbumEu sei que ainda é cedo para esta pergunta, visto que o novo álbum acabou de sair. Mas para os fãs que estavam há bastante tempo à espera de originais, vão ter que esperar mais 15 pelo próximo ou já há ideias para o futuro?

Já há ideias para o futuro. Tenho um filho que não brinca em serviço, que está sempre em cima de mim, tal como a minha esposa, a lembrar que já tenho muitas coisas escritas. 

E voltando aos jovens artistas, algum plano de parcerias?

Já estou a pensar num ou noutro jovem para o próximo álbum. O Paulo de Carvalho e o Bana fizeram isso comigo quando eu era jovem. Sou um obreiro. Isto [música] é uma estrada e para andar nesta estrada, é preciso muita humildade, há que ir buscar jovens. 

E a parceria com o Boss AC? Como foi que surgiu?

Já tinha feito a música a pensar nele e quando o contactei ele disse logo que sim. O Boss AC é como um irmão mais novo para mim. Cresci a conhecer os pais dele e conheci-o ainda muito miúdo. Toquei muito com o pai dele, o Toi [Firmino], um grande artista cabo-verdiano [pintor]. Isto é um sentimento familiar. Ele disse logo que sim. ‘Tito, contigo, pelo amor de deus, marca só o estúdio’. 

E com o Zeca Baleiro?

Conhecemo-nos em Cabio Verde. Depois estivemos aqui juntos [em Portugal], ficámos amigos. Depois falámos ao telefone e ele disse-me: manda uma música. Eu mandei e ele mandou a música de volta já com a voz. E cantou em criolo! E ainda trabalhei com o Bana. Foi fantástico. Quando falei com o Bana ele ainda estava no hospital, doente. Falei com ele sobre a música e ele perguntou-me: ‘Achas que ainda posso para cantar?’. Sim, disse-lhe. Ele ainda esteve algum tempo no hospital e um ano depois lá deu [para gravar]. Fico muito feliz por esta parceria com ele. Este disco ficou abençoado.

E os próximos planos?

Temos concertos que queremos fazer até ao final do ano.

Estamos noutro ano marcante, depois dos 30 anos de carreira celebrados em 2012, o Tito Paris chegou aos 35 anos de carreira.

É um ano forte, não é? Espero que sim e que esteja cheio de saúde para continuar

E essa alegria do Tito, é algo que também se liga à música?

É da minha natureza. Tenho paixão pela vida. Quando estou mal disposto não saio de casa, para não dar às pessoas má disposição.

E quando está mal disposto, dá para fazer música?

Fico só em casa, mas a minha mulher quer correr comigo. ‘Que estás aqui a fazer? Sai daqui! [risos]’. Mas no geral, 99% do tempo, estou sempre bem disposto.

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