Meteorologia

  • 19 ABRIL 2024
Tempo
21º
MIN 15º MÁX 21º
Vozes ao Minuto

Vozes ao Minuto

Vozes com opinião. Todos os dias.

"A Legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí"

Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, é o entrevistado de hoje do 'Vozes ao Minuto'.

"A Legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí"
Notícias ao Minuto

06/03/18 por Filipa Matias Pereira

País Fernando de Almeida

Gripe, Legionella, Sarampo. Estes foram os pontos de partida para a entrevista do Notícias ao Minuto a Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) - um organismo público integrado na administração indireta do Estado, que tem projetado a sua imagem junto de congéneres internacionais. 

Enquanto 'laboratório do Estado' que dá resposta a surtos, o INSA tem evidenciando o pioneirismo que flui no seu ADN, já que tem levado aos 'palcos' à escala global científicos projetos inovadores como a sequência do genoma total do vírus influenza [vírus da Gripe].

Já quando o tema 'em cima da mesa' é a Legionella, o Fernando de Almeida destaca algumas das medidas que estão a ser tomadas preventivamente para evitar novos surtos - uma doença que "não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí", alerta.

Queremos claramente que alguém externo nos diga para onde é o caminho porque temos de nos modernizar. É urgenteO Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) será alvo de uma avaliação externa independente. Qual o objetivo?

O Instituto, até à última avaliação que data de 2006, esteve dependente de uma dupla tutela, nomeadamente, do Ministério da Saúde e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. A partir dessa altura, o Instituto deixou de estar tutelado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, embora se mantenha como laboratório de Estado e laboratório de investigação científica. E desde essa altura, há 12 anos, nunca mais foi avaliado sendo que, de acordo com a legislação, todos os Laboratórios do Estado devem estar sujeitos a avaliações periódicas.

Quando tomei posse, uma das minhas preocupações era perceber porque é que não se tinha tido oportunidade de fazer uma avaliação e, por isso mesmo, solicitei-a à tutela. Mas essa altura coincidia com o fim da legislatura e foi entendimento que não era oportuno efetuar essa avaliação. Depois, com a nova legislatura, voltámos ao tema e o entendimento do Ministério da Saúde foi para avançar; estavam criadas as condições para fazermos uma reforma global do INSA. Trata-se de uma estrutura centenária, que precisa de ser modernizada, sobretudo na parte da infraestruturas, organização e redefinição da sua missão, já que o Instituto deve estar direcionado para os desafios hodiernos na investigação e inovação.

Nesse sentido, resolvemos iniciar o nosso processo de reforma do INSA. Iniciámos o processo com uma reforma interna. O primeiro passo é auscultar o que os nossos colaboradores da casa têm a dizer, depois damos voz aos stakeholders. Queremos também ouvir congéneres e perceber como é que outros institutos da Europa e do mundo estão a organizar-se e o que acham que devíamos fazer.

Para além disso, temos a avaliação externa e independente, cujo responsável é o Ministério da Saúde. Serão escolhidos cerca de cinco peritos nacionais ou internacionais que irão proceder à avaliação do INSA e indicarão qual o caminho a seguir nesta reorganização. Queremos claramente que alguém externo nos diga para onde é o caminho porque temos de nos modernizar. É urgente fazermos essa modernização. Este é um processo que, clara e inequivocamente, queremos que seja internacional, independente e autónomo. Não gostamos, neste caso, de sermos juízes em causa própria.

Este ano vacinaram-se mais pessoas, o que ajudou a que o pico da Gripe não fosse tão expressivo

Segundo a Direção Geral da Saúde (DGS), a epidemia da Gripe está controlada. Ao que tudo indica a atividade gripal, este ano, foi menos intensa. Podemos fazer essa leitura?

A gripe é um fenómeno sazonal, que acontece todos os invernos e, normalmente, o seu início coincide com as últimas semanas de dezembro e as primeiras de janeiro. Por norma, começa na segunda ou terceira semana de dezembro, ou seja o pico coincide com a semana que antecede a passagem de ano. Este ano, o pico de gripe foi um pouco mais suave. Quando se trata da estirpe B, que tem uma progressão mais lenta, não é tão agressiva e não se traduz em números tão elevados de mortalidade. E este ano foi precisamente essa a estirpe dominante, mais especificamente o vírus do tipo B da linhagem ‘yamagata’, que é diferente do vírus ‘vitória’ que está na vacina. Mas, embora este não esteja contemplado na vacina, há uma imunização cruzada. Importa salientar, também, que este ano vacinaram-se mais pessoas, o que ajudou a que o pico da gripe não fosse tão expressivo.

Fenómenos de afluência anormal nas urgências hospitalares devem ter muito mais solidariedade do que críticasEste ano, à semelhança de outros, precisamente na semana que medeia o Natal e a Passagem de Ano, muitos utentes queixaram-se das longas horas de espera nas urgências do hospital.

Qualquer organização, neste caso os hospitais, têm de fazer uma gestão. E a meu ver houve muito aproveitamento, até político. Estes fenómenos devem ter muito mais solidariedade do que críticas. Qualquer organização deve estar preparada para um clima de normalidade no país e os hospitais estão dimensionados nesse sentido, para além de terem um estatuto que lhes permite garantir uma reposta e uma acessibilidade normalizada.

É evidente que as urgências são os locais mais sensíveis à maior pressão nas alturas de pico de gripe. E, apesar de os cuidados de saúde primários fazerem o seu papel, uma parte importante das pessoas procura resolver o seu problema recorrendo, diretamente, aos hospitais.

Então surgem os projetos de contingência. Todos os ministros com quem já colaborei mostraram-se, sempre, preocupados em fazer um esforço muito grande de remodelação das estruturas de saúde e este ano não foi exceção. Este ministro insistiu ainda mais nessa questão e todos os hospitais estavam preparados. Porém, independentemente de toda esta preparação, é sempre problemático quando há um afluxo anormal e quando adoecem todos ao mesmo tempo. Por mais que a estrutura esteja preparada, o espaço físico e as equipas, apesar de reforçadas, são as mesmas. Este ano havia mais camas, foram feitos acordos e acho que nesse aspeto as coisas correram bem. Mas há sempre um período em que as pessoas ocorrem em massa às urgências. E isso não acontece apenas em Portugal. Acontece também em Espanha, na Alemanha e na Inglaterra, por exemplo.

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge desenvolveu uma plataforma inovadora que permitirá fortalecer a vigilância da Gripe. Em que consiste mais concretamente o INSaFLU?

Somos um laboratório que dá resposta a surtos e temos uma tecnologia que permite sequenciar o genoma humano total e através dela, por exemplo, já conseguimos sequenciar o genoma total da legionella. A comunidade científica internacional tem exortado os países e as estruturas de investigação a fazerem estudos de metodologia diagnóstica no sentido de analisar o vírus ‘influenza’ - vírus da gripe - porque potencia maior facilidade de diagnóstico e é mais fácil estudar a sua orientação epidemiológica. Há muitas vantagens que poderiam advir da determinação do genoma total do ‘influenza’.

Com efeito, temos um departamento de doenças infeciosas que tem um laboratório de bioinformática. E na unidade de tecnologia e inovação desse laboratório está o NGS - Next Generation Sequencing – que permite fazer a sequenciação de tudo isso. Ora, o departamento de genética e o da gripe juntaram-se e começaram a trabalhar numa tentativa de aplicação que lhes permitisse determinar e fazer a sequência total do vírus 'influenza'. E conseguiram. Fizemos então a apresentação ao público do ‘INSide the FLU’ (INSaFLU) e o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC) ficou muito contente. Aliás, a comunidade científica internacional está muito interessada em adquirir esta plataforma que foi construída com base informática. De facto, é uma ferramenta muito útil para fazer o diagnóstico e vigilância epidemiológica.

Na verdade não houve um surto de Sarampo. Houve dois que coincidiram temporalmente

E quanto ao Sarampo? Foram quatro meses de surto e uma morte.

Na verdade, não houve um surto. Houve dois que coincidiram temporalmente. Hoje em dia, a nível científico, conseguimos ir tão perto do genoma pela genotipagem que é possível ver que não era o mesmo vírus. Houve dois vírus do sarampo diferentes – um genótipo B3 e o outro D8, e conseguimos inclusive perceber que um era mais prevalente no Reino Unido e que coincidiu com a ocorrência no Algarve. O outro surto, o D8, que atingiu mais a região de Lisboa e Vale do Tejo, é mais prevalente na Europa central norte, nomeadamente na Roménia. Mas termos dois surtos não quer dizer que é pior do que um. É apenas um dado científico. E, contrariamente, ao que se divulgou, registaram-se 27 casos de Sarampo nessa altura.

A nossa função é dizer vacinem-se, vacinem-se, vacinem-se. Acho que ninguém tem o direito de, por uma teoria, pôr em perigo a vida dos outrosNo caso da jovem que morreu, segundo o que foi divulgado esta não tinha sido vacinada...

A nossa missão é dizer vacinem-se, vacinem-se, vacinem-se. Em termos de plano nacional de vacinação, Portugal está muito bem posicionado em relação à Europa. Temos elevadíssimas taxas de vacinação, mas não estamos imunes a teorias anti-vacinação que, sendo respeitáveis em termos de opinião, nos deixam muito preocupados. Acho que ninguém tem o direito de, por uma teoria, pôr em perigo a vida dos seus e dos outros. Não sou, de modo algum, apoiante das teorias proibicionistas, mas precisamos é de sensibilizar as pessoas e perceber que vacinar é a melhor maneira de nos mantermos saudáveis.

Vila Franca foi um episódio raríssimo porque se verificou a conjugação de imensos fenómenos, tal como aconteceu no São Francisco XavierHouve, recentemente, mais um surto de Legionella no Hospital CUF Descobertas. É provável que nos próximos tempos tenhamos ‘novidades’ da doença dos legionários?

A legionella é um fenmeno ambiental com impacto na saúde. É uma bactéria de conforto, de temperaturas quentes e águas aerossolizadas e estagnadas. Portanto, é provável que apareça em reservatórios artificiais como sistemas de água doméstica (quente e fria), humidificadores, torres de arrefecimento de sistemas de condicionamento de ar, jacuzzis, piscinas, instalações termais, águas sujas paradas e fontes decorativas (repuxos, por exemplo) - locais onde se produzam aerossóis com facilidade. Tudo o que seja produção de aerossóis é uma fonte potencial.

O fenómeno de Vila Franca foi um episódio raríssimo porque se verificou a conjugação de vários fenómenos, tal como aconteceu no São Francisco Xavier. Verificou-se uma confluência climática que fez com que aquelas partículas se dispersassem numa pequena dimensão daquele período de tempo. Mas, de facto, trata-se de uma questão que nos preocupa.

A maior parte das vezes a legionella não provoca doença grave. Ou seja, não provoca pneumonia, mas sim o que chamamos de febre de Pontiac - o período de incubação varia entre dois a 10 dias e, a nível geral, decorridos cerca de cinco a seis dias depois de se terem inalado as bactérias presentes nas gotículas de água podem surgir os primeiros sintomas, muito parecidos com o síndrome gripal, tais como o catarro respiratório superior. Quando se associa a pneumonia torna-se muito grave, e importa relembrar que as pessoas mais vulneráveis são, sobretudo, as idosas imunodeprimidas, com patologias associadas e problemas respiratórios graves. Por isso mesmo correm maior risco de vida.

O INSA lançou o Programa de Intervenção Operacional de Prevenção Ambiental da Legionella (PIOPAL). Qual o objetivo aqui subjacente?

Trata-se de um programa que arrancou em janeiro e ao abrigo do qual serão analisadas amostras de água dos hospitais para evitar surtos de legionella. E já começámos a receber águas dessas unidades de saúde. Trata-se de uma avaliação de vigilância de todas as unidades de prestação de cuidados de saúde.

O projeto abrange também os hospitais privados ou cinge-se aos públicos?

O objetivo é alargá-lo também aos privados. O projeto inicial não previa os hospitais privados, mas pretendemos incluí-los e vamos, por isso, perceber se há margem de recursos (técnicos e humanos) para também dar apoio as essas unidades de saúde.

O corpo clínico está muito mais desperto para este problema. A Legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aíDe 2010 a 2017 foram confirmados 1.381 casos de legionella. Há um aumento de pessoas infetadas?

O que se passa é que, hoje em dia, o corpo clínico está muito mais desperto para este problema. Perante uma pneumonia atípica, é feito um diagnóstico de execução rápida, que passa pela pesquisa de um antigénio na urina, a antigenúria. E perante a confirmação de um caso de legionella, tanto os médicos como os laboratórios são obrigados a comunicar essa ocorrência ao Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE). A legionella não vai estar na ordem do dia, mas vai andar por aí.

Temos de estar muito bem preparados para eventuais surtos, como foi o caso do Ébola, em 2014. Contrariamente ao que toda a gente pensava, o vírus não ficou apenas em África

Desde que assumiu o seu mandato, tinha como objetivo fortalecer as relações com a CPLP. Tem conseguido promover projetos nesse sentido?

O Instituto tem de ter uma postura estratégica na Cooperação. E nesse sentido estamos ligados às redes mundiais, sobretudo à europeia. Por isso, os nossos laboratórios de referência são sistematicamente analisados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e por outros laboratórios para percebermos até que ponto estamos ou não na ‘gold standard’ em relação ao resto da Europa e temos passado em todos os testes.

Na área da nutrição e obesidade infantil, somos um Centro Colaborativo para a Nutrição e Obesidade Infantil da OMS, o que significa que a Organização Mundial de Saúde designou Portugal e o Instituto Ricardo Jorge para dar apoio nessa área. Com efeito, temos forte ligação à Europa, mas por outro lado temos os PALOP’s e a CPLP. Facilmente se percebe que Portugal é a principal porta de entrada de população de outras nacionalidades e nesse contacto muita coisa pode acontecer. Por isso, temos de estar muito bem preparados para eventuais surtos, como foi o caso do ébola, em 2014. Contrariamente ao que toda a gente pensava, o vírus não ficou apenas lá na África. E a comunidade científica só percebeu isso quando começou a constatar que, pelo cruzamento de pessoas, alguns casos foram importados para outros países.

No caso da cooperação com África, optámos então por direcioná-la para a capacitação e dependência institucional. Queremos que fiquem autónomos e com capacidade para fazerem os próprios exames.  E Portugal não pode abandonar este desígnio da diáspora, tantas vezes falado e muito pouco praticado. Temos muito para ensinar e para aprender com aquelas populações. E devo ainda registar que somos muito bem recebidos lá. Sempre. 

Em 2014, fomos chamados para a Guiné por causa do Ébola e ainda não saímos de lá. Isto porque depois foram-nos pedindo formações e o CDC de Atlanta (USA) percebeu o nosso papel e a nossa missão, convidando-nos para lá ficar depois desse projeto. De salientar que o laboratório que montámos na Guiné foi classificado por Peter Graaff, diretor para a OMS da Europa, como a ilha a montante e a jusante em África.  

Campo obrigatório