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"Transportei explosivos, mas o ato final não fiz. Gostava de ter feito"

A médica e ativista Isabel do Carmo é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.

"Transportei explosivos, mas o ato final não fiz. Gostava de ter feito"
Notícias ao Minuto

17/01/18 por Pedro Bastos Reis

País Isabel do Carmo

Isabel do Carmo é médica e ativista política. Foi uma das principais protagonistas das ações armadas contra a ditadura do Estado Novo, tendo, na altura, formado as Brigadas Revolucionárias e o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP).

Militante desde a sua juventude, entrou para o Partido Comunista Português (PCP) durante os tempos de faculdade. Insatisfeita com os ditames que vinham de Moscovo e com a falta de vontade do partido em desencadear ações armadas para derrubar o regime, abandonou o partido e tornou-se um dos cérebros das Brigadas Revolucionárias, tendo participado, entre outras atividades, na organização do ataque à base da NATO em Fonte da Telha ou no assalto a um banco de Alhos Vedros. O principal objetivo? Enfraquecer o regime. A condição? As ações das Brigadas não podiam causar mortos.

O lançamento, em outubro do ano passado, do livro ‘Luta Armada’ (publicado pela D.Quixote) foi o mote para a médica e ativista receber o Notícias ao Minuto na sua casa. Isabel do Carmo explica, então, o motivo que o levou a escrever este livro: clarificar que a LUAR, a ARA e as Brigadas Revolucionárias nunca pretenderam matar nem mataram ninguém, à exceção de um rapaz que morreu, acidentalmente, quando mexeu numa bomba colocada pela organização.

Presa diversas vezes, antes e depois do 25 de Abril, Isabel do Carmo conta várias histórias do seu tempo de clandestinidade, em que o medo esteve sempre presente. A autora confessa que a sua ação nas Brigadas passava, sobretudo, pela componente organizacional e ideológica. Admite que transportou explosivos para que outros desencadeassem as ações, mas garante que nunca fez o “ato final”. No entanto, confessa, “gostava de o ter feito”, uma vez que “podia ter ido mais longe” no combate à ditadura.

Durante a entrevista, Isabel do Carmo deixa também críticas ao PCP, quer no tempo da ditadura, quer na atualidade. Durante o Estado Novo, por ter seguido a União Soviética e não ter optado pelas ações armadas para derrubar o regime. Na atualidade, por o partido ainda não ter feito “uma análise teórica e política do estalinismo” e por colocar, de certa forma, a restante Esquerda de lado. Dos seus tempos de luta, guarda várias amizades dentro do PCP, mas desabafa que, ainda hoje, muita gente do partido não lhe fala.

Havia uma necessidade que não era só minha para que se passasse a uma fase de luta diferenteQuando toma consciência da ditadura que existia em Portugal e decide que devia seguir por uma via revolucionária para a combater?

Vivia num meio muito politizado. Nasci no Barreiro e vivi no Barreiro até entrar para a faculdade. Foi uma consciência quase natural, porque havia lutas contra a ditadura e também muita repressão. Era um meio cultural, de hábitos e memórias, onde era normal ser contra a ditadura. Os jovens levam as coisas até ao máximo, e portanto, eu tinha consciência e acabei por entrar para o Partido Comunista.

Entra para o Partido Comunista durante os tempos de faculdade.

Sim, e estive enquanto médica também. Depois, a certa altura, senti a necessidade daquilo que parecia óbvio para muitas pessoas – haver ações da parte das organizações clandestinas no sentido de enfraquecer a ditadura.

O que a levou a abandonar o Partido Comunista e a fundar as Brigadas Revolucionárias?

Desde os anos de 1960, com as revolta dos estudantes, dos mineiros do Alentejo e, sobretudo, com as eleições para a Presidência da República [em que concorreu Humberto Delgado] que trouxeram multidões para a rua, tornou-se óbvio que o regime não cedia em termos de resultados eleitorais, pois estes eram falsificados. A partir de 1958, tinha 17 anos nessa altura, havia uma necessidade que não era só minha para que se passasse a uma fase de luta diferente. Esses anos foram correndo, e depois há as eleições de 1969, com uma grande mobilização e mais uma fraude eleitoral, e, a partir daí, tinha de se passar para a fase armada, não para tomar o poder porque não tínhamos força para isso, mas para o enfraquecer, e daí que tivéssemos posto vezes e vezes essa questão ao Partido Comunista, que não se resolvia a fazer essas ações. Foi essa a génese da criação das Brigadas Revolucionárias. Mais tarde, o Partido Comunista acaba por formar a Acção Revolucionária Armada (ARA), uma resposta à movimentação e aos desejos dos militantes.

Por que motivo é que o Partido Comunista criou essas barreiras à ação armada?

A minha interpretação é que essa não era a orientação soviética. Não estava enquadrada, na União Soviética, uma tomada de poder por forças de Esquerda nos outros países fora da sua órbita. Não era essa a estratégia e, portanto, os partidos comunistas não estavam 'autorizados' a ter esse tipo de orientação.

Na Primavera de Praga houve um sonho de um socialismo em liberdade e esse sonho foi derrubadoComo foi a consciencialização, na altura, relativamente ao que se passava na União Soviética, nomeadamente durante a Primavera de Praga?

Em Portugal, não tínhamos informação de coisa nenhuma, nem do bom nem do mau. Sempre que o regime falava mal daqueles países, nós entendíamos que era mentira. Por outro lado, os partidos comunistas, mesmo depois do relatório de Khrushchov sobre os crimes do estalinismo, não informavam sobre o que se passava. Vivíamos nesta dupla ignorância. A partir do momento em que essas coisas vêm ao de cima, e na Primavera de Praga foi evidência, há, para muitos de nós, sobretudo os que iam mais ao estrangeiro e viam o que era publicado em França, o encarar de uma brutalidade relativamente ao que se passava de repressão naqueles países. Isso foi um choque muito grande e, a pouco e pouco, tivemos uma ideia daquilo que milhões de pessoas passaram durante o estalinismo e depois. Na Primavera de Praga houve um sonho de um socialismo em liberdade e esse sonho foi derrubado pela ocupação armada da Checoslováquia.

No ‘Luta Armada’ escreve que “as três organizações aqui visadas – LUAR, ARA e Brigadas Revolucionárias – tiveram desde o início o propósito de não fazer atentados a pessoas, mesmo aos piores inimigos, e assim foi”. Clarificar esta questão foi o principal motivo que a levou a escrever o livro?

Foi um dos motivos. Porque os meios de comunicação, de um modo geral, estão nas mãos de quem distorce a realidade. Ligam essas três organizações a mortes, a execuções e a assassinatos. Portanto, [queria] esclarecer que isso não aconteceu e que essas três organizações, ao contrário de outras na Europa, nunca tiveram como objetivo execuções e nunca causaram mortes, tirando uma acidentalmente e também a de militantes por acidente. Era importante esclarecer isso. Apesar disso, mesmo já depois de o livro ser publicado, ainda houve tentativas de confundir as pessoas.

Na sociedade portuguesa ainda há quem associe o combate à ditadura ao terrorismo?

Constantemente. De facto, não teve nada a ver com terrorismo. Mesmo aquelas organizações que enveredaram por causar mortes, não têm nada a ver com o terrorismo atual. O terrorismo é, sobretudo, a colocação de um explosivo num local, que vai abranger pessoas indiferenciadas e vai causar terror na população. Não aconteceu connosco, de maneira nenhuma. O que causou foi surpresa e a ideia de que aquele regime podia ficar abalado.

Como referiu, numa das ações um rapaz acabou por morrer ao mexer numa bomba. Isso pesou, de alguma forma, nas ações que se seguiram?

Pesou dentro da medida em que houve mais cuidado e observação em relação ao que se passava com os explosivos. Nunca se apurou bem qual foi o erro, mas foi um choque terrível.

O medo, a ideia de que pode vir a polícia, está muito presente. É uma constante nas organizações clandestinasComo era o funcionamento das Brigadas Revolucionárias?

Era muito clandestino. Havia uma direção muito restrita e células que se ligavam à direção e não se conheciam entre si. As pessoas tinham pseudónimos e havia uma defesa a possíveis prisões ou infiltrações.

O que mais recorda do tempo da clandestinidade?

O medo. Geralmente, quando se faz o relato dessas épocas parece que tudo se passa heroicamente. Mas o facto é que o medo, a ideia de que pode vir a polícia, está muito presente. Essa parte do medo é uma constante nas organizações clandestinas. Depois, há também uma ligação muito próxima entre as pessoas, uma vez que não há ligações para o exterior. Há, portanto, um estrito meio, com poucas pessoas, e isso cria laços e uma certa capacidade para interagir, ou não, nas relações interpessoais.

Quando se sentia ameaçada, mudava de casa?

Mudávamos de casa com frequência. Muitas vezes usávamos casas de amigos, casas legais, com pessoas que entravam e saíam, que tinham a sua vida, e estava lá uma pessoa clandestina que justificava a situação perante os vizinhos. Dizia que eram primos da província que tinham vindo. Outras vezes, alugávamos mesmo casas para termos um local onde as coisas se pudessem passar de uma forma mais alargada. À mínima suspeita mudávamos de casa.

Transparece a ideia de que as ações das Brigadas Revolucionárias e das restantes organizações em que participou, por si só, não teriam a capacidade de derrubar o regime. Enfraquecê-lo e despertar a consciência do povo eram os principais objetivos das ações que desencadearam?

Eram. Do ponto de vista estratégico, a ideia era enfraquecer o regime. Não tínhamos poder nem ideia de sermos nós a tomar o poder diretamente. Estas ações enfraqueciam muito o regime, porque eram públicas, o regime não as conseguia esconder. Rebentar uma bomba na Praça de Londres ou destruir carros de combate em grande número é qualquer coisa que não pode ser escondida aos olhos do público. O regime tinha de fazer comunicados, justificar. As pessoas sentiam que aqueles indivíduos não controlavam tudo. A própria polícia ficava desorganizada, porque estava habituada a um tipo de resistência que conhecia.

Fiz transporte de explosivos, observação de locais. Mas o ato final e concreto não fizEra no efeito que estas ações tinham na sociedade que encontravam motivação para continuar?

A sociedade estava farta do regime. Naturalmente, havia meios mais no interior e rurais que não tinham consciência do que se passava. Os trabalhadores no Alentejo tinham consciência do que representava o regime, mas outros meios, mais conservadores e ligados à pequena propriedade, não tinham.

Nunca esteve envolvida diretamente no assalto a bancos, mas fez parte da organização que preparava esses assaltos. Olhando para trás, sente que alguma vez foi longe de mais nas suas ações? Ou, pelo contrário, há algum momento em que sinta que podia ter ido mais longe?

Acho que poderia ter ido mais longe. No fundo, em muitas ações, preservei-me, ao contrário do Carlos Antunes. Eu estava muito ligada à vida civil, era médica no Hospital de Santa Maria. Era uma coisa que entrava um bocado em conflito com a minha vida quotidiana. Depois, fui para clandestinidade e as coisas foram diferentes. De qualquer maneira, podia ter mais longe.

O que sente que poderia ter feito e não fez?

O que os outros fizeram e eu não fiz. Colocar, propriamente, as bombas e fazer os assaltos a bancos.

A sua ação passava, essencialmente, pela organização.

Sim, era mais organizacional e ideológica. Fiz transporte de explosivos, observação de locais. Mas o ato final e concreto não fiz.

E gostava de ter feito.

Gostava de ter feito.

Um dos capítulos mais marcantes do livro é aquele em que os seus filhos a entrevistam. Como foi ser entrevistada por eles? Sente que lhes devia algum tipo de explicação relativamente ao seu passado?

Foram eles que solicitaram muito. Foi da cabeça deles que aquilo saiu. A entrevista, tal como está, não sofreu mudanças. A minha filha é jornalista e disse “não mexes aqui porque deontologicamente não tens nada que ver a entrevista”. Como está é como foi. Puseram-me questões sobretudo políticas, nunca privadas. As questões políticas ficaram esclarecidas para eles, e isso foi importante.

O ambiente em que decorreu o julgamento na Boa-Hora foi uma reprodução do que se passava antes do 25 de AbrilDepois do 25 de Abril, o regime cai mas as atividades não cessam. Em que ações revolucionárias esteve envolvida? Foi acusada, em 1978, de autoria moral de um assalto a um banco e, já na prisão, surge a questão do assassinato do ex-militante José Plácido.

No dia 25 de Abril cessaram as ações e as atividades das Brigadas Revolucionárias. Até ao 25 de Novembro tivemos, exclusivamente, ações legais. Entrámos em força para as ações em liberdade, todos os que eram das Brigadas e do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP). Hoje é difícil perceber, mas houve organização de Norte a Sul do país, e todas as ações eram de propaganda e de apoio a lutas que existiram nessa altura nas fábricas. As pessoas vinham de situações de baixos salários, falta de direitos. Havia lutas nos CTT, no Aeroporto, nas fábricas. Integrámo-nos nessas lutas, assim como na ocupação de casas, para ajudar as pessoas. São os chamados ilegalismos urbanos. Fundámos ainda um jornal. Ficámos muito ocupados e era muita gente.

Depois do 25 de Novembro, as coisas mudaram. Pressentimos que ia haver aquele golpe de Direita de contrarevolução. Durante outubro e novembro constitui-se uma direção político-militar com o Movimento de Esquerda Socialista (MES) e com militares das Forças Armadas. Era uma organização no sentido de se resistir. Veio o 25 de Novembro e fomos vencidos pela contrarevolução. As Brigadas Revolucionárias passaram, então, a organizar-se novamente e tivemos vários processos a seguir ao 25 de Novembro, eu e o Carlos Antunes. Acho que fomos os únicos civis que tivemos processos militares. Depois, acabámos por ser presos em 1978 com a acusação de autores morais de assaltos a bancos. E ficámos por aqui. Nessa altura, houve um grupo de pessoas, algumas oriundas do PRP, que fizeram uma execução.

O José Plácido.

Sim, na Marinha Grande. Só soubemos disso posteriormente. Estávamos presos e foram lá dizer-nos que tinham matado o José Plácido. Para nós foi terrível. Primeiro, porque estávamos em desacordo e, depois, porque, evidentemente, não tínhamos sido contactados. Além disso, antecedeu o nosso julgamento. Não podia ter sido pior para nós. Fomos logo chamados à polícia a perguntar se éramos nós os mandantes, mas tanto eu como o Carlos Antunes, sem estarmos em comunicação, respondemos a mesmas coisa: “não, os mandantes foram vocês”.

Tentaram acusá-los do assassinato.

Sim, mas nunca fomos julgados, judicialmente, por esse assassinato. Mas a verdade é que o ambiente em que decorreu o julgamento na Boa-Hora foi uma reprodução do que se passava antes do 25 de Abril.

Notícias ao Minuto'Luta Armada'  aborda as ações armadas antes do 25 de Abril na luta contra a ditadura© Blas Manuel/Notícias ao Minuto

Esteve presa, por diversas vezes, antes do 25 de Abril, e depois esteve nessa altura. Quais são as principais e semelhanças entre estes dois períodos?

As semelhanças foram muitas. Estive muito tempo isolada, nove meses. Tinha o meu filho comigo, que foi uma boa coisa, mas esse tipo de isolamento foi o mesmo que antes do 25 de Abril. Estive mais tempo no hospital prisional de Caxias, mas também estive no Porto e na prisão da [Polícia] Judiciária. Mas o tempo principal foi no hospital prisional e cada vez que vinha a julgamento ficava em isolamento na Cadeia das Mónicas, onde as condições físicas eram péssimas. O que era muito diferente, e que faz a diferença, é que [no pós-25 de Abril] tinha o direito a livros. Isso, para uma pessoa que gosta de ler, faz toda a diferença.

No Partido Comunista, houve pessoas que me deixaram de falar e que ainda hoje não me falam

Após o 25 de Novembro houve uma ‘caça às bruxas’ para parar o processo revolucionário?

Foi mesmo um processo contrarevolucionário. A ideia que havia, antes do 25 de Novembro, de que era possível o poder popular emanar das bases com concelhos, comissões, que tivessem algum poder de decisão e que fossem representantes, a democracia direta, a propriedade coletiva dos campos e de algumas fábricas, o controlo das rádios pelos trabalhadores… tudo isso desapareceu. No 25 de Novembro, essa ideia que era alargada, sobretudo, nos meios mais urbanos e no Sul, foi expressamente terminada e, a partir daí, houve a constituição da estrutura de uma democracia ocidental.

Depois de sair da prisão, já nos anos de 1980, que lutas políticas abraçou?

Saímos em 1982 e comecei logo uma tentativa de fazer uma organização unitária de Esquerda. Fizemos encontros de uma coisa a que chamamos Convergência com o partido trotskista, com o que restava da Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR) e com uma dissidência da União Democrática Popular (UDP). Essa Convergência não se corporizou de uma forma a haver ações conjuntas, ficou em suspenso e acabou por concretizar no Bloco de Esquerda. Envolvemo-nos também na luta pela amnistia dos entretanto presos das Forças Popular 25 de Abril (FP-25), porque achávamos que era a única forma daquelas pessoas se libertaram da repressão exercida sobre atos, sobres os quais não estávamos de acordo, mas que eram ainda o rescaldo do ambiente revolucionário.

Depois, fizemos também uma organização que se chamou Fórum Ecologista e Alternativo, quando começaram os partidos ecologistas na Europa. Fizemos ainda as Feiras Alternativas. Enfim, mexemo-nos sempre.

Portanto sempre dentro de movimento de Esquerda mas não propriamente ligada aos partidos estabelecidos. Nunca se voltou a aproximar do Partido Comunista?

Não. Nem ele de nós. Éramos postos à distância, como continuamos a ser. Na génese do Bloco, houve pessoas que estavam connosco nesse Fórum Alternativo. Mas nós estivemos fora disso.

Por que razão sentiu necessidade de incluir, no livro, entrevistas a outras figuras importantes da ação revolucionária, como Raimundo Narciso, Carlos Antunes ou Camilo Mortágua?

Acho que havia que fazer justiça às pessoas que estiveram na luta clandestina, que arriscaram, que tiveram coragem, que puseram as suas vidas em causa. Foram muitos, mas escolhi aqueles que estiveram à cabeça disso e que podem representar os outros. Por outro lado, a originalidade de pôr no livro as três organizações, que houve momentos em que não estiveram juntas e podiam ser bastante distantes, mas que passados estes anos todos têm capacidade para estar juntas. No fundo, as organizações tiveram pontos semelhantes, como não causar mortos, e expressaram muito o ímpeto dos jovens para este tipo de ação, embora, organicamente, fossem diferentes.

[O PCP] É um partido que vem intacto do estalinismo, que nunca foi criticado de uma forma séria e profundaEssas amizades mantêm-se até aos dias de hoje. Alguns camaradas de luta da altura deixaram de lhe falar?

No Partido Comunista, houve pessoas que me deixaram de falar e que ainda hoje não me falam. É curioso que ao fim de tantos anos alguns não me falem. Outros deixaram de falar na altura e agora falam. Por sinal, o Raimundo Narciso, da ARA, é um homem muito tolerante. Ele não teve essa animosidade em relação às Brigadas e, quando estive com ele depois do 25 de Abril, falámos sempre. A pouco e pouco, sobretudo nos anos do cavaquismo, a que a certa altura se estreitou muito a zona dos que lutavam contra os governos do Cavaco [Silva], encontrávamo-nos e falávamos. Depois, constitui-se o movimento Não Apaguem a Memória. Com as pessoas da LUAR também houve contacto.

Refere que, mesmo nos dias de hoje, o Partido Comunista põe de parte o resto das Esquerdas. Por que é que isso acontece?

É um partido que vem intacto do estalinismo, que nunca foi criticado de uma forma séria e profunda. E é pena. O Partido Comunista nunca fez uma análise teórica e política do estalinismo. Diz umas coisas, de passagem. Diz que foram uns erros. Mas nunca analisou a tragédia que foi o estalinismo para a Esquerda em geral e para a esperança do socialismo. Portanto, essa marca persiste, e persiste sob a forma de sectarismo. Não digo que não haja pessoas no Partido Comunista com as quais me dou muito bem, nomeadamente ao nível das questões da saúde, em que tem havido um clima de grande tolerância e amizade, de luta conjunta e de organização em que todos esses aspetos do sectarismo foram ultrapassados.

Ainda hoje há a dificuldade em repudiar regimes que tiveram proximidade ideológica ao Partido Comunista.

É incrível como não há uma reflexão de maneira a condenar a Coreia do Norte, por aquilo que é como país onde há uma enorme repressão e com condições sociais terríveis. Até podiam dizer que a Coreia do Norte é um país com mísseis, e que desse modo não vai ser invadida como foi o Iraque, mas é um país numa situação que rejeitamos. Podiam dizer isso, mas não dizem.

Em relação aos países africanos então, ainda é mais complexo. Sendo a evolução em Angola aquilo que foi, uma autocracia do dinheiro, com uma acumulação do capital feita através de estruturais centrais e estatais num quadro que se reivindicou do socialismo, essa análise tinha de ser feita. Não estamos nos anos 60, nem nos anos 70. Passaram-se muitos anos e não há essa evolução, não há essa análise. E era bom que ela fosse feita, porque num partido que tem uma representação parlamentar importante, que tem um poder autárquico muito importante, ter a coragem de fazer essa análise seria um exemplo histórico.

*A segunda parte desta entrevista será publicada durante a manhã desta quarta-feira

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