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"Há muitos atores forçados a dizer sim a tudo. Não têm forma de sustento"

Conta com uma carreira de 15 anos no mundo da representação, porém, recentemente, abraçou a experiência das viagens ao ponto de ser agora uma escolha profissional. Ângelo Rodrigues é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

"Há muitos atores forçados a dizer sim a tudo. Não têm forma de sustento"
Notícias ao Minuto

27/11/17 por Marina Gonçalves

Fama Ângelo Rodrigues

Natural do Porto, desde cedo Ângelo Rodrigues esteve em contacto com o mundo das artes. A sua tia, Estrela Novais, é atriz.

Quando era criança, as “férias grandes” eram passadas em Lisboa com a tia e “ficava a fazer de homem estátua na rua Augusta”. 

Mas o ator decidiu agora dedicar-se a uma nova aventura como guia turístico. Foi 'tour guide' de uma experiência que decorreu no Rio de Janeiro entre 29 de outubro e 4 de novembro, e fará o mesmo noutra viagem, desta vez à Amazónia, entre 2 e 10 de dezembro.

Em conversa com o Fama ao Minuto, Ângelo Rodrigues falou sobre esta nova experiência, revelando ainda as expectativas para o futuro.

Como e quando é que nasceu a sua veia artística?

Isto vem um bocado de família porque a minha tia é uma das criadoras da [companhia de teatro] Seiva Trupe, no Porto, e que hoje em dia é uma atriz com créditos mais do que firmados, é a Estrela Novais, e acabou por ser geneticamente passado. Desde criança que o meu universo foi muito levado por peças de teatro, exposições, ida a museus... houve um input [estímulo] cultural desde muito cedo, o que me permitiu descobrir artisticamente. Lembro-me que uma das primeiras experiências que tive – eu não sou de cá, sou do Porto, e vinha às vezes nas férias grandes visitar a minha tia cá a Lisboa - foi de ficar fascinado com os homens estátua da rua Augusta e pedia à minha tia para me comprar uma tinta branca, pintava-me todo e ficava a fazer de homem estátua na rua Augusta. Isto com 6/7 anos. Já havia um certo fascínio com este outro lado. Depois, uns anos mais tarde, estive num colégio onde havia um auditório em que era possível alojar algumas peças de teatro e comecei a escrever, encenar e interpretar algumas peças com 15 anos. E foi a partir daí. Comecei a fazer teatro amador até vir para Lisboa com 18 anos para estudar mais a sério a minha profissão.

Quero timidamente acreditar que a minha personagem contribuiu um bocado para que as mentalidades mudassem Desde então já fez vários papéis... Qual foi a personagem mais difícil de interpretar?

Foi uma personagem chamada Simão do ‘Sol de Inverno’, uma novela que passou na SIC. Foi uma história muito especial porque foi a primeira vez que a ficção se misturou com a realidade. Eu era um designer no desemprego, homossexual, e eu e o meu namorado [da personagem] tínhamos o sonho de adotar uma criança. Na altura, por lei, era proibido isso acontecer. Lembro-me que o projeto-lei estava a ser discutido na altura. Fazíamos duas versões da cena para o caso de quando a novela fosse para o ar o projeto-lei já tivesse sido ou não aprovado. Isso também nos deixava nervosos porque não queríamos chocar o público de alguma forma com a história de amor das personagens e, de outra forma, queríamos ajudar a que as mentalidades fossem moldadas. Que de alguma forma contribuíssemos para a evolução deste pensamento da sociedade. Numa primeira instância, o projeto-lei foi vetado, mas a novela esteve uns meses no ar e as personagens tiveram de tal forma aceitação que no final coincidiu: o projeto-lei foi novamente levado à Assembleia da República e foi aprovado. Quero timidamente acreditar que a minha personagem contribuiu um bocado para que as mentalidades mudassem e que tornámos o mundo um bocadinho melhor.

Tem algum tipo de personagem que gostasse de viver mas que ainda não lhe tenha sido dada a oportunidade?

Todas. Não consigo definir o tipo de personagem.

Mas dá-lhe mais gozo fazer de vilão ou uma personagem mais boazinha?

Tive poucas oportunidade de fazer de vilão. Devem pensar que o meu perfil não encaixa. Se calhar tenho um lado bonzinho que não me permite fazer isso. Discordo, obviamente. Acho que nós todos somos versáteis. Estamos sempre à espera que nos desafiem.

Se não tivesse seguido o mundo da representação, tinha um plano B?

Comecei aos 15 com isto e já tenho 15 anos de carreira, agora aos 30 anos de idade. Continuo com a mesma paixão e sem alternativas. É só isto que eu sei fazer, portanto, haverei sempre de fazer alguma coisa relacionada com a minha profissão. Pode ser à frente das câmaras, atrás, no palco... É uma pulsão interior que me faz trabalhar apenas naquilo que gosto. Poderia estar mais rico, mais estabelecido financeiramente, mas quem corre por gosto não cansa. É a minha paixão, não há nada a fazer.

Gostava de construir uma carreira internacional?

Há uns 10, 20 anos havia muito essa coisa de perseguir o sonho internacional, e tinha piada pela intangibilidade da coisa. Hoje em dia não é assim uma coisa tão impossível ter uma experiência internacional. O YouTube ajuda-nos a divulgar o nosso trabalho, há uma coisa chamada Self Tape que se tivermos um bom agente internacional - dependendo do país para onde esteja a apontar o mercado - podemos fazer castings a partir de casa. O mundo com a Internet tornou-se muito mais pequeno e mais acessível. Obviamente que Portugal acaba por ser pequeno, não só pelas dimensões geográficas. Temos vários países que falam a nossa língua, Brasil é um deles, e claro que vejo com bons olhos poder trabalhar lá fora.

Ainda temos muitos atores que se veem obrigados a dizer que sim a todos os trabalhos porque não têm outra forma de sustentoOs artistas falam da falta de apoios na cultura em Portugal. Quais são, no seu ponto de vista, os principais aspetos a melhorar?

Primeiro, termos um sindicato efetivo que nos defenda como atores. Somos uma classe bastante desunida, infelizmente, porque temos tudo para dar certo. Mas precisávamos de uma identidade que revelasse a sério o nosso trabalho de forma a que a nossa condição não fosse tão precária. Nós, Portugal, ainda temos muitos atores que se veem obrigados a dizer que sim a todos os trabalhos porque não têm outra forma de sustento. Não somos um funcionário que recebe quando não está a trabalhar, ou que recebe um subsídio de férias ou décimo terceiro mês. A nossa classe devia estar um pouco mais defendida a esse nível.

Agora, os incentivos para o cinema nos últimos anos têm sido francamente melhores. Temos instituições independentes e privadas que nos têm apoiado, a conjuntura económica também ajuda. O facto de estarmos a sair da crise. Mas ainda há aqui uns retroativos de desculpas. Nós há 10 anos que ouvimos que não há dinheiro por causa da crise. Ainda estamos a tentar sair disso, desse buraco orçamental que nunca castra a nossa criatividade, mas que ajuda bastante a castrar. Acho que nos próximos tempos vai mudar.

Tem de haver uma consciencialização de que as pessoas precisam de ir ao teatro. Voltar a pôr o teatro no campo de uma coisa normal de se ir ver e não de uma coisa meio intelectual que só alguns é que atingem. Tem de haver um leque de experiências teatrais para todo o tipo de público.

Além da representação, Ângelo Rodrigues lançou um álbum em 2012. Como é que a música surgiu na sua vida?

Isso já vem também da minha adolescência. Sempre escrevi músicas e sempre foi uma forma de desabafo comigo e com o papel de estado de alma, estado de espírito. Eram sempre coisas mais da vida que assolam a adolescência, [como] desabafos amorosos. Foi uma coisa que foi crescendo e tenho dezenas de músicas gravadas da minha adolescência. Depois, quando achei que era o timing certo, lancei um álbum . Até agora não trabalhei muito essa parte, mas nos próximos tempos mostrarei alguma coisa.

Então quer dizer que ainda não desistiu da música...

Não, são sempre coisas que me completam. Não é uma decisão consciente a de dizer: a partir de agora desisti não faço mais isto. Não, estamos sempre a amadurecer, para o bem e para o mal. Acredito que é para o bem, sempre, e há algumas coisas que nos completam e nos satisfazem.

Acaba por ser um paradoxo, mas tenho um tremendo medo da exposição pública, do julgamento imediato Há vários atores portugueses que acabaram por fazer trabalhos como apresentador, e muitos conjugam os dois papéis. Acha que seria também uma opção para si?

Há uns anos eu pensei que era. Depois achei que não era bem assim. Pelo menos, se fosse uma experiência em direto, ia morrer de pânico. Parecendo que não, e acaba por ser um paradoxo, mas tenho um tremendo medo da exposição pública, do julgamento imediato, da aprovação. Acho que ia gelar completamente e ficar muito nervoso numa experiência em direto. Agora, uma experiência que pudesse ser gravada à minha imagem ou alguma coisa que me estimulasse artisticamente, claro que sim. Não fecho os olhos a isso.

Depois de ter terminado a relação com a Iva Domingues, voltou a encontrar o amor?

Não, estou solteiro.

Na sua opinião, quais são os ingredientes essenciais para a felicidade a dois e o que mais valoriza numa mulher?

Admiro muito uma mulher que tenha sentido de humor. Sinto-me muito bem com uma mulher que tenha poder de encaixe e uma boa ginástica mental. Seja para o humor, seja pela desenvoltura intelectual. Sou um pouco sapiossexual. A sapiência da pessoa também acaba por ser altamente estimulante para mim. Depois, que seja uma pessoa descomplexada, descontraída com a vida. Descomplexada com a vida.

Depois de todas as viagens que fez nos últimos tempos, vai trabalhar com uma agência de viagens e ser guia turístico. Fale-nos um pouco sobre este novo desafio.

Isto foi uma parceria. Fui abordado pela agência de viagens portuguesa ‘Portugueses em Viagem’ - eles sabiam da paixão que tenho por viajar - e propuseram-me ser líder de viagens de aventura. Pegar um pouco nas experiências que tenho feito e replicá-las para outras pessoas terem também proveito. Vamos começar com uma primeira viagem ao Rio de Janeiro, que acaba por ser a minha segunda casa neste momento – estou a morar entre cá e lá. Acaba por ser também uma espécie de zona de conforto porque é onde me sinto bem e mais apto para apresentar a cidade a outras pessoas – apesar da segurança não estar a viver bons dia por lá. A segunda viagem vai ser na Amazónia, onde tive uma experiência há um ano e meio. Vai ser em dezembro, uma semana. As pessoas a partir de agora podem viajar comigo e conseguir ver através dos meus olhos a forma como viajo.

A primeira viagem ao Brasil foi uma escolha sua ou foi a proposta da agência?

Foi minha. Encontrar um intermédio, uma coisa que não fosse totalmente desconhecida para mim porque senão, não faria sentido. É preferível que eu comece também para perceber se eu gosto ou não da experiência nesta minha nova função.

Há possibilidade de fazerem uma viagem por cá, com pessoas de fora, para mostrar o nosso país?

Ainda não pensei nisso, mas quem sabe. Para já é dirigido apenas para a língua portuguesa, mas quem sabe se essa será uma valência dos meus próximos tours...

Como já referiu aqui, a segunda viagem é agora, em dezembro, à Amazónia, e este foi também um dos locais escolhidos para viajar no ano passado com o Paulo Vintém. O que recorda desta experiência?

Em poucas palavras foi a experência que mais me transformou na vida. Vivia ali uma época de transição, mesmo profissional. Queria perceber exatamente o que é que queria fazer, queria continuar a sentir-me estimulado artisticamente e penso que isso na altura não estava a acontecer muito. Foi um bom divisor de águas a minha experiência na Amazónia para perceber de facto o que é que queria fazer.

Na altura foi partilhando algumas imagens da sua experência nas redes sociais, tendo andado na floresta, conheceu uma tribo.... Tenciona proporcionar às pessoas a mesma experiência que viveu?

Exatamente. A Amazónia aconselho mesmo a toda a gente porque vou tentar replicar ao máximo a experiência que tive. E também coroar essa experiência no final com a estadia, viver um pouco com os índios nos últimos dias. É mesmo a cereja no topo do bolo. Uma experiência que foi muito tocante para mim.

Já tem mais viagens agendadas?

Os próximos destinos para 2018, se tudo correr bem, vão surgir em breve.

O ajudar faz-me sentir bem comigo e acaba por ser uma experiência mais egoísta do que altruístaEste novo projeto surge após todas as aventuras que viveu, incluindo a missão de voluntariado a Moçambique, que o uniu à Helpo. Uma experiência que deu azo a um documentário de 40 minutos, ‘A Terra de Mil Sonhos'. Qual a maior lição que retira do mês que esteve em Nampula?

Fiquei a perceber que o ser voluntário é um caminho sem volta, um estado de alma. Não é uma coisa esporádica que se faz uma vez na vida e que simplesmente foi um serviço prestado e está feito. Apesar de ser uma coisa altamente altruísta, considero que é mesmo egoísta da minha parte porque preciso disso a partir de agora para me sentir bem comigo. O ajudar faz-me sentir bem comigo e acaba por ser uma experiência mais egoísta do que altruísta.

No início do ano revelou que teve que vender o seu carro para conseguir aventurar-se em mais viagens. Sente que precisou de se desfazer dos bens materiais para se encontrar consigo próprio?

Sim. Acabei por me desfazer de todos os bens materiais que tinha na altura por duas razões: a primeira era para continuar a patrocinar as minhas viagens nos meses seguintes, a outra porque a experiência que tive na Amazónia foi de tal forma transformadora... Ver a forma como eles viviam, como são despojados de qualquer elemento material e fútil nas suas vidas, estavam tão entregues à natureza da condição humana que é a sobrevivência sem ser preciso status ou hierarquia social. Ali, só contavam as pessoas e isso mexeu muito comigo.

Coincidentemente ou não, depois disso desfiz-me dos meus bens materiais porque comecei a perceber que não necessitava deles. Este status que nós vivemos sempre aquém no ocidente  – o ter para mostrar, ou para provar que tenho – para mim deixou de fazer sentido desde essa altura. Tenho tido uma visão bem mais minimalista na forma como vivo desde então. Não tenho carro neste momento, não tenho meio de transporte, não compro roupas há uns dois ou três anos. Tenho vivido com o que tenho, e tenho direcionado todo o dinheiro que ganho para viajar e ter este tipo de experiência. No fundo foi um afinar de agulhas e um estabelecer prioridades.

Sente que acabou por se conhecer melhor?

É uma jornada de autoconhecimento. Por isso é que eu gosto tanto de viajar e de viajar sozinho. Porque, de facto, põe-nos em contacto com os nossos medos, inseguranças, dilemas, conflitos... e se há uma predisposição para nos olharmos de fora e conseguirmos apontar as nossas características, virtudes e defeitos, acredito que também pode funcionar como uma aula contínua de psicanálise.

Ter um plano B, pagarem-me para viajar, para mim é ouro sobre azul e é uma forma de sustento paralelo à minha principal profissãoJá confessou que o seu desejo neste momento é conciliar a carreira de ator com as viagens. Uma vez que vai agora começar este novo desafio, acha que a representação poderá acabar por ficar um pouco de parte?

Acho que não porque isto acaba por ser um ótimo plano B para a intermitência da minha profissão. Toda a gente sabe que nós, atores, pelo menos em Portugal, estamos numa situação um pouco precária dada a intermitência dos convites. Chamamos estar entre trabalho quando estamos sem convites, que é uma forma maquilhada de dizer que estamos desempregados. Andamos sempre neste limbo de estarmos satisfeitos profissionalmente e de estarmos a receber bem, e estarmos meses sem uma luz ao fundo do túnel, sem perspetivas de trabalhar. Ter um plano B, pagarem-me para viajar, para mim é ouro sobre azul e é uma forma de sustento paralelo à minha principal profissão. Acho que não vai entrar em conflito, espero que não entre.

Continuo com a opinião de que viajar é a melhor formação que um ator pode terAlguma vez se imaginou na pele de João Cajuda? Já lhe passou pela cabeça abdicar da carreira para se dedicar exclusivamente às viagens?

Estamos sempre em constante transformação. Quem sabe. A minha formação é como ator, toda a minha vida foi um sonho e uma coisa pela qual lutei e continuo a lutar. Mas também há outros valores que se levantam, de autorealização, outras coisas que as viagens me têm trazido, que têm complementado a minha profissão. Continuo com a opinião de que viajar é a melhor formação que um ator pode ter.

Neste momento, quais os projetos para o futuro. Quais os principais objetivos que estão por realizar?

Agora, enquanto líder de viagens quero genuinamente sentir-me bem nesse papel para poder levar esta coisa para a vida. Acho que me dará muito prazer a partilha. Se por um lado já tenho uma experiência um pouco egoísta enquanto viajo muito sozinho, acho que me dará muito prazer poder voltar aos sítios onde fui feliz e tentar passar isso às pessoas. Se cada vez o interesse das pessoas for maior em olhar o mundo com os meus olhos, isso deixar-me-à muito feliz. Depois, seja aqui ou em qualquer parte do mundo estou sempre à espera do melhor papel da minha vida.

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