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"Hoje em dia, receitam-se drogas muito mais potentes do que a canábis"

Moisés Ferreira, deputado do Bloco de Esquerda, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Hoje em dia, receitam-se drogas muito mais potentes do que a canábis"
Notícias ao Minuto

09/02/18 por Melissa Lopes

Política Moisés Ferreira

A legalização da canábis para fins medicinais, proposta pelo Bloco de Esquerda mas também pelo PAN, baixou à Comissão de Saúde, adiando assim o Parlamento a votação até meados de março. Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o deputado Moisés Ferreira falou da importância de dar este passo em Portugal, por se tratar de uma questão de "direito e acesso à saúde".

Sem esta legalização, conta, o que está a acontecer é que há doentes ou que são "empurrados para o mercado" negro, ou que plantam em casa, "correndo o risco de serem presos por isso".

Sobre o auto-cultivo, proposta que mereceu desconfianças da parte de outros partidos, Moisés refere que se trata de uma questão de confiança nos médicos e nos doentes,  "não é dizer que se tem umas dores de cabeça de vez em quando e que por isso se vai cultivar canábis em casa".  

Nesta entrevista, Moisés Ferreira aborda ainda outros temas da política nacional como a necessidade, em seu entender, de tanto os CTT como a PT voltarem a pertencer ao Estado. O deputado bloquista faz uma avaliação dos últimos anos, criticando o desinvestimento do Governo nos serviços públicos. E o Moisés, gostaria de integrar um governo?, perguntámos. 

Tendo em conta o rumo das coisas, espera que a legalização da canábis para fins medicinais seja, muito em breve, uma realidade no nosso país?

Aquilo que nós esperamos é que o processo todo de especialidade permita fazer uma série de audições, permita diminuir algumas dúvidas que os grupos parlamentares possam ter e permita mostrar que a canábis para fins medicinais é de facto uma solução que é segura e que é necessária. Creio que com o debate na especialidade vamos conseguir mostrar isso. Acreditamos que depois, quando o projeto voltar novamente a discussão em plenário, depois do processo de especialidade, ele estará já mais consensualizado nos outros partidos.

Quanto à questão do auto-cultivo, que mereceu muitas críticas, já será mais difícil um consenso. Como comenta as reticências dos outros partidos, nomeadamente do PCP, quanto ao auto-cultivo? Muitos acreditam tratar-se de um caminho para a legalização da canábis para fins recreativos.

Creio que essas críticas não têm razão de ser,  porque estamos a falar sempre de um cultivo para fins próprios e para fins estritamente medicinais, que continua a estar muito regulado. Ou seja, só com receita médica é que as pessoas ficam autorizadas ao cultivo, não é de qualquer forma, não é dizer que se tem umas dores de cabeça de vez em quando e que por isso se vai cultivar canábis em casa. Não é isso. É o mesmo processo que nós propomos para a dispensa em farmácia. A pessoa tem de ter receita médica, passada por um médico. Depois disso, tem ainda de pedir autorização ao Ministério da Saúde para cultivar, e é o Ministério que, face a cada situação, pode ou não autorizar. Em que situações o faz, é matéria de regulamentação posterior. O decreto regulamentar pode apertar ainda mais a malha, não temos nada contra isso.

A quantidade também está limitada no nosso projeto e está em relação direta com a prescrição. Se o médico receita um determinado paciente a toma de X gramas por dia, isso dá determinado número de pés que ele possa plantar. Todo o processo é altamente rigoroso e regulamentado. Creio que não tem nenhuma razão de ser a crítica de que isto pode abrir caminho para o consumo e liberalizar o cultivo e consumo para fins recreativos. Se fosse assim, não queríamos regulamentar nenhum destes procedimentos. E, também para ser muito sincero, a posição do Bloco de Esquerda é muito conhecida, somos favoráveis à legalização para fins recreativos. Mas se o quiséssemos fazer, propúnhamos um projeto sobre isso, não tínhamos problema nenhum. Quisemos separar as duas questões.

Estamos a falar de uma possibilidade de autorização de auto-cultivo mediante receita médica, mediante autorização do Ministério da Saúde, com quantidades controladas

Mas há quem não veja essa tal separação de questões.

Sim, mas estão muito bem separadas, no nosso entender. Estamos a falar de uma possibilidade de autorização de auto-cultivo mediante receita médica, mediante autorização do Ministério da Saúde, com quantidades controladas. Isto está separado de uma outra situação que seria cultivar para consumo próprio sem regras nenhumas. É curioso que, por exemplo, do lado do PCP – que até foi um dos partidos que publicamente disse que estava disponível para discutir a legalização da canábis para fins medicinais desde que os dois assuntos não fossem discutidos em simultâneo, no mesmo projeto  - e agora, é o próprio PCP que está a misturar tudo. Está a tentar misturar o que realmente não é o mesmo. No nosso projeto, a questão do auto-cultivo não é para outros fins que não os medicinais.

Nem sequer fazia sentido. Imagine: Alguém que seja autorizado a plantar três pés porque o médico autorizou o consumo de 1 grama por dia. Aqueles três pés dão estritamente para aquilo. Faz algum sentido que esta pessoa ande a cultivar três pés para depois andar a dar aos vizinhos, à família? E ficar ele próprio sem a substância que é necessária para o seu tratamento? É estar a criar uma desconfiança sobre os médicos, que é quem prescreve, e sobre o doente. Uma desconfiança que não existe, por exemplo, noutros medicamentos. Hoje em dia, receitam-se medicamentos, drogas, muito mais potentes do que a canábis.

Como os antidepressivos.

Exatamente, por exemplo. E ninguém diz que só pode, por exemplo, ser dispensado um comprimido por dia a um paciente por poder estar a dar a outras pessoas. Não faz sentido.

A posição do PCP, ao pedir que se estude a planta quando os seus benefícios são amplamente conhecidos, é ‘atrapalhar’ aquele que é, para muitos, o curso natural das coisas?

Terá de perguntar ao PCP qual era a intenção. O projeto de resolução que o PCP entregou é contraditório com aquilo que o próprio partido diz. O PCP diz que é uma matéria técnica e não política. Depois tem um projeto de resolução em que diz que cabe ao Governo fazer um estudo para avaliar a evidência científica de outros estudos. A canábis tem, pelo mundo inteiro,  milhares de estudos, uns mais conclusivos que outros, que provam os seus benefícios. Aliás, Ordem dos Médicos fez o seu relatório também baseado nesta evidência científica. E disse que há em determinadas situações em que há evidência científica clara dos benefícios da canábis e outros em que a evidência é moderada, o que é consonante com aquilo que outras entidades dizem, algumas um pouco mais cautelosas. Não será um estudo mais, encomendado e feito pelo Governo, para avaliar a evidência científica de outros, que fará a diferença. É uma forma de fazer com que nada mude, pedindo mais estudos para que não se legalize. Nós achamos que está mais do que na altura de avançar. E, para ser sincero, Portugal já vai atrasado. Já existem muitos países por esse mundo fora onde há legalização de dispensa da planta ou de derivados (óleo, resina, por exemplo). E acontece com benefícios claros para os doentes.

Que benefícios concretamente?

Em muitos destes países, as áreas onde a canábis está a ser prescrita e com benefícios são no tratamento complementar oncológico, pelas suas propriedades antieméticas, no controlo do vómito, da náusea, associada à quimioterapia. 

E no tratamento da epilepsia?

Existem alguns países onde é prescrito e utilizado na epilepsia e na síndrome de dravet (epilepsia grave em crianças). Mas as grandes áreas onde neste momento é prescrito e usado com claros benefícios são no tratamento coadjuvante da oncologia, de HIV/Sida, no controlo de sintomas de doenças neuro-degenerativas e neuro-musculares (espasticidade, rigidez muscular), no tratamento de dor crónica. Parece haver também evidência e utilização para distúrbios alimentares, distúrbios de sono, em situações de dor (porque além das propriedades analgésicas, a canábis parece que amplia as propriedades analgésicas de outras medicamentos que possam estar a tomar).

Notícias ao Minuto"Está mais do que na altura de avançar com legalização da canábis medicinal"© Blas Manuel/Notícias ao Minuto

João Goulão, diretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), concorda com o uso medicinal mas discorda do auto-cultivo, argumentando que, nesse caso, o controlo da qualidade deixa de existir. Compreende este argumento?

Sejamos sinceros, a maior parte das pessoas não vai cultivar. Primeiro, porque é mais fácil aceder na farmácia. Segundo porque uma planta em indoor só passados três/quatro meses é que está pronta a ser colhida. Para além disso, é preciso saber. Só para desmistificar a ideia de que se for permitido, toda a gente vai passar a produzir em casa. Acho que a maior parte das pessoas vai optar por não cultivar.

O auto-cultivo creio que traz duas vantagens. Primeiro, o acesso. Alguns países que legalizaram a dispensa em farmácia, exatamente nos mesmos moldes em que nós propomos, têm-se debatido com o problema da acessibilidade a esta terapêutica. Foi legalizada, e de alguma forma disponibilizada, só que o preço a que foi disponibilizada nas farmácias pôs em causa a acessibilidade. O que levou, inclusive, a Itália a encarregar o Exército de plantar canábis para poder abastecer as farmácias. O auto-cultivo podia responder a isso. Pode responder a uma outra coisa, o acesso a uma estirpe que seja mais funcional a uma determinada pessoa. Há dezenas de estirpes de canábis e a diferença é a percentagem de THC, CDB, canabinóides. A ser disponibilizada, serão disponibilizadas três ou quatro estirpes tipo, mas há muitas outras. Imaginemos que para determinada pessoa, com determinada patologia, a estirpe com que ela se dá melhor é uma que não está disponibilizada nas farmácias. Essa pessoa podia plantar essa estirpe em casa.

Percebo e sou sensível à questão da qualidade, até porque queremos que a toma seja segura, queremos que as pessoas estejam a consumir produtos que não façam mal à saúde ou que, pelo menos, na relação entre toxicidade e benefícios, sejam claramente benéficos para a pessoa. Sim, é preciso ter cuidado com a qualidade do produto.

E como é que essa qualidade pode ser assegurada?

Uma das formas de a assegurar era garantindo a regulação e o controlo das sementes que são disponibilizadas. Garantir logo à partida que as sementes não são sementes que foram manipuladas de alguma forma. Era já meio caminho andado para garantir a qualidade do produto. No nosso projeto de lei dizemos que o Infarmed - como autoridade do medicamento - é quem deve regular todo este processo.

De que forma é que as sessões públicas que o Bloco tem vindo a fazer têm sido proveitosas para melhorar o projeto?

Têm sido proveitosas, primeiro, para perceber a pertinência do projeto. A quantidade de profissionais de saúde presente nessas sessões a dizer que, enquanto profissionais, gostariam de ter acesso a esta terapêutica, que gostariam de a poder prescrever a determinados doentes seus, seja porque outras soluções já falharam, seja por considerarem que seria uma boa terapêutica complementar... Bom, sem a legalização não podem.

Também têm aparecido doentes que são, ilegalmente, utilizadores e, alguns deles, utilizadores cultivadores. Cultivam em casa para o seu consumo. Têm dito que a utilização da canábis para fins medicinais lhes traz benefícios. E sem a legalização, o que lhes está a acontecer é: ou estão a ser empurrados para o mercado negro e consomem sem poder aferir a qualidade - e aí sim há um problema de qualidade - ou  cultivam em casa, correndo o risco de poder ser acusados de serem traficantes podendo ser presos por causa disso. As sessões e a conversas mostram a necessidade desta proposta da legalização para fins medicinais e a importância da questão do acesso. Não interessa ter uma lei que legaliza se depois não é acessível.

Quanto ao uso recreativo, é uma proposta que farão mais adiante?

Sim, poderemos fazê-lo mais para a frente. Não temos problema nenhum em dizê-lo, sempre o defendemos. Mas, como não queremos misturar as coisas, nem dar pretexto a quem quer misturar as coisas, e porque acreditamos também que os argumentos para o uso recreativo são diferentes dos argumentos do uso medicinal, neste momento não avançamos para essa proposta. Nem temos  calendarizado nem programado quando e como avançar com essa proposta. Estamos, neste momento, a discutir para fins medicinais, parece-nos que é, entre as duas, prioritário porque estamos a falar do direito e acesso à saúde. Não queremos prejudicar esta intenção colocando outras em cima. Vamos fazer o debate desta, ver como corre, esperando que acabe bem, com a aprovação e legalização. Depois logo veremos. Neste momento, há que separar águas. 

Não sejamos hipócritas nem inocentes. Todos os consumos têm consequências, todos sem exceção. Qualquer medicamento que temos lá em casa tem efeitos secundários, todos têm

Há estudos que relacionam o consumo de cánabis com doenças mentais. É uma coisa que preocupa o Bloco?

Não sejamos hipócritas nem inocentes. Todos os consumos têm consequências, todos sem exceção. E o consumo de canábis não é inócuo. Não vamos dizer o contrário. No que toca a usos medicinais, o consumo não é inócuo como não é inócuo o consumo de nenhuma outra substância. O que deve ser sempre pesado e calibrado é o nível de toxicidade, os potenciais efeitos adversos e os benefícios que isso traz para o utente. Será o médico a medir esses dois pratos da balança. E em qualquer situação em que se chegue à conclusão que os benefícios são maiores que os riscos, então deve ser prescrita. Mas isso é como em tudo. Qualquer medicamento que temos lá em casa tem efeitos secundários, todos têm. Não é pelo facto de o Benuron tomado em excesso poder causar problemas de fígado que o médico não o prescreve. Porque, para determinada situação o benefício é superior ao malefício. E com a cánabis é a mesma coisa. Existem, do ponto de vista psiquiátrico, a associação entre a canábis e alguns distúrbios, não porque a canábis produza o distúrbio, mas porque pode potenciar algo que está latente.

O ex- presidente do Infarmed, Aranda da Silva, que assinou a carta aberta a apelar à legalização, disse que nenhuma substância é inócua, todas elas têm toxicidade e benefícios e é pesando as duas partes que se deve decidir pela legalização ou não. No caso da canábis, a toxicidade é relativamente baixa para o benefício que ela traz em determinadas doenças. Nem deveria haver grande relutância em legalizar.

Uma outra subscritora, a Ana Matos Pires (diretora do serviço de psiquiatria no Hospital de Beja) dizia  numa entrevista que, realmente, há alguma associação entre consumos e alguns distúrbios psiquiátricos que podem ser espoletados pelo consumo. Mas, dizia também que tem de ser visto caso a caso. Se num determinado caso, é claro que um paciente beneficia com a utilização da canábis, então não deve haver qualquer problema em prescrever. E já não estamos a falar nos casos paliativos e outros, porque aí já estamos a falar de um alívio de dor e de garantir uma  qualidade de vida final em que isso deve ser uma prioridade em relação ao resto. Estamos a falar no dia-a-dia, normalmente.

Quando existem profissionais da área que dizem que claro que chegam  à conclusão que os benefícios são superiores e que não há problema nenhum, nós, enquanto decisores políticos, devemos confiar. Os médicos sabem do que se trata, muitos deles conhecem a substância do ponto de vista científico. Não devemos ter problema nenhum, nem ter um desconfiança dos médicos e achar que vão prescrever a toda a gente para consumirem o que quiserem.

Na área da Saúde, o Governo do PS tem ficado claramente aquém do que é preciso fazerMudemos aqui a agulha para a política nacional no sentido mais lato. Estamos num momento em que as eleições legislativas de 2019 começam já a ser um dado no jogo político. Antevê aqui algumas tensões e fricções entre o Bloco e os vários partidos, nomeadamente o PS?

Não sei se terá alguma coisa a ver com o facto de haver eleições em 2019. É simples, se o PS optar por uma política de reposição de rendimentos - como temos defendido -, de investimento nos serviços públicos, não haverá fricção nenhuma. Se, em algumas áreas, continuar a optar por privilegiar o défice em vez dos serviços públicos, privilegiar a abordagem contabilística e financeira, em vez de alguma abordagem social, então nós manifestaremos claramente a nossa discordância, como temos feito.

Na área da Saúde, o Governo do PS tem ficado claramente aquém do que é preciso fazer. Por exemplo, não tem tido coragem para combater os negócios na saúde, combater as rendas e a privatização gradual do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ao não ter coragem para fazer isto, está a permitir que anualmente exista muitas centenas de milhões de euros que são transferidos diretamente do orçamento do SNS para privados. E esta é uma área em que temos uma discordância, um confronto com o Governo do PS. Nas parcerias público-privadas, achamos que é um profundo erro que o Governo está a fazer [ao renovar algumas das PPP]. Consideramos que ainda é possível voltar atrás. Se o Governo não o fizer, está a cometer um erro muito grande e a prejudicar o SNS por corroborar essas PPP.  É só um exemplo, podia haver outros.

Nomeadamente?

O Bloco de Esquerda propõe que os concursos de contratação de médicos recém especialistas se façam obrigatoriamente até 30 dias depois da fase final da formação. Para simplificar: Há duas fases de formação, abril e outubro. E aquilo que nós queremos é que 30 dias depois de essas fase estar terminada sejam abertos os concursos para que esses médicos que acabaram de se formar possam ser integrados no SNS.

E o que é que está a acontecer atualmente?

A fase de abril de 2017 já foi há nove meses e ainda não abriram concursos. Isto quer dizer que daqueles cerca de 600 médicos que se formaram em especialidades, muitos deles já foram trabalhar para o privado, já emigraram, já se fizeram à vida. E o SNS perdeu dezenas, muito provavelmente uma ou duas centenas de médicos de que o SNS precisava.

Notícias ao MinutoMoisés Ferreira diz que "Governo não tem feito o que era necessário"© Blas Manuel/Notícias ao Minuto

É uma questão de eficiência?

É uma questão de eficiência e de investir nos serviços públicos, em vez de estar preocupado com os 1,2% do défice ou tentar ter sempre uma meta do défice para lá de aquilo que o Governo se propôs. E, portanto, sim, nestas áreas há divergência e confronto. Se houver uma política de Esquerda de reposição de rendimentos, melhoria de qualidade de vida das pessoas e investimento nos serviços públicos, estaremos de acordo nessas políticas. Se, por exemplo na Saúde, seguir as políticas dos últimos tempos, não divergindo significativamente daquilo que eram as políticas do governo PSD/CDS, terá a oposição do BE. Creio que não é por haver eleições em 2019, é mesmo porque o Governo PS não está a fazer o que era necessário.

O desinvestimento nos serviços públicos, nomeadamente na Saúde, é o que tem corrido pior?

Sim. A priorizar esta ideia de ser o bom aluno perante Bruxelas e para isso destapar os serviços públicos. O ponto de partida dos serviços públicos já era muito mau. Na Saúde, quatro anos de desinvestimento do PSD/CDS, em que se cortou em milhões de euros no orçamento, representou quatro anos em que não houve investimento nos equipamentos e os equipamentos estão, nos hospitais e centros de saúde, completamente obsoletos. Era preciso um investimento grande para recuperar esses quatros anos. Ao não se fazer esse investimento, ao fazer-se um investimento mínimo no SNS, o que se está a fazer é aumentar a obsolescência dos equipamentos. Só para falar de equipamentos, sem falar nos profissionais e nos edifícios. Já deveria ter existido - e deveria ter sido desde o início da legislatura – uma injeção grande de investimento para recuperar dos últimos anos de desinvestimento. E isso não tem estado a ser feito. Aliás, o sub-financiamento do SNS é, em 2018, ainda uma realidade. Foi sempre, é verdade. Mas se tivéssemos um Governo que estivesse apostado em investir nos serviços públicos já era expectável que não existisse esse sub-financiamento.

Se não for revertida a situação dos CTT, aquilo que a administração vai estar constantemente a fazer nos próximos anos é o que está a fazer agora Relativamente aos CTT, considera ser possível um dia os Correios voltarem a ser públicos?

O Bloco de Esquerda já trouxe esse tema a plenário, ainda antes de se saber do encerramento dos balcões. E na altura, do lado do PS, do PSD e do CDS não houve abertura. Esperamos que o facto de logo a seguir a isso, a administração privada dos CTT se ter sentido à vontade para encerrar uma série de estações, tenha feito PS, PSD e CDS meter as mãos na consciência e que mudem de posição. Se não for revertida a situação dos CTT, aquilo que a administração vai estar constantemente a fazer nos próximos anos é o que está a fazer agora.

Que é?

A administração está a tentar cortar nas despesas para aumentar depois o lucro e os dividendos no final do ano. Os CTT davam lucro quando foram privatizados, e deram sempre lucro, até agora. Qual foi o problema?  A administração privada começou a distribuir pelos seus acionistas prémios que nos últimos anos têm sido superiores ao lucro. A operação dos CTT dá lucro, só que a administração privada está a açambarcar esse lucro todo e a distribuir entre si. O problema está na administração privada, está mais do que visto.

A Altice tem primado por, nos últimos tempos, não só ter destruído aquilo que era a PT, mas por fazer uma série de atropelos aos direitos do trabalhadoresA Altice atacou o deputado Heitor de Sousa acusando-o de “demagogia” e de “falta de sentido de responsabilidade”, solicitando até uma audiência ao Presidente da AR. Como classifica esta reação da Altice?

O Bloco de Esquerda acha que, não só as redes do SIRESP, como a PT, devem voltar para a esfera pública. Qualquer pessoa neste país percebe que a privatização deu cabo do serviço. A Altice tem primado por, nos últimos tempos, não só ter destruído aquilo que era a PT, mas por fazer uma série de atropelos aos direitos do trabalhadores. Foi conhecida a tentativa de despedimento que fez encapotado através de transferências de empresa do mesmo grupo. Isto é que o Altice faz à frente da PT. Ora, ver a Altice indignar-se porque o Bloco acha que aquilo deve ser um serviço público prestador de serviços públicos à população é caricato. Estamos a ver uma entidade que atropela os direitos dos trabalhadores, que não presta serviço público, que deteriorou aquilo que era serviço público, a queixar-se de alguém que quer melhorar o serviço público. Acho que nem é para levar muito a sério, na verdade. Esta é apenas mais uma etapa. Vem à Assembleia da República na verdade para quê? Para quartar a liberdade de um grupo parlamentar? Apresentar as suas propostas? Isto não tem sentido nenhum. É de quem não tem sentido nenhum de democracia. Acreditamos que o negócio para eles é muito rentável e, por isso, estão um bocado chateados com isto tudo.

Incomodados?

Sim, mas nós não estamos cá para defender os valores da Altice, estamos aqui para defender o interesse público, o interesse dos cidadãos e das cidadãs. Se a Altice fica incomodada com isso, na verdade é um problema deles.

Em termos globais, como avalia a prestação do Governo?

Convém ir à génese, depois das eleições legislativas e as negociações que existiram para o programa de governo e um suporte parlamentar e viabilização do Governo, para perceber e nos lembrar-mos todos que o o programa inicial do PS era um programa de flexibilização do mercado de trabalho – despedimentos é o que a flexibilização quer dizer, que congelava prestações sociais, que mantinha congeladas as pensões, que não previa a reposição de rendimentos na ordem em que foi feita, que não previa o aumento do salário mínimo nacional. Foi com os acordos feitos, nomeadamente com o Bloco de Esquerda, que isso foi possível. O descongelamento de pensões, o aumento de uma série de prestações sociais, o aumento do salário mínimo, outra medidas como a tarifa social de eletricidade, a criação dos novos escalões do IRS, o fim mais rápido da sobretaxa do IRS, as reposições dos salários da função pública, só foram possíveis porque o Bloco de Esquerda negociou isso com o Governo.

Muito do que de positivo tem acontecido tem sido possível porque existem forças à Esquerda do GovernoÉ desejável que a Geringonça se reedite depois das eleições de 2019?

Muito do que de positivo tem acontecido tem sido possível porque existem forças à Esquerda do Governo que conseguem fazer aprovar as suas propostas e algumas das suas medidas. Aquilo que há a retirar daqui é que se o BE, hoje, com 19 deputados, 10% nas últimas legislativas, consegue tanto, apesar de tudo, aquilo que temos de fazer é dar mais força a quem conseguiu isto e não estar propriamente a pensar em próximas Geringonças. Está tudo muito longe.

O que é preciso fazer é dar mais força a quem conseguiu efetivamente ir melhorando a vida dos portugueses. Estando nós insatisfeitos com isso, porque queríamos certamente em vez de ter sido dois novos escalões do IRS, tivessem sido quatro, gostaríamos de estar a discutir salários mais altos do que aqueles que estamos a discutir, em todos os orçamentos discutidos até agora, o BE apresentou sempre várias dezenas de propostas de alteração, muitas foram incorporadas, mas muitas ainda não tivemos força para incorporar.

Há aqui muitas outras medidas que gostávamos de ver traduzidas na prática. A legislação laboral precisa de ser fortemente alterada, o PS não tem mostrado nenhuma disponibilidade para isso, para sermos sinceros. Os serviços públicos precisam de um investimento muito grande, o PS tem sido muito insuficiente nisso. É preciso olhar para as forças políticas representadas e ver quem defende o quê. Quem quiser mais investimento, quem quiser uma maior recuperação de rendimentos, quem quiser conquista de direitos laborais, é no BE que se reverá. E se o BE, em vez de 10%, tiver 12, 15%, se em vez de 19 deputados, tiver 20, 30 deputados, então teremos mais força para o fazer. É esse o foco para as próximas eleições.

E o Moisés gostava de um dia integrar um governo?

Se for um governo do Bloco de Esquerda.

Só nessa circunstância? E integrando, por exemplo, uma coligação?

Creio que sim. São tudo cenários altamente hipotéticos. É muito difícil dizer. Existe o texto e o contexto, e sem o contexto é muito difícil dizer [risos]. 

Podia vir a ser, por exemplo, um ministro da Saúde.

Neste momento, vejo-me como deputado com essa área e com muito trabalho para fazer até ao final desta legislatura.

O Moisés, como outros deputados, faz parte de uma geração de políticos que, a continuarem o seu caminho, que vai ‘comandar’ os destinos do nosso país. Podemos ficar descansados?

Só podemos ficar descansados quando todas e todos nós percebermos aquilo que realmente somos, agentes políticos. Que não deixemos unicamente nas mãos dos deputados, presidentes de câmara, deputados municipais, representantes de freguesia o comando dos destinos da nossa vida. É bom que todas e todos nós, enquanto sociedade, façamos também a nossa parte e intervenhamos. Estaremos em boas mãos quando todos nós contribuirmos para isso.

Não vão ser os políticos os salvadores da pátria.

Exato [risos].

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